Biografia de um crime sem castigo

A cada 11 minutos, um estupro é cometido no Brasil. No entanto, apenas 1% dos agressores são punidos. As vítimas são obrigadas a conviver com o medo e as marcas que a violência sofrida deixam no corpo e na alma. Especialistas apontam caminhos para mudar essa triste realidade

Leilane Menezes

Uma parada de ônibus, a cama dividida com o marido, o quarto de um amigo ou a saída da igreja. Não há espaço seguro para ser mulher. Qualquer lugar, mesmo o aparentemente sagrado, pode se transformar no cenário do pior pesadelo feminino.

Ser estuprada é um dos maiores temores – senão o maior – de gente de todas as crenças, cores e classes sociais. Entre a população feminina, isso é ainda mais evidente. Pesquisa do Instituto Datafolha apontou que 85% das brasileiras entrevistadas tinham medo de sofrer esse tipo de violação. Entre os homens, o percentual foi de 46%.

O corpo da vítima – tratado como terra de ninguém por seu algoz – convive com marcas visíveis e ocultas, que afetam a saúde física e psíquica da pessoa agredida. É comum que as sobreviventes do abuso desenvolvam estresse pós-traumático, depressão e crises de ansiedade. Elas aprendem a renascer.

O tratamento psicológico e outros cuidados de saúde tornam-se os principais caminhos para que essas pessoas reencontrem seu lugar no mundo, após passar por tal brutalidade.

Um fator, entre muitos, dificulta ainda mais a superação do trauma: a impunidade do agressor. Às vítimas, é reservada a condenação. A sociedade, geralmente, culpa-as pela violência sofrida. De acordo com o levantamento do Datafolha, um em cada três brasileiros concorda com a frase: “A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”.

Esse é o único crime no qual a vítima precisa provar sua inocênciaDebbie Smith – sobrevivente

Aos agressores, não raramente, dá-se a liberdade de andar pelas ruas à procura de novas vidas para destroçar. Parte das pessoas clama por penas mais duras, pelo imediato (e mais longo possível) encarceramento dos autores, ainda que sem qualquer tipo de reabilitação. Mas será que esse é o caminho para uma comunidade mais segura, que respeite o corpo do outro?

“O estupro já tem uma das maiores penas do Código Penal. Nem a prisão perpétua vai diminuir o número de crimes. [Esse tipo de violência] É o fruto de uma sociedade machista”, explica a advogada Maíra Fernandes, integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro.

No mês em que se celebra o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher (25 de novembro) e da campanha mundial “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, o Metrópoles ouviu oito vítimas de estupro e nove especialistas em saúde mental, direitos humanos, justiça e segurança pública, para entender qual é o caminho da mudança.

Dia da Não Violência

Em 25 de novembro de 1960, as irmãs Pátria, Minerva e Maria Teresa, apelidadas de “Las Mariposas”, foram assassinadas pelo ditador Rafael Leônidas Trujillo, ex-presidente da República Dominicana. As três lutavam contra a ditadura e pelos direitos das mulheres.

Em 1999, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas instituiu a data da morte das “mariposas” como Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher. É um convite à reflexão global sobre o tema.

25 de
NOVEMBRO

Segundo os experts, fazer justiça não é o maior desafio. O principal objetivo é evitar que os crimes aconteçam. Para isso, é preciso entender por que homens estupram. Explicações sobre a alta incidência de abusos sexuais e a respeito da impunidade trazem à tona o termo cultura de estupro, a origem do problema.

Compreender estatísticas, dar voz às vítimas, reabilitar agressores e evitar que novos se formem são ingredientes essenciais dentro da complexa receita de como pensar um mundo no qual mulheres não andem na companhia permanente do medo.

O que é cultura de estupro?

Trata-se de um conjunto de fatores que levam a mulher a ser tratada como ser humano de segunda categoria dentro da sociedade.

Na década de 1970, feministas norte-americanas cunharam essa expressão, que, segundo o Centro das Mulheres da Universidade Marshall, nos Estados Unidos, é usada para descrever um ambiente no qual a violência sexual contra as mulheres é normalizada na mídia e na cultura popular.

Na cultura de estupro, a mulher é colocada como coisa. Os homens podem fazer o que quiserem com o corpo dela. O problema está nas propagandas de TV, no descrédito à palavra das mulheres quando são vítimas de abusos, no machismo que não conseguimos vencer Maíra Fernandes, advogada

ÀS VÍTIMAS,
A PRISÃO

O Brasil registra um estupro a cada 11 minutos, segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

O mesmo levantamento aponta que 49.497 mil pessoas foram estupradas no Brasil em 2016 (89% mulheres, sendo 51% delas negras). Esse total indica inacreditáveis 135 casos por dia. Os números incluem também os chamados estupros de vulneráveis – quando os alvos são meninas e meninos com idades entre zero e 14 anos. Crianças e adolescentes representam 70% das vítimas, e a maior parte da violência dirigida a eles é cometida por quem deveria zelar por seu bem-estar: parentes ou conhecidos da família.

Os números não mentem, mas omitem a realidade: somente 10% das violações são denunciadas, de acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Assim, estima-se que, por ano, o total de vítimas no país chega a quase 500 mil.

Organizações globais, como a Anistia Internacional, já afirmaram que o governo brasileiro é incapaz de “respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos de mulheres e crianças”, conforme consta no relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo em 2016-2017”.

A advogada Leila Linhares integra comissão da Organização dos Estados Americanos (OEA) que fiscaliza a implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Ela ressalta que estupros fazem parte da história do mundo e, no Brasil, tornaram-se comuns nos tempos da colonização e da escravidão.

Justamente por isso, explica a especialista, mulheres negras ainda são os alvos mais frequentes desse crime. “O corpo da negra de pele clara é sexualizado, e o da negra de pele escura é tratado como selvagem”, aponta. “As mulheres escravizadas, negras e indígenas, foram objetos de ações sexuais predatórias. Isso se manteve na nossa sociedade. Mulheres deixaram de ser propriedade de um senhor para ser de vários”, diz Leila.

Dessa forma, avalia a advogada, o estupro é uma demonstração de poder e posse masculina, além de uma reação extrema e violenta ao empoderamento feminino.

O aumento dos casos, além da maior denúncia feita pelas mulheres, corresponde também a uma reação de um machismo extremo, violento, contra a ascensão social feminina. Hoje em dia, podemos estudar, trabalhar, ter diversão, andar na rua, na hora em que for necessário. O estupro é uma das maneiras de dizer: ‘o lugar de vocês é dentro de casa’.
Leila Linhares

Quando se tornou vítima desse crime, a estudante Yasmin Marques, 19 anos, ouviu de muita gente que aquilo não teria acontecido se ela estivesse em casa. A jovem voltava de um bar, numa noite de Quarta-feira de Cinzas, e foi estuprada na parada de ônibus da 309 Norte.

Yasmin Marques foi estuprada atrás de uma parada de ônibus, na Asa Norte: “Disseram que a culpa era minha, pois estava voltando do bar, à noite”

Aquele endereço, cercado por escolas, será lembrado para sempre como o cenário onde o pior pesadelo de Yasmin se tornou realidade. Ali, o temor ganhou rosto e cheiro. “O estupro acontece em casa e na rua, com prostitutas e freiras. A primeira pergunta que muita gente me fez foi se eu tinha bebido”, relata a jovem.

A servidora pública Juliana Jardim, 30 anos, também sobreviveu a um ataque, que veio de onde menos esperava: ela foi violentada pelo próprio companheiro, agora ex-marido. “É difícil para muita gente entender que um marido pode estuprar a mulher, mas foi isso que aconteceu”, diz.

A violência veio de onde Juliana Jardim menos esperava: o então marido cometeu abuso sexual

Apenas 52 países no mundo consideram crime quando o marido estupra a mulher com quem se casou, segundo estudo da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, a Lei Maria da Penha reforça a punição, mas a Justiça entendia, durante muito tempo, que o sexo (inclusive o forçado) era dever matrimonial.

Nas próximas linhas, você vai conhecer a história de Yasmin, Juliana e de outras cinco mulheres que tiveram seus corpos violados. Os depoimentos estão divididos em relatos escritos – nos quais as sobreviventes optaram por não se identificar, e essas histórias foram narradas em áudio pelo Metrópoles – e vídeos – onde duas delas quiseram dar nome à própria dor.

AOS AGRESSORES,
A LIBERDADE

Não há dados nacionais oficialmente compilados que demonstrem quantos casos de estupro terminaram com a prisão do acusado. No estado de São Paulo, apenas dois em cada 10 inquéritos abertos pela polícia são esclarecidos, segundo o Datafolha.

Observando as estatísticas da capital do país, é possível ter uma amostra da realidade. Segundo a Polícia Civil do Distrito Federal, foram registradas oficialmente 3.849 ocorrências de estupro em Brasília e arredores, entre 2012 e 2016. Só em 2017, até setembro, foram 648 registros, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública.

A pedido do Metrópoles, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) pesquisou a quantidade de condenações por estupro nos últimos cinco anos, na capital do país. Apenas 1.132 acusados foram condenados pelo crime nesse período.

Parte desses processos começou antes de 2012. Até chegar ao fim, uma ação criminal fica, em média, 7 anos e 9 meses em andamento, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Sendo assim, não é possível determinar uma porcentagem exata entre essas ocorrências e o número de condenações.

Em todo o país, as punições são muito menores do que o volume de ocorrências. A taxa de condenações por estupro no Brasil gira em torno de 1%, segundo o perito criminal federal e presidente da Academia Brasileira de Ciências Forenses, Hélio Buchmüller, no artigo Crimes sexuais: a impunidade gerada por um Estado omisso.

Unidades da Federação com mais estupros

Estupros a cada 100 mil habitantes por ano

Espírito Santo
4,7
Rio Grande do Norte
5,9
Paraíba
9,4
Goiás
10
Maranhão
14,3
Alagoas
14,9
Ceará
17,2
Bahia
17,7
Minas Gerais
18,7
Piauí
20,3
Pernambuco
21
Distrito Federal
22,4
São Paulo
22,5
Amazonas
23,2
Sergipe
23,9
Tocantins
25,1
Rio de Janeiro
25,9
Pará
36,3
Rio Grande do Sul
36,7
Paraná
37
Rondônia
44,2
Santa Catarina
44,6
Roraima
45,5
Mato Grosso
48,8
Amapá
49,2
Mato Grosso do Sul
54,4

Os dados sobre
o Acre não foram divulgados

11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública

O mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostra que, em junho de 2014, pouco mais de 12.800 pessoas estavam presas por crimes contra a dignidade sexual.

Um condenado por estupro cumpre, no mínimo, dois anos de reclusão. Em 2013 e 2014, foram registrados, respectivamente, 51.090 e 47.646 casos de estupro.

“Temos, dessa forma, que os pouco mais de 12.800 [presos] correspondem a cerca de 13% [dos autores] das ocorrências de crimes sexuais em dois anos. Se considerarmos a estimativa do Ipea, de que a ocorrência de estupros pode ser até 10 vezes maior do que o total notificado, teríamos algo próximo a 1% de punição”, calcula Buchmüller.

Os números são aproximados, pois não consideram a reincidência. “Há também uma carência de outros dados fidedignos, como porcentagem de presos provisórios, entre outros. De qualquer maneira, apesar da imprecisão, o cálculo assusta e explica a sensação geral de impunidade no Brasil”, afirma o perito.

Punimos pouco?

Segundo a advogada Maíra Fernandes, a explicação para a impunidade não é uma falha nas leis. Tudo começa na falta de preparo das instituições públicas para acolher as vítimas.

O 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública informa que 47,2% dos profissionais de atendimento à mulher em delegacias não receberam treinamento para desempenhar essa função.

“Elaboração de provas é muito importante, deve-se respeitar todo o processo legal, para não culpar inocentes. Só que é evidente a falta de interesse das autoridades em investigar esse tipo de crime, devido à cultura de estupro”, explica a advogada.

A forma de ouvir as testemunhas e vítimas em uma delegacia, por exemplo, pode levar a um processo sem evidências. Mulheres reclamam de serem coagidas e humilhadas em delegacias e tribunais, graças ao julgamento moral das autoridades.

“Uma boa investigação é essencial para o desfecho justo, e ela já começa errada quando o agente de polícia não sabe receber a vítima de maneira correta, e já se inicia com perguntas carregadas de preconceito”, afirma Maíra.

A advogada e ativista dos direitos das mulheres ressalta que, na maioria dos casos, a palavra da vítima, que tende a ser desacreditada por machismo, é a única prova possível. “O estupro é um crime sem testemunha, geralmente”, lembra.

Quando decide denunciar, a mulher não encontra um ambiente acolhedor. Se consegue vencer a primeira barreira, que é a da culpa criada pela pressão social, ela muitas vezes não encontra um policial preparado para acolhê-la, um juiz que não faça perguntas abusivas, um promotor que não a transforme em culpada pelo próprio sofrimentoMaíra Fernandes

A promotora Mariana Távora, titular da 3ª Promotoria de Justiça de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), reforça a importância de se levar em consideração o que diz a mulher.

“A cultura do estupro também está entre quem julga, há muitos juízes machistas. O baixo índice de condenações vem da desvalorização da palavra da vítima”, reforça. Daí entra em cena a importância do banco de DNA, que produz provas incontestáveis.

O aliado menosprezado

Buchmüller aponta o uso do banco de DNA – onde ficam guardadas as amostras genéticas de criminosos já condenados – como principal aliado da polícia no combate a esse tipo de crime. Ele ressalta que a maior parte dos estupradores é reincidente.

A regra é coletar amostras das cenas de crime ou do corpo das vítimas, para poder compará-las com os exemplares já guardados no sistema. Assim, se um homem cometer um estupro no DF, mas já tiver passagem pela polícia em qualquer lugar do país, ele poderá ser identificado pelo cruzamento de informações, chamado de “match”.

Desde 2010, cada estado deveria ter um banco de DNA. Um centro de informações nacional concentra os dados de cada unidade da Federação. Lugares como Tocantins, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Acre e Rondônia, contudo, ainda não fazem essa coleta de informações. Roraima, por exemplo, nem sequer possui um laboratório de DNA.

O DF saiu na frente com um laboratório de polícia desse tipo, mas só desvendou seu primeiro estupro por meio de cruzamento genético em junho de 2016. O Instituto de Pesquisa de DNA Forense (IPDNA) comparou informações biológicas de um condenado por roubo e abuso sexual que estava em liberdade provisória com o sêmen colhido no corpo da vítima, em 2009. O homem de 44 anos cumpria pena em regime semiaberto e teve o pedido de prisão preventiva decretado. Assim, voltou a cumprir pena em regime fechado.

Em março de 2017, a Polícia Civil do DF prendeu o pastor Renato Bandeira, que responde por cinco estupros no Distrito Federal. O DNA dele foi coletado em Belo Horizonte (MG), onde cometeu outro abuso. Dessa forma, quando o DNA das vítimas brasilienses foi inserido no sistema, tal informação genética deu “match” com a de Renato, que já estava cadastrado pelo estupro em Minas Gerais.

Outros tantos estupradores poderiam estar fora das ruas, mas a falta de eficiência do sistema não colabora. A Lei Federal nº 12.654, de 28 de maio de 2012, estabelece que pessoas condenadas por crimes hediondos ou violentos devem ser identificadas geneticamente, mas essa regra segue ignorada.

Como o banco de DNA ajudou a prender um estuprador

“O cumprimento dessa lei ainda é ridículo. Só 2% ou 3% do que deveria estar identificado foi de fato registrado. A culpa não é dos laboratórios, o próprio sistema penitenciário poderia fazer essa coleta, mas não há estrutura”, explica Buchmüller.

O especialista recorre ao relatório semestral de novembro de 2015 da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos para mostrar que apenas 819 indivíduos tiveram seus dados cadastrados nos sistemas criminais estaduais e federal. “Perto dos mais de 14 milhões dos EUA e cerca de 6 milhões no Reino Unido, os números brasileiros ainda são pífios”, admite.

O Banco de DNA é a ferramenta de investigação mais usada no mundo e existe em mais de 60 países. É essencial em casos de estupro, por oferecer provas irrefutáveis em uma situação na qual, geralmente, a palavra da vítima pode ser a única evidência. Isso porque o abuso sexual é um crime que ocorre sem testemunhas, às escuras.

Buchmüller cita o cálculo feito pela economista Jeniffer Doleac, da Universidade da Virgínia (EUA), para exemplificar a importância de equipar a polícia. Doleac descobriu que o custo estimado para se evitar um crime grave, utilizando-se a estratégia de aumentar a pena, gira em torno de US$ 7,6 mil. Para atingir o mesmo fim por meio da contratação de mais policiais, o custo fica entre US$ 26 mil e US$ 62 mil.

“Impedir um crime grave alimentando o banco de DNA, tecnologia largamente utilizada em países desenvolvidos, custa US$ 555. Claro que esses valores têm como referência a realidade de custos nos Estados Unidos, mas a diferença não deixa dúvidas da importância de implementar novas tecnologias e usar a ciência para elucidação e prevenção de crimes, sem prejuízo das outras estratégias”, diz o perito.

O banco de DNA não vai solucionar o problema, mas pode minimizá-lo. Em paralelo, é preciso combater a cultura de aceitação do estupro e a falta de estrutura de investigação nas políciasHélio Buchmüller, perito criminal

Ao olhar para países com bancos de DNA mais bem alimentados, pode-se ter uma noção do quanto perdemos. “O último relatório do Banco Nacional de Dados de DNA do Reino Unido mostra que 63,2% dos vestígios coletados em local de crime e inseridos no banco de dados de DNA coincidem com algum indivíduo previamente cadastrado naquele mesmo banco”, exemplifica.

O que diz a lei

O Artigo 213 do Código Penal define o que é estupro e quais são as punições.

– Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

6 a 10anos de reclusão

– Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos:

8 a 12anos de reclusão

– Se da conduta resulta morte:

12 a 30anos de reclusão

Em 2009, a Lei 12.015/2009 substituiu o conceito anterior de “presunção de violência” (também conhecido como “estupro presumido”) pelo novo conceito de “estupro de vulnerável”.

A pena para estupro de vulnerável – pessoa com menos de 14 anos, com deficiência intelectual ou que esteja embriagada ou dopada a ponto de não conseguir responder pelo próprio corpo – varia entre 8 e 15 anos.

Exemplo estrangeiro

Nos Estados Unidos, a relevância do banco de DNA para resolução de casos de estupro tornou-se centro do debate sobre violência sexual em 1989, após uma dona de casa, Debbie Smith, ser estuprada dentro do próprio lar, enquanto lavava roupas, em Williamsburg, Virgínia.

Eu estava em casa, cuidando da minha família, quando tudo aconteceu. Nenhuma mulher está segura quando se trata de estuproDebbie Smith, sobrevivente

Um homem mascarado invadiu a residência pela porta dos fundos e a violentou, enquanto o marido dela, Robert, dormia no andar de cima. Debbie não conseguiu ver nem sequer os olhos ou a cor da pele do agressor, que a deixou de costas o tempo todo.

“Não pude fazer um retrato falado, tudo que eu tinha eram as provas que ele havia deixado no meu corpo”, lembra Debbie, em entrevista ao Metrópoles. Ela esteve em Brasília para falar a peritos da Polícia Federal sobre a importância do trabalho forense com material genético.

Robert convenceu Debbie a ir até a polícia e fazer a denúncia. Foi coletado material genético, e as informações do criminoso passaram a fazer parte de um banco de dados. A polícia conseguiu identificar o homem somente seis anos depois, devido à grande quantidade de amostras que foram testadas no país, naquele período.

“Eu não conseguia parar de ouvir a voz dele ameaçando me matar se eu contasse a alguém. Eu tinha medo por mim e pela minha família, e fiquei suicida por um tempo. Isso tirou toda a alegria da minha vida”, lembra Debbie. “Só consegui encontrar a paz quando soube que ele estava preso e não faria isso com mais ninguém. O teste de DNA me devolveu a minha vida”, afirma.

O caso de Debbie foi o quarto nos Estados Unidos a ser resolvido com auxílio do DNA. Ela tornou-se ativista pelas sobreviventes de estupro e criou uma ONG chamada Hope Exists After Rape Trauma (existe esperança depois do trauma do estupro).

Nos EUA, estima-se que um estuprador ataque entre 8 e 12 mulheres antes de ser preso. Quantas mulheres poderiam ser salvas?Debbie Smith

A dona de casa norte-americana transformou-se também em um símbolo político da luta pelos direitos das mulheres nos EUA, ao reivindicar que o governo investisse mais verba na investigação desses crimes. A voz de Debbie foi ouvida, e uma lei do país, que destina recursos para realização de exames de DNA em casos de estupro, leva seu nome.

CRIA-SE UM
estuprador

Diante de crimes hediondos, é comum pensar que o criminoso “só pode ser doente”. É preciso enterrar o senso comum: não é necessário ter algum distúrbio mental para cometer um estupro ou assassinato cruel. Pessoas comuns são capazes de atos monstruosos.

“Pedófilos têm disfunção cognitiva e enxergam crianças como pessoas capazes de manter relações de igual para igual. Já outros abusadores construíram socialmente seu perfil de agressor sexual”, explica a psicóloga Fernanda Falcomer, responsável pelo PAV Alecrim, projeto do Governo do Distrito Federal que oferece tratamento psicossocial a agressores sexuais.

A vítima precisa que a denúncia seja feita para romper o ciclo. Quando o autor é responsabilizado, isso dá credibilidade ao que ela falouFernanda Falcomer, psicóloga

A maior parte dos agressores atendidos no PAV Alecrim cometeu violência sexual contra alguém da própria família. Eles são encaminhados a esse tratamento pela Justiça, após cumprirem a primeira parte da sentença em regime fechado e passarem para o semiaberto (quando apenas dormem na penitenciária).

No PAV, eles têm acompanhamento com psicólogo, assistente social e psiquiatra. Participam de sessões individuais e em grupo. O programa, porém, atendeu somente 117 homens desde sua criação e é alvo de críticas por ser considerado insuficiente.

Os discursos dos estupradores têm muito em comum: eles costumam justificar seus atos acusando a vítima. “Ela estava de saia; sentou no meu colo [no caso de crianças]; ela me olhou de um jeito diferente; não disse ‘não’; ela estava sozinha num beco escuro”, são algumas das “justificativas” mais usadas, segundo a psicóloga.

O estuprador está preso, e agora?

Sem acompanhamentos psicológico e social adequados, é provável que o criminoso volte a agir. “A maioria deles retorna ao convívio da família, que os aceita, mesmo que tenham molestado alguém de casa”, afirma a psicóloga. O trabalho do PAV Alecrim é árduo: é preciso convencer esses homens a não repetir o ato.

Homens são criados para responder de forma sexual sempre. Precisamos ensinar aos nossos meninos que ‘não’ é ‘não’; e, às meninas, que elas podem recusar o toqueFernanda Falcomer, psicóloga

“Nós trabalhamos com eles a noção de certo e errado, o autocontrole. Para muitos, é preciso até mesmo explicar que eles cometeram um crime perante a lei”, diz.

Fernanda Falcomer não fala em perspectiva de cura, nos casos de pedofilia. “Trabalhamos para que eles criem recursos para lidar com essa condição. Nós deixamos uma porta aberta na saúde, onde eles possam recorrer para buscar ajuda”, explica.

Terapia para reabilitar

Brasília tem um projeto único no país para ressocializar estupradores. Trata-se do Instituto Personna, instituição sem fins lucrativos que leva psicólogos para dentro dos presídios e acompanha os condenados até um ano após a soltura.

“Nos serviços públicos de reabilitação, tem gente tentando curar agressores em cinco sessões de terapia, lendo a Lei Maria da Penha para o cara. Veja bem, não se cura nem soluço em cinco sessões. Daí dizem que eles não responderam ao tratamento”, explica a doutora em psicologia forense Elisa Kruger, presidente do Personna.

A mãe dela, aos 67 anos, sofreu um estupro. Isso só motivou Elisa a lutar ainda mais pela reabilitação de criminosos – uma forma de proteger também as vítimas. “É normal sentir raiva, mas não é normal agir por ela. Algumas pessoas, por desconhecimento, me acusam de gostar de bandidos. Eu sou tão contra o que eles fazem que quero evitar que repitam o ato”, diz a especialista.

A construção da masculinidade nociva está nos detalhes, aponta a doutora. Homens não são socializados para entrar em contato com as próprias emoções e usam a violência para se expressar quando não encontram outros recursos. “Entre os 3 mil agressores que tratamos, há uma maioria com histórico de violência familiar e rejeição”, afirma.

A solução para o problema, na visão de Elisa, referência em reabilitação de criminosos sexuais, é a terapia. A equipe do Personna – formada por 47 mulheres e sete homens – faz uma entrevista inicial para conhecer o indivíduo. Depois, realiza-se uma avaliação psicológica com uso de nove “instrumentos”, que são técnicas como teste de personalidade e escalas de psicopatia. Ao final, é emitido um laudo técnico e pericial no qual o melhor tratamento é indicado.

“O tratamento consegue coisas que a prisão é incapaz de fazer. Pesquisas mundiais apontam que, entre todos os crimes, o estupro é o que tem a menor taxa de reincidência se quem o cometeu recebe o tratamento adequado”, ressalta Elisa.

O Personna aposta na Justiça Restaurativa para obter resultados. Se um homem é pego assediando uma mulher no metrô, por exemplo, e é réu primário, ele pode ser “condenado” a dois anos de terapia compulsória, no lugar da pena de reclusão.

Se dentro de todos há a violência, também existe a luz. A gente garimpa o lado bom das pessoas. O amor consegue mais resultados do que o ódioElisa Kruger, psicóloga

“A sociedade ‘de bem’ quer matar o estuprador. Acha que ele tem que ‘virar mulherzinha’ na cadeia. Mas isso só reforça o que esse ‘povo de bem’ pensa: que mulher pode ser estuprada”, avalia Elisa.

Entre os voluntários do Personna, há agressores reabilitados. Um deles cometeu 14 estupros antes de ser preso e receber tratamento psicológico. Hoje, ele ajuda a educar outros homens para que não cometam as mesmas atrocidades.

Os frutos
da agressão

Além de lidar com os traumas da violação física, as vítimas de estupro veem seus direitos reprodutivos ameaçados. Em 8 de novembro de 2017, deputados aprovaram, em comissão especial, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181/2015.

O texto original tratava da ampliação da licença-maternidade para mulheres que tiveram filhos prematuros. No entanto, a comissão alterou o projeto, com o intuito de proibir a interrupção da gravidez em todas as situações, inclusive nas que já são permitidas por lei no Brasil: em casos de estupro, anencefalia do feto ou gravidez com risco de morte para a mãe.

A comissão é formada por 28 deputados, dos quais apenas três são mulheres – 18 dos parlamentares homens que integram o colegiado endossaram a alteração do projeto; apenas uma das deputadas votou contra. O texto da PEC 181/2015 ainda precisará ser aprovado com total de 308 votos, em dois turnos, no plenário da Câmara, para seguir ao Senado Federal.

Direito ameaçado

Mesmo legalizado em alguns casos, o aborto nem sempre é garantido no Brasil. Pesquisa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, revelou que, entre 2013 e 2015, menos de 50% das mulheres que optaram pela interrupção da gravidez após abuso foram atendidas.

Das mais de 5 mil brasileiras que buscaram um hospital para o procedimento, somente 2.442 tiveram sua vontade respeitada. Os dados foram coletados em 68 centros de referência do Ministério da Saúde autorizados a fazer abortos em casos previstos em lei. Desses, somente 37 prestavam o devido atendimento. Dos hospitais avaliados, de acordo com a pesquisa da secretaria, 15 fizeram menos de 10 abortos na última década.

Embora o procedimento em caso de estupro seja autorizado com até 20 semanas de gestação, profissionais que atendem as vítimas podem dissuadi-las da ideia. Eles dificultam o atendimento, apesar de não recusá-lo em princípio.

No Distrito Federal, a Secretaria de Saúde iniciou recentemente treinamento, nas emergências dos hospitais, para capacitar funcionários a acolher essas mulheres. Eles serão ensinados, basicamente, a não julgá-las e a respeitá-las.

Em Brasília, o único local habilitado para fazer aborto legalizado em caso de estupro é o Hospital Materno Infantil (HMIB), na Asa Sul. Na sala de espera, duas mulheres encaram a parede enquanto esperam atendimento. Uma delas segue calada e aguarda a assistente social para falar sobre a gravidez indesejada.

A outra já foi paciente, fez um aborto e voltou para rever a psicóloga. “Como eu daria o meu amor para uma criança que seria a lembrança do pior momento da minha vida? Seria triste demais nascer desse jeito”, disse a moça de 23 anos, que pediu para não ter o nome revelado.

O número de abortos permitidos por lei dobrou, de 2015 para 2016, no HMIB. Ali foram realizadas 66 interrupções no ano passado, segundo a psicóloga e chefe do Programa de Pesquisa e Assistência e Vigilância à Violência, da Secretaria de Saúde do DF, Fernanda Jota.

“Foi um salto muito grande nesse número. Gostaria de acreditar que as pessoas estão tendo mais acesso à informação sobre os próprios direitos, mas isso significa que essas mulheres podem não ter procurado atendimento de emergência após o crime”, afirma Fernanda.

Ela informa que, ao sofrer essa violência, a mulher tem opção de ir direto a um hospital. Não é necessário apresentar ocorrência policial para ser atendida. “Ela receberá auxílio psicológico e medicamentos que deverão ser tomados por 28 dias, entre eles uma pílula do dia seguinte, para evitar gravidez. Ela também será encaminhada para os exames que preservam as provas”, explica.

É preciso procurar o centro de saúde com até 18 semanas de gravidez, para que haja tempo de realizar todo o processo e interromper a gestação, antes do limite previsto na lei.

A mulher que opta pelo aborto passa por, no mínimo, três atendimentos com psicóloga, um encontro com assistente social e uma consulta com ginecologista. Também é feita ecografia para produção de laudo que comprove a data da fecundação.

Poderá ser solicitado, ainda, exame de DNA intraútero, nos casos em que houver dúvida sobre se a gravidez é decorrente de estupro ou de outra relação consentida – o que já foi alvo de críticas de especialistas por colocar em xeque o direito de abortar. Esse processo leva cerca de 10 dias, no HMIB.

“Cria-se uma fantasia de que mulheres chegam ao hospital decididas a abortar. Elas chegam com medo e dúvidas. A equipe não deve opinar. A vontade da mulher é soberana”, afirma Fernanda Jota. Além da interrupção, são oferecidas outras duas escolhas: levar a gravidez adiante com auxílio psicológico ou entregar o bebê para adoção.

Uma paciente foi estuprada agarrada à sua Bíblia, saindo da igreja. Todas as pessoas do sexo feminino estão vulneráveisFernanda Jota, psicóloga

Cerca de 1 milhão de abortos, em geral clandestinos e inseguros, são realizados por ano no Brasil, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A cada dois dias, uma mulher morre por complicações decorrentes de procedimentos ilegais.

Por qual caminho
passa a solução?

A baixa representatividade feminina nas posições de liderança, como em cargos políticos e públicos, também está relacionada aos altos índices de estupro: quem faz as leis e políticas públicas não pensa sob a perspectiva de gênero.

Na ocasião em que uma garota de 16 anos foi estuprada por 30 homens, no Rio de Janeiro, o governo federal organizou uma reunião com secretários de segurança de todos as unidades da Federação, para pensar políticas públicas de prevenção ao crime. Na sala, havia somente uma mulher. Quem faz as leis e políticas públicas são homens que desconhecem o temor de andar por um beco escuro.

“Precisamos que as políticas de segurança pública sejam pensadas a partir da perspectiva de gênero. Colocar iluminação pública pode ter um impacto sobre o número de crimes, por exemplo”, explica a advogada Maíra Fernandes.

Educação não sexista

A escola deve ser o espaço onde se planta a semente de um novo mundo. “Falar sobre sexismo nos colégios é a base dessa desconstrução da cultura do estupro. Existe uma resistência muito grande por pura ignorância”, diz a advogada e ativista Maíra Fernandes.

No Centrinho, escola pública de Planaltina (DF), alunos têm lições sobre diversidade e gênero

Brasília tem uma escola que é referência e já recebeu prêmios nacionais por incentivar o respeito à diversidade. Trata-se do Centrinho, em Planaltina. Nesse espaço, professores e direção não temem falar sobre machismo, racismo, feminismo, orientação sexual e violência de gênero. No vídeo abaixo, eles sugerem o caminho da mudança.

Proposições sobre estupro em andamento no Congresso Nacional
  • PEC 181/2015, a “PEC do Aborto”

    Também apelidada de “Cavalo de Troia”, a Proposta de Emenda à Constituição recebeu alterações que passaram a determinar a “proteção da vida” desde a concepção. O texto original tratava da ampliação de direitos trabalhistas, como o aumento do tempo da licença-maternidade para mulheres cujos filhos nasceram prematuros.

    Deputados, porém, incluíram a palavra “concepção” no projeto para definir quando começa a vida. Isso abriria uma insegurança jurídica em processos sobre o tema.

    A comissão especial que trata do assunto foi criada como uma reação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o aborto no primeiro trimestre de gravidez.

  • Projeto de Lei 5.069/2013, de autoria do parlamentar, que está na cadeia, Eduardo Cunha (PMDB-RJ)

    O texto coloca dificuldades para a realização de aborto em casos de estupro e prevê pena de reclusão a qualquer um que oriente a vítima sobre as possibilidades legais de aborto em casos de violência sexual.

  • PEC 64/2016, de vários senadores, que pode tornar imprescritível o crime de estupro

    O texto faz o estupro figurar, juntamente com o racismo, como crime “inafiançável e imprescritível”. A mudança significa que o crime poderá ser punido a qualquer tempo, mesmo depois de vários anos da ocorrência do estupro.

    Atualmente, o prazo de prescrição (validade) varia de acordo com o tempo da pena, que é diferente em cada caso, e pode se estender a até 20 anos. Para estupro de menor de idade, porém, a contagem só começa após a vítima completar 18 anos.

    A PEC terá de passar por mais quatro sessões de discussão antes de ser votada em primeiro turno. Depois, serão necessárias mais três sessões de discussão, em segundo turno, para que ocorra a votação final. Pelo menos 49 senadores têm de votar a favor para a proposta ser aprovada. Depois da aprovação no Senado, a PEC seguirá à análise da Câmara dos Deputados.

  • Reformulação do Código Penal

    Entre as ideias que têm sido discutidas no Congresso Nacional a respeito de crimes sexuais, está a proposta que cria oficialmente o delito de “estupro coletivo”. Também há previsão de punir mais rigorosamente quem exibir cenas de sexo por vingança.

    Por outro lado, o texto propõe reduzir a pena para quem comete violência sexual “sem graves danos à vítima”, como consta no projeto, como apalpar partes íntimas ou forçar um beijo. Qualquer “ato libidinoso” cometido no país é considerado estupro desde 2009, quando o código penal sofreu alteração para estabelecer que não precisa haver penetração para configurar o crime de estupro.

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