Por Ana Flávia Castro

20/11/2021 5:00

Para driblar as estatísticas do feminicídio e se desvencilhar das amarras de um relacionamento abusivo, Jandaraci Araújo, de 48 anos, decidiu deixar Salvador (BA), há duas décadas, para reescrever a própria história no Rio de Janeiro (RJ). Como mulher negra, ela tinha quase o dobro de chances de ser assassinada pelo companheiro, em comparação com uma mulher branca, de acordo com o Atlas da Violência 2020.

Ao pisar em solo carioca para morar na casa de uma tia, em Nova Iguaçu (RJ), município da Baixada Fluminense, ela partiu em busca de emprego. No entanto, só recebeu negativas. Mesmo com a formação de tecnológa em metalurgia e cursos de informática e mecânica, o racismo estrutural impôs uma série de barreiras.

A formação acadêmica de uma mulher negra nunca é suficiente. E a desculpa é sempre a mesma: ‘Você não tem perfil’

Jandaraci Araújo,
administradora

Jandaraci Araújo

Entre os comentários, um, em especial, ficou marcado: “‘Nossa, você sabe falar’. Quando ouvi aquilo, eu senti mais uma vez o quanto aquela busca seria difícil”.

Com a necessidade de colocar comida em casa e cuidar das duas filhas – Diumara, com 6 anos à época, e Luana, com 2 –, veio a solução: vender salgados nos vagões do metrô e nas ruas do centro do Rio. “Assim, eu consegui sustentar a mim e as meninas, continuar a produção e bancar a minha inscrição na faculdade de marketing. O segredo? Sempre fui muito boa em exatas, e fazia os cálculos certinhos de quanto eu precisava vender por dia.”

Certa vez, um professor universitário que comprava, diariamente, o lanche de Jandaraci perguntou sobre a história dela. “No dia seguinte, ele me deu um cartão e pediu que procurasse uma de suas gerentes. Quando fiz o contato, ela me encaminhou para uma vaga de estágio em uma das maiores empresas de varejo do país”, compartilha.

Fábio Vieira/Metrópoles
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Jandaraci Araújo é conselheira independente e co-fundadora do Conselheiras 101

Esse foi o início de uma trajetória de sucesso. Depois de ser efetivada na empresa, Janda foi transferida para São Paulo (SP) e cresceu no ramo empresarial. Ocupou a cadeira da diretoria do Banco do Povo — programa de microcrédito produtivo, desenvolvido pelo governo paulista —, foi secretária de Empreendedorismo, Pequenas e Médias Empresas do estado e agora atua como executiva do mercado financeiro, na área de sustentabilidade.

“Eu costumo dizer que a gente só sonha com o que vê. Os números estão aí: mulheres negras ganham menos do que homens e outras mulheres brancas. A gente precisa fazer malabarismos maiores. Educação financeira é fundamental para que a gente chegue ao fim do mês com as contas e com a saúde mental em dia”, salienta.

No Brasil, para cada 10 mulheres brancas vítimas de feminicídio, outras 18 mulheres pretas e pardas foram mortas, segundo o Atlas de Violência 2020

As vítimas de violência doméstica revelaram, por meio da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que a dificuldade de garantir autonomia financeira foi o fator que prolongou a permanência delas em situação de vulnerabilidade. Cerca de 25% das entrevistadas apontam, como um agravante à agressão dentro de casa, a perda do emprego ou a impossibilidade de trabalhar para assegurar renda própria.

“Situações de violência doméstica se dão, muitas vezes, pela pobreza e são acirradas pela falta de acesso ao poder de compra e a outros aspectos econômicos. A vulnerabilidade social se apresenta como um grande disparador de violências intrafamiliares, seja de gênero, seja contra crianças e adolescentes”, pontua a psicóloga Alyne Siqueira da Silva, especializada em saúde da mulher.

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A independência financeira de Jandaraci a empoderou para seguir rumo à libertação de um relacionamento violento

No caso de Jandaraci, a independência financeira a empoderou para seguir rumo à libertação, acompanhada das duas filhas pequenas. “Eu precisava sair desse ambiente de perseguição e violência, antes que fosse tarde. Por isso, encarei essa mudança como uma grande virada. Mas ter meu próprio dinheiro não foi o único fator. O apoio incondicional da minha família, por exemplo, foi fundamental. Existe uma pressão psicológica e uma grande dificuldade em quebrar o ciclo”, pondera.

Embora não sejam muros que separem a comunidade negra e periférica dos espaços de poder, a barreira social que exclui a maior parcela da população brasileira é construída sobre estruturas sólidas de desigualdade social sistêmica. No caso de mulheres negras (pretas e pardas), a vulnerabilidade socioeconômica é um dos mais efetivos mecanismos de silenciamento.

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Com os desejos profissionais concretizados, Jandaraci trabalha para transformar a vida de meninas a partir de capacitação em finanças

A vida das brasileiras é atravessada por limites de raça, gênero, território, classe social e violência. Cada uma dessas camadas reforça a ótica da exclusão econômica. A falta de letramento financeiro posiciona esse estrato social na base da desigualdade de renda no país.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,10% dos brasileiros se declaram negros. Eles também representam 75% da população com menor rendimento. Quando há um recorte de gênero, a desigualdade econômica é ainda mais acentuada. O salário médio mensal de mulheres negras é o mais baixo do país.

Diferenças salariais por mês, em média

Elas recebem 70% a menos que mulheres brancas, enquanto homens brancos ganham mais que o dobro. Com salários menores e os maiores índices de violência, o Brasil tem mais de 11,4 milhões de famílias formadas por mães solo, a maioria negra (7,4 milhões).

Falar em dinheiro e poder econômico é uma questão de autoestima, autonomia e até de segurança, quando se vive em um país com uma violência de gênero tão acentuada. Liberdade econômica é um fator emancipatório

Alyne Siqueira da Silva,
psicóloga

Vítimas de feminicídio e demais mortes violentas intencionais de mulheres, por raça/cor (Brasil, 2016-2020)

Índice de violência por cor da pele tem maior prevalência entre mulheres negras

Metade das violências experimentadas pelas mulheres, no último ano, ocorreu em casa
Principal fator de vulnerabilidade à violência durante a pandemia:

“Escravidão moderna”

Em contexto estrutural, no entanto, um bom planejamento financeiro esbarra em obstáculos primordiais à sobrevivência de brasileiras pretas e periféricas. “As mulheres pobres estão lutando para sobreviver. Como falar em planejamento para pessoas que não têm dinheiro para comprar pão para o próprio filho?”, questiona Kelly Quirino, pesquisadora em gênero e raça da Universidade de Brasília.

Antes de qualquer gestão, na visão da especialista, falando na parcela da população composta por mulheres vulneráveis e mal-remuneradas, o primeiro passo é qualificá-las e pagar melhor profissões relacionadas aos cuidados. “A escravidão terminou, mas muitas práticas de trabalho continuam as mesmas. Pessoas pretas, trans e pobres são excluídas da sociedade. Não têm carteira assinada, não têm direitos trabalhistas. Se a gente não tem as condições básicas supridas, como é possível ter sonhos?”, assinala Kelly.

Falar em casos fora da curva e de mulheres que conseguiram driblar essa situação pode levar ao mito da meritocracia, na visão da psicóloga Alyne Siqueira da Silva. “Há um risco de transformar essas barreiras estruturais em uma responsabilidade individual, de atribuição do sujeito. Isso entra em uma lógica meritocrática e coloca pressão sobre as mulheres”, explica. Não há uma relação de causa e consequência.

“Pensando em dados, somos 28% da população brasileira e 24% da força de trabalho, mas apenas 16% do consumo nacional. Pessoas negras trabalham mais, existem mais, mas consomem menos. É notável essa disparidade de acesso econômico”, argumenta Geórgia Barbosa, empreendedora e cofundadora da plataforma Afroricas. O projeto conduzido por ela produz conteúdo sobre educação financeira, habilidades interpessoais e carreira para mulheres negras.

A desigualdade no Brasil não é falta de sorte, trata-se de uma construção social. Para mim, é uma questão muito mais política e estrutural do que uma resposta do indivíduo. Ainda mais em um sistema capitalista, no qual o dinheiro se torna um facilitador de várias outras coisas. Infelizmente, uma pessoa que não tem dinheiro não tem acessos, não tem direitos, não consegue se garantir em países como o Brasil

Geórgia Barbosa,
cofundadora da plataforma Afroricas

Há quase 10 anos em solo brasileiro, a ex-consulesa da França em São Paulo Alexandra Loras enxerga que o problema é muito mais abrangente do que apenas falar em cifras monetárias. É também uma questão de cerceamento de direitos e falta de acesso às posições de poder. Na visão da mestra em ciências políticas, o racismo no Brasil não faz distinção de classe econômica.

“Eu vejo [a realidade] como uma espécie de teto de vidro. Todos sofremos preconceito. Não adianta ter estudado nas mesmas escolas que CEOs de grandes empresas na França, ou que os presidentes Macron e Sarcozy, como é o meu caso. A sociedade patriarcal racista em que estamos não deixa pessoas negras ascenderem, tornarem-se a melhor versão delas mesmas, e conquistarem espaços de poder e decisão”, frisa.

Glossário

Cidadania financeira

É o exercício de direitos e deveres que permite ao cidadão gerenciar bem seus recursos financeiros

O desenvolvimento da cidadania financeira se dá por meio de quatro pilares: inclusão financeira, educação financeira, proteção do consumidor de serviços financeiros e ampla participação no diálogo sobre o sistema financeiro

Inclusão financeira

É um estado em que todos os adultos têm acesso efetivo aos seguintes serviços financeiros providos por instituições formais: crédito, poupança, pagamentos, seguros, previdência e investimentos

Educação financeira

Remete ao processo pelo qual os cidadãos têm acesso à informação para desenvolver as habilidades e a confiança necessárias para se tornarem mais cientes dos riscos e oportunidades financeiras

Fonte: O que é cidadania financeira? Definição, papel dos atores e possíveis ações. Banco Central do Brasil, 2018.

Em verso e prosa

Inflação, taxas de juros, curvas de oferta e demanda, desvalorização da moeda, déficit e superávit. O vocabulário de quem domina o mercado financeiro é quase um idioma próprio. Na prática, porém, o resultado desses discursos complexos se reflete no aumento anual do aluguel e no preço do quilo do arroz. Essas terminologias explicam por que o salário que enchia o carrinho anos atrás é, agora, quase sinônimo de uma despensa vazia.

Há um descompasso entre a pequena parcela que conduz o diálogo financeiro e a multidão que sente na pele seus reflexos todos os dias. Na divisão acentuada que as separa, a linguagem é uma das principais barreiras.

Falar de economia é algo que impacta o cotidiano de todos que vivem em sociedade. Se você precisa se alimentar, se vestir, consumir produtos em geral, está inserido nesse contexto. A gente acha que entender o assunto é um tema para milionários, mas, na verdade, a economia é movimentada a partir dos centavos

Gabriela Chaves,
economista

É por isso que ensinar fórmulas sobre como ficar milionário, da noite para o dia, não é o foco dos criadores de conteúdo negros e negras nas redes sociais. Facilitar o pensamento estratégico sobre dinheiro é também uma forma de valorizar a própria identidade e introduzir o letramento financeiro no cotidiano da população preta e periférica.

É com esse público que a economista Gabriela Mendes se conecta, ao usar letras de rap para romper as barreiras da linguagem econômica. Ela tinha apenas 6 anos de idade quando um show do grupo Racionais MCs plantou a sementinha que deu vida ao No Front – projeto que ensina, em verso e em prosa, os fundamentos da educação financeira.

Quando ganhou uma bolsa integral para estudar economia, em 2012, Gabriela começou a se inquietar com as disparidades de cenário e renda que via, tanto em sua atuação no mercado financeiro quanto no caminho de volta para casa, no município de Taboão da Serra, sudoeste de São Paulo.

“Descobri um universo paralelo, em que as pessoas conseguiam as coisas por meio do investimento, mas, quando eu voltava para casa, encontrava pessoas completamente endividadas. Isso acontece porque elas nunca foram ensinadas a mexer com dinheiro”, comenta.

Em 2018, Gabriela decidiu deixar de vez o mercado financeiro e criar o No Front: Empoderamento Financeiro, para democratizar o conhecimento a que ela teve acesso. No ritmo dos Racionais, a economista enxergou a possibilidade de criar pontes entre a realidade da população negra e a compreensão sobre finanças.

A linguagem do rap, na visão de Gabriela, é um catalisador para que as pessoas se apropriem da economia e da forma como funciona o mercado, em busca de melhores condições de vida. “A dona de casa tem um papel fundamental, porque é ela quem faz a gestão da economia do lar, e precisa ser reconhecida como um agente econômico relevante e importante”, argumenta.

Enxergar além da lógica

Assim como Gabriela, Nina Silva, 41 anos, criou um movimento a partir de suas vivências como mulher negra no Brasil. O Black Money é pioneiro no mundo e tem como missão romper a incoerência cruel entre o potencial de consumo e a falta de autonomia econômica da comunidade negra.

A proposta coloca em rede não apenas produtos e serviços das pessoas negras, mas fomenta a inserção, autonomia e valorização da negritude para transformar o ecossistema empreendedor. Nina se descobriu no universo da tecnologia, a partir do olhar estratégico inclinado para os negócios.

Nascida no Jardim Catarina, em São Gonçalo (RJ) — na época, a maior favela plana da América Latina —, Marina começou a se sentir confortável com a linguagem de códigos, entre letras e números, desde muito nova. A habilidade para o raciocínio lógico foi estimulada dia a dia, no terreno fértil cultivado em família.

Quando acompanhava o pai nas idas ao mercado, Nina fazia as contas antes de chegar ao caixa, para que ele não gastasse demais. Se sobrasse dinheiro, ela saía no lucro e levava seu biscoito favorito como recompensa.

Apesar do gosto quase intuitivo pela matemática, a executiva não se considera uma pessoa de exatas. “Sempre gostei muito de processos de sistemas e logística, mas a tecnologia entrou na minha vida não por fruto de um sonho, e sim quando enxerguei uma brecha e vi a oportunidade de entrar. Então, pude minimamente hackear o sistema”, lembra.

Estudante de administração, Nina deu os primeiros passos na carreira corporativa a partir do processo seletivo para trainee de uma empresa multinacional. Aos 20 anos, ela se viu em meio aos grandes gestores e especialistas de tecnologia da informação, que manipulavam o conhecimento e infraestrutura da inovação — em suma, homens brancos e acima dos 40.

“Para mim, foi um desafio todos os dias ter que justificar a presença do meu corpo negro naqueles ambientes, principalmente porque eu desenvolvi uma linha de crescimento tanto na área de especialista de tecnologia como gestora de times”, reflete.

Quanto mais eu galgava determinados espaços, mais ficava explícita a questão do racismo e da misoginia nesses ambientes. Costumo dizer que o racismo é a primeira barreira e, com certeza, a que tem o maior bloqueio de oportunidades no Brasil como sociedade, em todos os campos. Mas a questão de gênero é um tema que envolve a interseccionalidade, no momento em que a sociedade dita a possibilidade de desenvolvimento em espaços de poder

Nina Silva,
criadora do Black Money

Após construir uma carreira apoiada em pilares da tecnologia para fortalecer relações humanas, Nina Silva enxerga oportunidades para essas meninas e jovens pretas na área de exatas.

“O impulsionamento delas em diferentes áreas científicas, sobretudo no campo das exatas, é também a possibilidade de ampliação de horizontes de sair das caixinhas e dos estereótipos e arquétipos de identificação de gênero e até mesmo de discriminação racial”, defende a executiva.

A ciência e a tecnologia são tidas como fomento para o desenvolvimento econômico e social de um país. Longe dos laboratórios e das cadeiras da diretoria, essas meninas, pretas e periféricas, crescem à margem desse enorme potencial para o crescimento, na visão da empreendedora.

Dinheiro que circula

Por definição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), o bem-estar financeiro permeia o debate sobre a satisfação do indivíduo, uma vez que compreende o gerenciamento de recursos e impacta outros componentes da comodidade, como moradia, educação, saúde e lazer. De acordo com o Banco Central do Brasil, isso “implica ter segurança — a partir do controle sobre as finanças mês a mês — e liberdade financeira para escolhas no presente e no futuro”.

A relação com a saúde mental, portanto, é imperativa. Todos os papéis apresentados às mulheres pela sociedade desencadeiam “um estado de estresse mental absurdo. A condição dá início a um quadro de estresse que aciona gatilhos para a ansiedade. Em situações de pobreza e vulnerabilidade social, a questão financeira, inclusive, é um fator depressivo”, elucida a psicóloga Alyne Siqueira da Silva.

Acostumada a viver com equilíbrio financeiro em casa, Monique Evelle, 27, nascida na periferia de Salvador, questionou o pai, ainda na infância, se ele exercia algum trabalho ilegal. Por volta dos 7 anos, a empreendedora social ouvia com frequência reclamações de amigos do colégio sobre situações de desconforto por causa das finanças domésticas.

“Nós não tínhamos dívidas, nem dor de cabeça, mesmo ganhando um salário mínimo. Quando falei com o meu pai, ele perguntou por que eu estava fazendo tal questionamento. Todos os amigos do colégio reclamando de que os pais estavam passando por situações ruins, e na minha casa tudo bem, então imaginei que havia alguma coisa errada. Foi uma péssima pergunta, mas na inocência, porque era o reflexo de uma realidade comum, mas que eu não vivia em casa”, relata.

Filha de Neuza, que trabalhava como secretária do lar, e Ari, chefe de segurança de prédios particulares, a jovem soteropolitana sentia-se incomodada com as questões raciais desde muito nova. Aos 16 anos, ela criou a plataforma Desabafo Social, laboratório de tecnologias sociais.

O projeto cresceu e, atualmente, propõe soluções que giram em torno de garantir o mínimo de dinheiro nas mãos das pessoas por meio de desafios sociais e criativos que são remunerados. Além disso, a empresa engloba capacitação em economia criativa e transformação digital, como uma forma de redistribuição de renda.

Referência quando o assunto é empreendedorismo negro, a ativista social também é sócia da Sharp, que atua na criação de índices e métricas proprietárias para medir e ampliar a relevância das pessoas e das empresas.

“Além de outras formas de silenciamento, como o racismo, há um imaginário que reforça a ideia de que pessoas negras não tem dinheiro, e faz com que ninguém queira falar sobre isso. A sorte é que os criadores de conteúdo estão abordando mais abertamente este assunto”, salienta.

Legado escravocrata

A emancipação financeira para mulheres negras é tida como um caminho para a liberdade desde a época em que os navios com africanos sequestrados costumavam atracar nos portos do Brasil. A abolição só ocorreu em 1888, mas há 150 anos, com a promulgação da Lei do Ventre Livre (nº 2.040/1871), as pessoas escravizadas se mobilizaram e começaram a juntar dinheiro — seja fruto de doações de outras pessoas negras, do próprio trabalho ou de economias — e, com ele, comprar a própria alforria.

Saber usar a criatividade para conseguir viver, mesmo com pouco dinheiro, e dominar inteligência financeira são artifícios que mulheres negras aprenderam a gerir desde a época da escravidão, com o sonho de conseguir trilhar a própria trajetória rumo à liberdade.

Reunir economias para esse fim, no entanto, exigia sacrifícios, como trabalhar durante os raros horários de folga e negociar parte da remuneração que tradicionalmente era destinada aos patrões.

No fim do século 19, abriram-se os caminhos para a formalização do fim da escravidão e para a normatização do direito à liberdade universal, algo fundamental ao ser humano. Sob a influência do crescente movimento abolicionista ao redor do globo, o Brasil foi o último país a banir o sistema escravocrata.

Mesmo antes da Lei Áurea, já havia significativa população negra livre, mas que não tinha sua condição de liberdade reconhecida. Com a alforria escrita em papel, os negros recém-libertos saíram das senzalas sem que nenhuma política de indenização os acolhesse, e enfrentaram desafios como o desemprego, a falta de moradia e acesso à saúde e educação.

Protagonistas da batalha rumo ao fim da escravidão, homens e mulheres negros, como Luís Gama, travaram embates contra a Lei de Terras, que excluía os escravos da distribuição de propriedades no pós-abolição. A luta por ter onde viver, no entanto, ainda persiste, com o processo de delimitação das áreas pertencentes às comunidades quilombolas.

Vistos como símbolos de resistência, os primeiros registros de quilombos remontam à época em que os escravos fugiam das fazendas e buscavam abrigo na mata, onde fundaram as próprias comunidades. A oficialização dessas terras é uma das medidas fundamentais rumo à reparação histórica de milhares de famílias escravizadas por décadas, garantindo o acesso dessas populações às políticas públicas do Estado.

No Brasil, estima-se que há quase 4 mil territórios quilombolas, de acordo com a Fundação Cultural Palmares. Por definição, o art. 2 do Decreto nº 4.887/03 conceitua esses povos como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

Florescer em arte

Descendentes dos fundadores da comunidade dos Pilões, na cidade de Iporá (GO), Maria da Silva Oliveira, 56, e a irmã mais nova são as únicas, entre os quatro filhos, nascidas fora do território quilombola. Mesmo após saírem das terras onde viveram seus ancestrais, a família cultiva as raízes e o desejo de permanecer em comunidade. Em Goiânia, Maria compartilha a chácara com a mãe, a irmã mais nova e o cunhado — e espera a chegada de uma das filhas e das netas.

Com a veia artística aguçada desde os tempos de escola, Maria sempre encontrou na arte um escape para as preocupações do dia a dia, que não foram poucas. Os desafios para uma mulher negra e mãe solo no mercado de trabalho a fizeram encarar o desemprego várias vezes. Contudo, aos 31 anos, ela descobriu uma forma de transformar as habilidades manuais em ofício.

Vinícius Schmidt/Metrópoles
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Maria da Silva Oliveira sofreu um significativo baque econômico na pandemia

“Eu não estava conseguindo conciliar o cuidado com meus filhos com o emprego e fui dispensada do trabalho”, recorda. Sem renda, ela comprou um quiosque e passou a trabalhar como chaveira, na tentativa de colocar comida no prato em casa todos os dias. Mas o seu sócio no empreendimento, que tinha problema com vícios, dificultava o bom andamento do negócio.

A localização do quiosque, em frente ao Centro de Convenções, proporcionou o encontro da goiana com artesãos que participavam de exposições no local. Eles apresentaram a Maria uma forma de expressar a própria visão artística em peças rentáveis, com diversos tipos de matéria-prima. Ela se aventurou pelas esculturas com cerâmicas, mas foi nas criações com frutos do Cerrado que os seus talentos floresceram.

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Maria faz bijuterias com frutos secos do Cerrado para lembrar a importância do bioma

“A partir da arte, faço bijuterias com frutos secos do Cerrado para lembrar às pessoas que o bioma tem uma grande importância. Esses frutos, mesmo quando não são comestíveis, também são símbolos da natureza e representam nossa sobrevivência”, pondera.

Além de administrar o próprio negócio, Maria do Cerrado, como ela mesma se intitula, atua na vice-presidência da cooperativa de artesãos do estado de Goiás e administra as vendas na loja Colaborarte, um espaço colaborativo cedido por um shopping na capital goiana. A artesã ainda organiza as feiras das Pretas e do Cerrado.

“Nós, artesãos, criamos, produzimos, vendemos e divulgamos. São muitos produtos e valores para administrar, e é muita responsabilidade. Estamos falando do sustento de, no mínimo, outras 15 pessoas, e da minha família”, ressalta.

Com a pandemia, o setor sofreu um baque econômico significativo. Após a drástica queda na comercialização de produtos, artesãos precisaram usar a criatividade como forma de se reinventar e vencer os desafios, que se multiplicaram. Manter o ofício nunca foi uma tarefa simples. A gestão financeira, no caso de Maria, foi um fator crucial para equilibrar as contas.

“Alguns meses estamos vendendo bem, outros não entra nada no caixa. O sistema de organização por planilhas no computador é uma mão na roda, principalmente pela praticidade e pelo controle. Você consegue lidar com as vendas e com o dinheiro de forma bem tranquila”, comenta. O planejamento em períodos anteriores garantiu um pouco mais de estabilidade nos meses em que o dinheiro faltou.

Acostumada a colocar as contas na ponta do lápis, Maria foi apresentada à planilha digital, que facilita o controle do dinheiro a partir de um programa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). A goiana participou de uma oficina logo antes da pandemia, criada com o objetivo de fortalecer artesãos para enfrentar as turbulências econômicas que se anunciavam.

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O planejamento de Maria da Silva, em períodos anteriores, garantiu um pouco mais de estabilidade nos meses em que o dinheiro faltou

Mulheres empreendedoras

Na opinião de Renata Malheiros, coordenadora nacional do Programa Sebrae Delas, do ponto de vista das mulheres empreendedoras, os maiores desafios são culturais, que vêm a partir de crenças desde a infância, mas que são, de fato, condutas enraizadas no preconceito.

São coisas como ‘matemática não é coisa de menina’, ‘os homens são melhores com números do que as mulheres’. Esses vieses inconscientes afetam as finanças das empresas comandadas por elas e são um grande entrave. Quando a gente fala sobre questão financeira no empreendedorismo feminino, temos que falar também sobre essas crenças limitantes, instaladas desde a infância. Mas a boa notícia é que existem maneiras de superá-las, já que elas são culturais

Renata Malheiros,
coordenadora nacional do Programa Sebrae Delas

A pandemia interrompeu um ciclo de crescimento de 4 anos contínuos da participação feminina no empreendedorismo brasileiro. Segundo estudo da agência, no terceiro trimestre de 2020, a proporção de mulheres entre os donos de negócios caiu quase um ponto percentual em comparação com o mesmo período de 2019. Na época, a presença feminina correspondia a 34,5% do total dos empreendedores.

Em números absolutos, atingiu patamares mais baixos do que os vistos em 2017, com a perda de 1,3 milhão de mulheres à frente de um negócio. O estudo mostra que todos os empreendedores foram afetados pela crise da Covid-19, mas o público feminino sentiu esses efeitos de forma mais contundente.

Empreendedores atingidos pela pandemia com a perda de faturamento mensal
Como os empreendedores usam a tecnologia na gestão financeira:
Setor em que as mulheres empreendedoras mais atuam

Relação entre índice de taxas de juros pagas e inadimplência (% a.a.)

No próprio reflexo

Roberta Oliveira, 20, cresceu vendo a mãe, Rozana Marcia, cuidar do irmão caçula – o menino, ainda bebê, apresentou problemas de saúde –, gerir as tarefas domésticas, bem como as finanças da casa, e correr atrás de empregos temporários para complementar a renda da família. Quando a matriarca saía para trabalhar, Roberta era quem ficava responsável pelo irmão.

Maicon começou a desenvolver problemas respiratórios por volta dos 2 meses de idade, e com 4 anos teve uma parada cerebral. O quadro fez com que o garotinho perdesse os movimentos, e ele ficou acamado até os 12 anos, quando faleceu, cerca de dois anos atrás.

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Roberta Oliveira cresceu vendo a mãe cuidar do irmão caçula – o menino, desde bebê, apresentava problemas de saúde

O contato com o irmão fez crescer em Roberta o desejo de seguir carreira na área da saúde. “Desde pequena, eu cuidava muito dele. Hoje em dia, ele não está mais aqui, mas acredito que, ainda que não pude ajudá-lo, poderia ajudar os irmãos de outras pessoas”, salienta. É com esse foco que a jovem, desde que terminou o Ensino Médio, estuda para ingressar em uma faculdade de fisioterapia.

Além dos próprios planos, Roberta precisa cuidar dos sonhos da filha de 2 anos e ajudar como pode com as finanças da casa, no município de Poá, região metropolitana da zona leste de São Paulo. Durante a semana, ela e a filha passam a maior parte do tempo sozinhas. Rozana trabalha como secretária do lar e frequentemente dorme no serviço.

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Além dos próprios planos, Roberta precisa cuidar dos sonhos da filha de 2 anos e contribuir, dentro de suas possibilidades, com as finanças da casa

Cuidar para que as contas fechem no fim do mês é uma equação de alta complexidade. Com o pouco dinheiro que entra, elas têm de fazer uma lista de prioridades a fim de decidir qual conta será paga. O sonho de Roberta é dar um futuro melhor para a família, bem como ajudar outras pessoas.

“Toda essa situação certamente afeta o emocional, e estar desempregada me abala mais ainda”, afirma Roberta. Até o início da pandemia, ela trabalhava em um supermercado. No ano passado, foi demitida sem justa causa.

“Eu saí do emprego porque meu gerente não gostava de mim. Senti que era discriminação, não só pela minha personalidade, mas também por ser negra, mulher e bissexual”, explica. Qualquer proximidade com outras mulheres, ou até mesmo abraços em amigas no local de trabalho, era motivo de reclamação.

A busca por recolocação no mercado de trabalho também tem se mostrado cheia de entraves. “Sinto que as pessoas julgam como eu me visto, e já ouvi perguntas sobre a minha religião. Sempre há algum tipo de preconceito ou discriminação, em todos os lugares.”

Nos últimos meses, a jovem passou a fazer parte do projeto Gerando Falcões, organização social que atua em uma estratégia de rede, em periferias e favelas, com o objetivo de formar jovens líderes a partir da capacitação e do desenvolvimento socioemocional.

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Nos últimos meses, a jovem passou a integrar o projeto Gerando Falcões, que ajuda a formar jovens líderes a partir da capacitação e do desenvolvimento socioemocional

Na visão de Roberta Guilherme de Melo, gerente de qualificação profissional da ONG, o empoderamento financeiro anda de mãos dadas com a realização dos sonhos de jovens negras no Brasil. “Costumo dizer que sem planejamento não existe projeto. Falar em dinheiro é também focar em qualidade de vida, muito além de trabalhar para pagar as contas”, pontua.

No caso de Roberta, que almeja entrar na faculdade de fisioterapia, e mudar a vida da filha e ajudar a mãe por meio do ensino, conseguir planejar um futuro é recuperar um olhar carinhoso sobre si mesma, que estava perdido sob a ótica da necessidade. “Eu tenho me sentido muito bem, e me sinto muito grata. Antes, eu olhava no espelho e não conseguia ver alguém com futuro. Hoje, eu me imagino sendo alguém”, diz.

Fábio Vieira/Metrópoles
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“Eu saí do meu último emprego porque meu gerente não gostava de mim. Senti que era porque eu sou negra, mulher e bissexual”, diz Roberta

Poupança dos sonhos

A necessidade também fez a professora Izabel dos Santos, 46, se tornar empreendedora. Mas é a liberdade de ter o próprio negócio que sustenta a promessa de realizar um desejo antigo, que parecia inalcançável. Nem só de grandes feitos e de mudanças extraordinárias vive o potencial de dominar o próprio poder financeiro.

Mineira de Formoso, cidade a cerca de 850 km de Belo Horizonte, Izabel veio para Brasília aos 17 anos para trabalhar como secretária do lar em uma casa de família, sem nunca ter estudado. Ao chegar, precisava pedir ajuda da vizinha para escrever coisas simples, como a lista de compras. O incentivo para estudar veio da empregadora, que a acompanhou até o fim da graduação.

Logo que terminou o Ensino Médio, a mineira conseguiu vaga para cursar pedagogia em uma faculdade particular na Asa Sul, pelo sistema de cotas. Com o dinheiro do salário como secretária do lar e de um estágio na função de ajudante de classe, Izabel construiu, tijolo por tijolo, a própria casa, no Jardim ABC, bairro da Cidade Ocidental (GO).

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Com o dinheiro do salário, Izabel dos Santos construiu a própria casa, no Jardim ABC, bairro da Cidade Ocidental (GO)

Após a graduação, ela foi contratada como professora da educação infantil, mas por causa do ensino remoto imposto pela pandemia acabou demitida. “Fiquei pensando o que eu iria fazer da minha vida, e cheguei à conclusão de que faria o que sei fazer. Sempre tive o espírito de empreendedora, e percebi que em qualquer situação ninguém deixa de comer. Comprei um carrinho de açaí e, com ele, consegui pagar as contas.”

As vendas começaram por um anúncio no WhatsApp, e hoje Izabel tem um cantinho com mesas e cadeiras próximo à feira da cidade. A garantia de que o dinheiro não vai faltar no fim do mês é pautada em uma reserva de emergência, costume herdado da família. “Sempre deixo um valor reservado e faço o cálculo do quanto vou precisar para pagar tudo. Se eu vir que as coisas estão muito apertadas, piso no freio”, explica.

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Após ser demitida, Izabel comprou um carrinho de açaí e, com ele, conseguiu pagar as contas

Além do compromisso com os gastos fixos, Izabel faz questão de poupar um pouco para cuidar de si, e todo mês reserva parte do salário para concretizar um sonho, que não envolve a sala de aula. “Tudo que eu consigo tirar de lucro, que sobra do que eu recebo, tirando os meus gastos, eu separo como uma pequena poupança para o meu sonho”, compartilha.

Izabel deseja conhecer o Brasil inteiro sem deixar de lado o próprio sustento. Para isso, ela vai apostar na mobilidade de um motorhome para continuar vendendo a iguaria e até outros tipos de lanches. “Costumo dizer que sonho tem de ter vida. Para isso, a educação financeira é tudo — não adianta só querer, você tem de ter foco. Todo mês, tiro um pouquinho dali, coloco isso aqui para realizar meu sonho, e assim você vai fazendo.”

Três dicas para gerir bem o próprio
dinheiro, segundo especialistas:

“Sem orçamento não existe projeto”

Roberta Guilherme de Melo, gerente de qualificação profissional da ONG Gerando Falcões, defende a importância de colocar o planejamento financeiro na rota dos sonhos. O primeiro passo para ter controle orçamentário, na visão dela, é anotar e ter noção dos próprios gastos. A partir do momento em que você traz esse dado à luz, é mais fácil saber onde investir e como poupar para alcançar seu objetivo.

Reserva de emergência

Como uma espécie de fundo próprio, a reserva funciona para suprir qualquer gasto de urgência. O valor deve ser calculado de acordo com sua disponibilidade orçamentária e varia entre três e 12 meses da despesa mensal da pessoa ou da família. Jandaraci, administradora e especialista em finanças, recomenda: “Separe o dinheiro em bloquinhos. Deixe uma parte fixa e intocável para o ‘leitinho das crianças’ – nela você não mexe. O restante pode ser alocado para outras necessidades”.

Opções democráticas de investimento

Atualmente, existem investimentos a partir de R$ 1, como explica a economista Gabriela Chaves. “O desafio para quem ganha pouco é muito grande, porque estamos em um contexto em que os preços estão cada vez mais altos no Brasil. Por isso, a nossa dica é bem simples: comece investindo pelo menos 1% do que você recebe. Por mais que seja pouco, faz uma diferença muito grande.”

Expediente

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