O dia em que a corrupção entranhada na política do DF foi exposta ao país
Em 27 de novembro de 2009, a Polícia Federal foi às ruas da capital e descortinou o esquema que elevou a roubalheira em Brasília a um novo patamar
Lilian Tahan
Manoela Alcântara
Otto Valle
27/11/2019 5:30
Hades é o deus grego do submundo, soberano do reino dos mortos, onde só imperava a tristeza. Seu mero nome inspirava terror aos helênicos, que evitavam até mesmo pronunciá-lo. Os domínios dele eram divididos em duas partes: o Érebo, local em que as almas aguardavam para saber se receberiam castigo ou recompensa; e o Tártaro, a região mais profunda, na qual os titãs ficavam aprisionados. O monstruoso cão Cérbero, que tinha três cabeças, vigiava o acesso ao mundo inferior, deixando os espíritos entrar, mas nunca sair. Hades presidia o tribunal e decretava a sentença após os julgamentos nos quais era determinado o destino dos condenados.
Há exatamente uma década, personagens que integravam o alto escalão dos poderes Executivo e Legislativo no DF foram despertados por policiais federais e representantes do Ministério Público. Vinte e sete de novembro de 2009 entrou para o calendário como a sexta-feira que marcaria para sempre a história política da capital federal, o primeiro dia da Operação Caixa de Pandora.
Vivia-se, naquela época, a pré-história da Lava Jato. As ações da PF não eram frequentes como se tornaram nos últimos cinco anos. Por isso, a investida contra o crime financiado por empresários corruptos e entranhado nos gabinetes de políticos poderosos e empoderados com cargos públicos caiu como uma bomba, deixando estilhaços nos quatro cantos da cena candanga.
Quando se levantou a tampa dos malfeitos praticados por políticos locais, os investigadores alcançaram o sistema que alimentava campanhas e a vida confortável dos personagens pilhados na operação. Líderes do GDF compravam o apoio de deputados da Câmara Legislativa que financiavam suas campanhas e despesas pessoais.
Mar de lama no Palácio do Buriti
Veja como foram os dias após a Operação Caixa de Pandora
O dinheiro brotava de empresas de informática e construtoras, cujos proprietários tinham o interesse de manter negócios com o governo. Ou seja, verba pública à disposição de objetivos privados. Uma história contada por Durval Barbosa, ninguém menos do que um dos criminosos que integravam o esquema ilegal.
Se a narrativa já tinha tudo para se tornar o maior escândalo político do qual se tinha notícia no DF, acervo de áudios e vídeos sobre as negociatas promoveram o caso a um blockbuster da corrupção.
E Brasília, que deveria ser referência de bons modos para o resto do país, produziu seu primeiro governador preso: José Roberto Arruda. O vice à época, Paulo Octávio, também foi varrido do cargo. É um dos 43 réus da Pandora. O então presidente da Câmara Legislativa, Leonardo Prudente, caiu. O mundo conheceu sua habilidade de embolsar dinheiro nas meias e nos paletós.
José Cruz/ABr
No mês em que o caso completa uma década, o Metrópoles relembra cena a cena o escândalo gerado ainda na gestão de Joaquim Roriz e que implodiu o governo Arruda/Paulo Octávio, deixando por herança consequências políticas e econômicas.
Durante semanas dedicadas a resgatar a história da Pandora, seus reflexos e leniências, os repórteres Manoela Alcântara e Otto Valle nos contam que o prejuízo para os cofres públicos, estimado a partir das denúncias do Ministério Público, chega a R$ 2,8 bilhões.
Roteiro de uma série inspirada na corrupção e da qual, passados 10 anos, ainda não se conhece o final.
Confira, na quinta-feira (28/11/2019), as gravações de Durval Barbosa que ganharam o noticiário nacional há 10 anos.
Advogado de José Roberto Arruda e de José Geraldo Maciel, Paulo Emílio Catta Preta alega que, em desconformidade com decisão judicial, Durval Barbosa teria utilizado equipamento de gravação próprio e editado o teor dos registros. “Tudo o que foi produzido demonstra que Durval operava um esquema de propina antes de 2007 e tentou manter isso no governo de Arruda, mas foi colocado de escanteio”, disse.
Para Catta Preta, Durval “vendeu delação premiada fantasiosa”. O advogado de Arruda acredita que o instrumento “foi apenas para manter a impunidade”. “O Durval já tinha cerca de 40 processos na Justiça. Essa delação só serviu para ele sair impune. Até o termo de delação ele desrespeitou, quando divulgou os vídeos da Jaqueline Roriz em 2011. Mesmo assim, nada acontece. Durval é o maior exemplo de impunidade deste país”, diz.
A defesa de Paulo Octávio ressalta que ele foi absolvido no processo de improbidade administrativa. “O caso é naturalmente complexo, mas, ao longo da instrução, a defesa conseguiu demonstrar os equívocos e arbitrariedades praticadas pela acusação. Paulo Octávio já foi absolvido na primeira ação julgada, e a defesa tem convicção técnica de que as demais ações terão o mesmo desfecho”, afirmou o advogado Marcelo Turbay.
O defensor também responde pelo ex-secretário de Obras Márcio Machado, acusado de corrupção passiva e corrupção ativa. “A acusação contra ele é malfeita e sem embasamento, conforme o próprio delator acabou reconhecendo. A denúncia foi irresponsável, atacou indevidamente um cidadão sério e sem qualquer relação com os fatos, conforme ficou provado no processo”, completou Turbay.
De acordo com a advogada de Durval Barbosa, Margareth Almeida, 10 anos se passaram e o delator do suposto esquema de corrupção se mantém convicto de que trilhou o caminho correto. “Ele não queria continuar naquele rumo em que estava”, afirmou.
Segundo a defensora, não há o que se questionar acerca da ação controlada feita pela Polícia Federal. “Tudo foi coordenado pela PF, desde quando colocaram o equipamento nas roupas do Durval.” Além disso, a advogada alega que a delação do cliente está muito bem documentada e atestada pela Justiça. “Não é só delação, ele apresentou provas. Toda a vida dele foi vasculhada: contas em bancos, transações, gravações, tudo. Tudo foi checado e confrontado”, afirma Margareth Almeida.
A defesa do ex-deputado Júnior Brunelli nas ações cíveis pede a anulação dos processos. “Recorremos ao STJ. Sustentamos que ele não pode ser réu por corrupção passiva em uma ação que não consta o corruptor ativo”, afirmou o advogado de Brunelli, Herman Barbosa.
O defensor se refere à ação judicial em que o ex-parlamentar responde sozinho. Para o advogado, Durval Barbosa teria que ser réu por corrupção ativa neste caso, para o processo ser válido.
A defesa do ex-deputado distrital Rogério Ulysses disse que “não existem provas de favorecimento financeiro por parte do ex-parlamentar”.
Responsável pelas defesas dos ex-deputados Berinaldo Pontes e Pedro do Ovo, o advogado Délio Lins e Silva Júnior afirma que ambos foram absolvidos, em decisão de mérito, nas ações de improbidade, “mesmo destino que certamente será dado para as ações penais, pois tratam dos mesmos fatos”. Ainda de acordo com o defensor, “infelizmente, somente anos depois, o açodamento do Ministério Público no caso foi demonstrado e a Justiça está sendo feita”.
Já os advogados de defesa do ex-deputado Berinaldo Pontes na área criminal, André Gomes e Kaydher Lasmar, alegam que o cliente “jamais teve quaisquer envolvimentos com os crimes em apuração na Caixa de Pandora”.
“Ao contrário do narrado pelo órgão ministerial, conforme amplamente comprovado por documentação idônea, no período de 23 meses que exerceu o mandato de deputado distrital, o parlamentar sempre trabalhou de maneira independente, em conjunto com partidos de oposição, rejeitou vetos do governador e vice-governador, fiscalizou, criticou e denunciou irregularidades praticadas pelo GDF”, afirmaram, por meio de nota.
Em julho deste ano, o advogado da ex-deputada Eurides Brito, José Eduardo Alckmin, alegou que “o dinheiro que aparece no vídeo era para acertar uma campanha do Roriz, em 2006. Ela pediu o ressarcimento e resolveu daquele jeito”, ressaltou.
Empresários
A fase de produção de provas nos processos que analisam os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e formação de quadrilha terminou em dezembro de 2018, antes do recesso do Judiciário. Durante as oitivas, empresários relataram que foram coagidos a entrar no esquema de pagamento de propina.
Foi o caso de Alexandre Rosário de Assis, sócio da Info Educacional. Segundo ele, Durval Barbosa colocou um revólver sobre a mesa durante uma reunião no Palácio do Buriti para tratar dos valores desviados. Assis disse que Barbosa deixou claro que, se a empresa não entrasse no esquema, ela perderia o contrato milionário de distribuição de softwares para a rede pública de ensino do Distrito Federal.
O depoimento colhido foi semelhante ao de dois outros empresários: o dono da empresa Vertax, Francisco Tony Brixi de Souza, revelou ter pago 10% de um contrato de R$ 2,1 milhões a Durval devido a ameaças. Ex-proprietário da Linknet, Gilberto Lucena completou o coro: “Ele [Durval] colocou uma arma na mesa”, afirmou Lucena, em interrogatório na 7ª Vara Criminal de Brasília.
Maria Cristina Boner, representante da empresa B2BR Business to Business Informática do Brasil, estava entre os réus que depuseram na 7ª Vara Criminal em dezembro de 2018. Acusada de corrupção ativa, ela negou o pagamento de propina a Durval Barbosa.
A empresa firmou, em setembro de 2006, um contrato emergencial de R$ 9,8 milhões com a Companhia de Desenvolvimento do DF (Codeplan) para instalar softwares regulares da Microsoft nos computadores do Governo do Distrito Federal (GDF). Estava previsto que o serviço fosse pago em 60 dias. Porém, o montante não foi quitado.
“Tivemos que pagar a Microsoft, instalamos os sistemas em todos os computadores e nunca recebemos. Cobramos 2007 inteiro, mas nunca recebemos”, disse Maria Cristina Boner. Somente após um ano e meio, o GDF desinstalou os softwares. “Sobre esse contrato, nunca tratei com ninguém. Nem com Durval, nem com ninguém”, afirmou a empresária.
De acordo com ação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Marcelo Toledo – policial civil aposentado acusado de ser um dos operadores do esquema de arrecadação de propina – negociou com Durval Barbosa, em nome da B2BR, propina de R$ 200 mil sobre o contrato do Na Hora. Maria Cristina Boner negou conhecer Toledo e desmentiu o conteúdo das delações do ex-presidente da Codeplan.
A advogada de defesa de Durval Barbosa, Margareth Almeida, disse que “essas ameaças nunca aconteceram”. “É uma estratégia de defesa sem nenhum fundamento de verdade”, disse.
“Durval agia a mando dele mesmo”
Durante depoimento, o ex-corregedor do Distrito Federal Roberto Giffoni afirmou que Durval Barbosa “sempre foi senhor das suas próprias ações”. Ele negou ter conhecimento de qualquer esquema ou ordem vinda de Arruda acerca do pagamento de propina. “Durval agia a mando dele mesmo. Ele é vaidoso demais para ter chefe”, disse.
Giffoni ainda alegou que o delator criou um enredo para incriminá-lo e responsabilizá-lo por atos não cometidos por ele: “Minhas contas foram todas aprovadas. Minha imagem foi destruída. Acabei de confirmar minha absolvição no processo de improbidade. Todos os envolvidos negaram ter entregado dinheiro para mim”. “Ele incriminou aqueles com quem ele não tinha intimidade, que era desafeto”, afirmou.
O ex-assessor de imprensa e ex-porta-voz de Arruda Omézio Pontes sustenta que os dois vídeos feitos e divulgados por Durval contra ele têm explicação diversa da relatada pelo delator.
“No primeiro, em que apareço com Domingos Lamoglia, estava tratando da campanha de Natal. Os áudios são claros quanto ao que foi discutido. O Durval tinha uma empresa com a ex-mulher dele, a Fabiani, que ajudaria com recursos na campanha. Inclusive, consegui provar que a gravação é de 2005, não de 2006 como ele disse”, afirmou Omézio Pontes.
Segundo Omézio, a segunda gravação – na qual está ao lado de Marcelo Toledo – é referente a um pagamento que Durval deveria fazer pelos serviços prestados por uma gráfica para confeccionar santinhos, adesivos e cartazes referentes às eleições municipais de 2008. “Ele contratou meus serviços como profissional de comunicação para um trabalho político no Entorno. Fiz o trabalho, e ele estava pagando pela impressão”, afirmou.
Em depoimentos e nas defesas apresentadas pela Justiça, os outros réus citados também alegaram inocência. A reportagem não localizou os advogados responsáveis para comentar as denúncias. O espaço permanece aberto.