Dez anos após a ação da Polícia Federal que escancarou o esquema de corrupção espalhado pelo alto escalão dos poderes Executivo e Legislativo do Distrito Federal, personagens que atuaram para desvendar o labirinto da propina que compunha a Caixa de Pandora continuam em cena. O combate aos desvios de verba pública alçaram promotores de Justiça a cargos estratégicos em Brasília e nacionalmente. Muitos atuaram em outro escândalo: a Operação Lava Jato.

Um desses profissionais é Raquel Dodge. Durante a Caixa de Pandora, a então subprocuradora-geral da República foi a chefe da força-tarefa criada para investigar as denúncias do esquema envolvendo empresários, políticos e gestores do DF.

Ao lado do titular da Procuradoria-Geral da República (PGR) à época, Roberto Gurgel, Raquel Dodge redigiu o pedido de prisão contra o governador José Roberto Arruda, em fevereiro de 2010. Ela também assina a denúncia de todos os envolvidos no escândalo.

A atuação de Raquel Dodge a ajudou, anos mais tarde, a chegar ao comando da PGR. Ela chefiou o órgão – e o Ministério Público Federal (MPF) – entre setembro de 2017 e o mesmo mês de 2019, quando assumiu Augusto Aras, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL). Pouco tempo antes, em dezembro de 2018, houve também alteração importante no Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT).

Após quatro anos à frente do MPDFT, Leonardo Bessa foi substituído por Fabiana Costa. A troca de comando no Ministério Público local repercutiu também em mudança na composição do centro de investigação contra a corrupção do órgão, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), antigo Núcleo de Combate às Organizações Criminosas (NCOC).

Mesmo com a mudança, um dos promotores que acompanharam as diligências desde o começo foi mantido. Hoje na Promotoria de Defesa da Saúde (Prosus), Clayton Germano segue trabalhando nos desdobramentos da Caixa de Pandora. Ele e o promotor Sérgio Bruno formaram o time responsável por investigar os acontecimentos que antecederam a operação. Foram os primeiros, por exemplo, a ouvir Durval Barbosa, delator do esquema.

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A visão do promotor de Justiça

Confira o balanço que Clayton Germano faz sobre a operação

Como o senhor classifica esses 10 anos da Operação Caixa de Pandora?

Vejo esse período de maneira bem exitosa. O MPDFT fez as investigações, propôs as ações penais e de improbidade e muitas delas foram julgadas procedentes pela Justiça. Estamos aguardando as demais com a mesma confiança de que serão julgadas procedentes e as pessoas imputadas serão condenadas pelos crimes que praticaram.

Como foi acompanhar uma das primeiras delações feitas no país?

Eu e o promotor Sérgio Bruno colhemos o depoimento do Durval Barbosa. Naquele momento, só o ouvimos e encaminhamos as informações para o procurador-geral da República à época, Roberto Gurgel, que designou Raquel Dodge para trabalhar no caso. Nesse depoimento, ele entrega tudo, mas como implicava a questão do foro de prerrogativa, com investigação contra o governador, a competência era da Procuradoria-Geral da República e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Quais foram os maiores obstáculos do Ministério Público?

As principais dificuldades para investigar e processar pessoas é que nosso sistema processual é ruim. No Brasil, temos o costume de querer aumentar as penas dos crimes como resposta. Na verdade, o que o Congresso Nacional precisa fazer é mudar a lei processual. O nosso Código Processual é ruim e, por isso, dá ensejo a essa demora, que é muitas vezes causada pelos advogados. São inúmeros recursos, pedidos protelatórios, sempre no sentido de impedir que a ação chegue ao fim e os acusados sejam punidos pelos seus crimes.

Qual a importância dessas apurações para o MPDFT?

Foi um trabalho inédito. Vários promotores estavam atuando no caso e foi muito importante para que cada um, com sua experiência, pudesse contribuir para fazer o trabalho efetivamente vingar. Fico muito satisfeito em fazer meu trabalho. A consequência dele é cumprir o que a lei prevê. O que a sociedade quer do Ministério Público é isto: fazer valer os seus direitos e, no caso que as pessoas estejam se utilizando da sua condição política ou econômica para praticar crimes, que o MP possa fazer valer o interesse coletivo.

Como foi acompanhar os desdobramentos da operação?

O MPDFT é uma instituição coletiva, não é só de um promotor ou de uma promotora. Esse trabalho feito em conjunto dá satisfação, especialmente quando todos se empenham para que a tarefa chegue ao fim a que se destina.

O senhor acredita que a população seguirá sem ver a conclusão do caso?

Nesses 10 anos, o Ministério Público trabalhou, foram ajuizadas ações penais, de improbidade. Há julgamentos na primeira instância, outras em segunda. Temos de levar em conta que muita coisa foi feita nesse período. Réus ficaram inelegíveis por conta de ações. Foi comprovado o esquema de compra de deputados e a existência da organização criminosa que estava instalada no poder, desviando recursos públicos da administração.

Quanto já foi ressarcido aos cofres públicos?

O valor atualizado do prejuízo apurado é de R$ 2,8 bilhões. Embora nada tenha sido restituído ainda, estamos com bens bloqueados das pessoas processadas. É como se você tivesse um dinheiro em caixa, mas não pudesse usá-lo. Mas, no tempo e no modo oportunos, esses recursos serão liberados. Como se trata de verba de condenados em primeira e segunda instâncias, a gente ainda não pode executá-la. No entanto, embora não tenham sido condenados definitivamente, os bloqueios garantem o pagamento futuro.

Qual é a expectativa de agora em diante?

Expectativa é a que já ocorre. Na medida em que os processos estão sendo julgados – e estão sendo julgados procedentes –, confirmam-se as ações do Ministério Público. Fazendo uma reprise, ao longo desses anos, diversos políticos foram considerados inelegíveis, como o próprio Arruda. Queremos dar respostas à população, sempre tendo em conta o interesse público.

Lava Jato

Também atuante e chefe do NCOC à época da operação, o promotor Sérgio Bruno foi designado para a Lava Jato. Nas memórias que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot registrou recentemente no livro Nada Menos que Tudo, ele revela os motivos de ter pinçado dois promotores de Justiça para contribuir na Lava Jato.

Mesmo enfrentando resistência interna de seus colegas da PGR, Janot manteve convicção de que a Caixa de Pandora havia graduado integrantes do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) a investigar o maior esquema de corrupção já descoberto no país.

Conta Janot em seu livro:

“Na primeira fase das investigações, o grupo de trabalho era coordenado pelo procurador regional Douglas Fischer, que já era, desde o início da minha gestão, chefe da assessoria criminal. Autor de vários livros, reconhecido nos meios acadêmicos e, claro, entre os colegas, Fischer foi fundamental na primeira jornada. Mas, com o passar do tempo, como tinha que viajar com frequência para o Rio Grande do Sul, onde tinha deixado família, tive que buscar uma alternativa. Chamei o promotor Sérgio Bruno Fernandes, que comandava o grupo de investigações sobre o crime organizado no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, para fechar a equipe.

Foi um grita geral. Um dos colegas veio me dizer que aquilo não daria certo, que não faria sentido um promotor coordenar um grupo de procuradores da República. A Lava Jato era uma investigação nossa, ou seja, de procuradores, não de promotores. Eu respondi que aquela investigação era do Ministério Público. Disse também que, ao contrário de todos ali, SB, como o chamávamos, tinha uma longa experiência sobre o crime organizado.”

Como coordenador do NCOC, Sérgio Bruno foi um dos promotores que tiveram contato inicial com as revelações bombásticas de Durval Barbosa, o homem que confessou seus crimes de corrupção e entregou dezenas de comparsas de colarinho-branco. Pelo alcance e repercussão do caso, a delação de Durval tornou-se emblemática. Foi a primeira vez em que um governador no exercício do cargo parou atrás das grades.

Seis anos depois, Sérgio Bruno reaparece nos bastidores da megaoperação Lava Jato. Com atuação discreta, o promotor do MPDFT não era conhecido do público em geral quando tomou os depoimentos dos irmãos Batista, da JBS, em uma das fases mais barulhentas da Lava Jato.

Antônio Cruz/ABr

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Sob a mira dos investigadores

Relembre outros personagens importantes na apuração da Caixa de Pandora além de Raquel Dodge e Rodrigo Janot

As audiências, com perguntas muitas vezes formuladas por SB, foram gravadas e amplamente noticiadas. Anônimo para a maioria, era prontamente reconhecido por aqueles que acompanhavam os desdobramentos da Pandora. Virou notícia quando, durante depoimento, deu uma dura no empresário Emílio Odebrecht.

O acordo feito com Durval foi duramente criticado e questionado pela defesa dos réus. O benefício atenuou substancialmente as penas em 19 processos do delegado aposentado. Com dimensão muito maior, a Lava Jato amplificou também os ataques ao instituto da delação premiada.

Desde então, apesar das mudanças no país e no comando dos órgãos, o Ministério Público mantém firme posicionamento institucional de defesa da Operação Caixa de Pandora e exige punição aos culpados. Ao Metrópoles, o Gaeco afirmou, por meio de nota, que “continuará trabalhando para que haja a devida condenação de todos os que dilapidaram o patrimônio do Distrito Federal. A sociedade merece resposta efetiva da Justiça”.

Leonardo Bandarra e Deborah Guerner: Pandora fez o MP cortar na própria carne

O esquema montado pelos envolvidos na Caixa de Pandora se alastrou por diversas instituições e não poupou nem mesmo o Ministério Público. Dois personagens que tiveram os nomes – e o currículo – manchados foram Leonardo Bandarra e Deborah Guerner. Na época do escândalo, Bandarra era o procurador-geral de Justiça do DF e Deborah, promotora de Justiça.

Cabe à Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ), como órgão máximo da instituição, coordenar as atividades do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), promover o relacionamento institucional com órgãos públicos e praticar atos de gestão administrativa e financeira que visem à boa gestão do Ministério Público por meio de suas promotorias de Justiça. O procurador-geral de Justiça é o chefe do MPDFT.

Embora a Operação Caixa de Pandora tenha sido deflagrada em 2009, Deborah Guerner e Leonardo Bandarra passaram a incluir a lista de réus a partir de 2011. Na denúncia, oferecida pelo Ministério Público Federal (MPF), a dupla foi acusada de receber propina de Durval Barbosa para passar informações de operações policiais em que figurava como alvo.

Além disso, a dupla respondeu a processo por extorsão contra José Roberto Arruda. Segundo o MPF, houve a tentativa de cobrar R$ 2 milhões do ex-governador para que vídeos contra ele não fossem divulgados.

Os dois foram denunciados por extorsão, formação de quadrilha, concussão e quebra de sigilo funcional. Devido à prerrogativa de função, o foro competente para julgá-los é a Justiça Federal. Jorge Guerner, então marido de Deborah, está no caso como corréu.

Valter Campanato/Abr

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Desmaio no TRF-1

Em sessão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), na qual o órgão decidiria se a denúncia contra ambos seria aceita, em julho de 2011, Deborah Guerner desmaiou e foi levada ao posto médico da Corte. A promotora saiu carregada, enquanto câmeras de tevê registravam o momento. Jorge Guerner também passou mal e recebeu atendimento.

Em outra circunstância, Deborah interrompeu a sessão, aos berros, alegando que estava sendo injustiçada, repetindo o comportamento apresentado em audiência anterior do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Antes do episódio, a Polícia Federal havia apreendido vídeo no qual Deborah e Jorge Guerner ensaiavam técnicas para demonstrar problemas mentais. De acordo com as investigações, o casal teria contratado dois médicos em São Paulo para ensiná-los a aparentar insanidade diante de perícias médicas.

Veja vídeo:

Contratos de lixo

As investigações apontaram suspeita de que Deborah Guerner teria trabalhado para manter negócios na área de contratos de lixo, tendo como beneficiário Jorge Guerner.

Informações do MPF e do CNMP indicaram que a promotora participou de reuniões, em 2006, no gabinete de Leonardo Bandarra. Na ocasião, foram tratados interesses de sócios do marido dela a respeito de contratos de limpeza urbana do DF.

À época, os procuradores regionais da República Ronaldo Albo e Alexandre Espinosa mantinham como principal linha de investigação a relação de Deborah e Jorge com negócios de lixo.

Arruda tentava fazer licitação para a coleta de lixo, que até então operava com contratos emergenciais. Deborah Guerner intermediou reuniões em que representantes do GDF discutiram proposta de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) relacionado aos contratos até então sob responsabilidade exclusiva da Qualix Serviços Ambientais.

A suspeita era de que a promotora queria negociar o fim do monopólio da Qualix e colocar no mercado a Solurb International LLP, da qual seriam sócios Jorge Guerner, Renato Cortopassi Salles, Roberto Cortopassi Júnior e Froylan Santos Pinto. O interesse era no aterro sanitário de Brasília.

“Deborah e Jorge Guerner não queriam que a licitação fosse adiante. Arruda já estava sofrendo pressão. Pediram R$ 2 milhões para não divulgar supostos vídeos. Era um instrumento de extorsão, pressão. Isso já acontecia em julho de 2009, antes de a operação ser deflagrada. Durval queria manter seus interesses e estava usando isso dentro do Ministério Público”, alega o advogado de Arruda, Paulo Emílio Catta Preta.

Ed Ferreira/Estadão Conteúdo

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Condenações

Deborah Guerner foi condenada por dois crimes: o de extorsão, junto com Jorge Guerner, e o de concussão. Leonardo Bandarra responde por concussão. Ambos não foram considerados culpados na denúncia de formação de quadrilha.

No caso de extorsão, o desembargador federal Kassio Nunes Marques pediu a condenação de Deborah e do marido da promotora, porém absolveu Bandarra. Segundo o magistrado, não foram encontrados elementos que comprovassem o envolvimento dele. “O fato de Bandarra ter participações em outros delitos dentro da clara organização criminosa não implica crime específico de extorsão, que hoje é julgado nesta Corte”, salientou.

Em maio de 2019, a Corte Especial do TRF-1 julgou o caso de concussão e violação de sigilo funcional e condenou ambos. Os dois são suspeitos de pedir a Durval Barbosa a retirada de uma matéria jornalística em desfavor de ambos. Com base em acusação do MPF, eles teriam usado função pública para receber o benefício.

Bandarra teve pena fixada em 7 anos e 7 meses de reclusão. Deborah Guerner, de 7 anos e 9 meses. A sentença ainda determinou a perda do cargo que eles ocupavam no MPDFT. Jorge Guerner também foi condenado a 1 ano e 4 meses de reclusão. Todos recorreram ao STJ. Como não houve trânsito em julgado, os brasilienses ainda bancam os salários dos integrantes afastados do Ministério Público.

De acordo com o Portal da Transparência do MPDFT, o contracheque de outubro deste ano registrou o pagamento, líquido, de R$ 26.510,50 para Bandarra. No caso de Deborah, o valor foi de R$ 22.607,26.

Leia na terça-feira (03/12/2019), no penúltimo capítulo da série, as impressões de repórteres que cobriram o caso há 10 anos.

Clique neste link e veja o que dizem os réus.

DIRETORA EXECUTIVA
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EDITORA EXECUTIVA
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COORDENAÇÃO
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EDIÇÃO
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REPORTAGEM
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