Em seus 80 anos de vida, celebrados nesta segunda-feira (19/4), Roberto Carlos tomou conta do imaginário nacional. As roupas azuis, as rosas vermelhas, as músicas românticas, os especiais de fim de ano fazem parte da cultura brasileira. Mas há muitos elementos que tornam o Rei o maior artista brasileiro vivo.
Do começo da carreira até os dias atuais, Roberto Carlos caminhou movido pelo sucesso, sempre próximo aos interesses dos brasileiros. Jovem, criou uma cena de rock no Brasil e, mais velho, virou o sinônimo da música romântica. Trilha sonora de novelas, dos caminhoneiros e dos salões da alta sociedade, o artista tornou-se uma (quase) unanimidade no Brasil
Nos anos 1960, a histeria ao redor de Roberto Carlos era do mesmo nível da que ocorria com os Beatles. Não há imagens de fãs gritando na porta de hotéis como as da banda britânica, mas os registros do programa Jovem Guarda na TV Record deram um gostinho do frenesi.
Roberto Carlos em 1968 durante o festival de Sanremo, que acontece em Milão.Foto: Mondadori via Getty Images
Em 1966, fãs de Roberto Carlos já lotavam casas de show para vê-lo de perto.Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo/AE
A atriz italiana Raffaella Carrà com Roberto Carlos, em Roma, durante a gravação do programa de TV Tempo di samba.Foto: Mondadori via Getty Images
Roberto Carlos era conhecido pela voz e pelas roupas modernas.Foto: Mondadori via Getty Images
No Brasil, o frenesi ao redor de Roberto Carlos era compatível com o dos Beatles na Inglaterra.Foto: Rino Petrosino/Mondadori via Getty Images
Apresentação do programa televisivo Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos.Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo/AE
De acordo com o livro proibido Roberto Carlos Em Detalhes, o Brasil foi provavelmente o único país do mundo onde os Beatles não foram campeões de vendas de discos nos anos 1960. “Aqui quem mandava era Roberto Carlos e sua turma. O auge de vendas do cantor brasileiro, entretanto, foi na virada dos anos 1970 e 1980”, escreve o pesquisador Paulo César Araújo.
Nos anos 1970, Roberto migra para a música romântica e assume o papel de crooner – com clara inspiração em Frank Sinatra. Nesse período, Chacrinha criou a alcunha que melhor define o cantor: o Rei da Juventude, de repente, virou apenas Rei.
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“Roberto Carlos nunca teve unanimidade na crítica. Nos anos 1970, ganhou um período de elogios. Mas, rapidamente, tudo mudou. Nos anos 1980 e 1990, já como o Rei, Roberto era visto como um artista que se recusava a inovar. O mais curioso disso é que o público nunca quis que ele mudasse nada”, acredita Tito Guedes, Autor do livro Querem Acabar Comigo.
Não tem caixinha
para Roberto
Antes de se tornar o Rei, Roberto Carlos cantava bossa nova, o deleite da elite cultural da década de 1960. Mas, graças ao seu aguçado conhecimento sobre o mercado de música, Roberto Carlos deu uma importante guinada na carreira.
Influenciado pela Turma do Matoso, que contava com nomes como Tim Maia, Erasmo Carlos e Jorge Ben, o artista migrou para o rock n’roll. Mas a mudança não caiu bem com os jornalistas especializados e acadêmicos da época.
“Em 1965, quando o Roberto Carlos explode junto da Jovem Guarda, o padrão avaliativo da crítica musical era a bossa nova, e isso influenciava nas análises negativas em relação a ele”, comenta Tito Guedes, pesquisador do Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB).
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Autor do livro Querem Acabar Comigo, uma análise de como a imprensa avaliou o trabalho de Roberto Carlos a partir dos anos 1960, Tito acredita que os cantores mais populares normalmente são massacrados pela crítica musical e com o Rei não diferente.
Mas o biógrafo avalia que os jornalistas da época não estavam preparados para entendê-lo. “A crítica estabelece padrões e o Roberto Carlos tem uma complexidade de gêneros, de formatos e de popularidade que fica difícil de colocá-lo em uma caixinha definitiva”, avalia o especialista, que analisou textos de veículos como Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo, Manchete e Veja.
A voz de Roberto é
brasileiríssima
O jeito de cantar de Roberto era diferente do estilo dos artistas populares que faziam sucesso na época — e que eram reconhecidos pela Bossa Nova. Por mais que possa parecer paradoxal, Elis Regina e Wilson Simonal imitavam a improvisação instrumental do jazz e dos be-boops americanos.
“A dupla imprime nas músicas um maneirismo que transformava as canções mais simples em labirintos melódicos”, escreveu Augusto de Campos, no Correio da Manhã, em 1966.
O Rei não tinha a extensão vocal de Elis e Simonal, mas era afinado. Ele não se valia de nenhuma peripécia vocal ou gestual e apostava na simplicidade interpretativa da Bossa Nova para cantar rock n’roll. O padrão de voz que Roberto usava estava mais próximo ao de João Gilberto que o trabalho vocal de Elis Regina, por exemplo.
Roberto começou a carreira na Boate Plaza, no Rio de Janeiro, imitando João Gilberto. Em Ser bem, uma das primeiras músicas que gravou, Roberto se inspirou no jeito de cantar do inventor da Bossa Nova. Mesmo após estourar cantando rock n’roll, o Rei continuou apostando nesse estilo vocal.
Apesar de o iê-iê-iê ser uma música rítmica animada, Roberto conseguiu conciliar o som norte-americano com o uso moderno da voz e o estilo Bossa Nova. O capixaba passou a cantar de maneira descontraída, com naturalidade e dicção bem clara.
“Quando os tropicalistas decidiram incorporar elementos do universo pop na música brasileira, o público e o mercado já estavam devidamente conquistados para as guitarras elétricas”, escreveu Paulo César de Araújo no livro Roberto Carlos Em Detalhes.
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As letras refinadas
de Roberto
Nos primeiros anos de carreira, Roberto Carlos ganhou um selo da crítica musical: alienado, vendido, comercial. Os três adjetivos, nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, tinham um peso duríssimo. Eram tempos de efervescência política, da implantação e do recrudescimento da ditadura militar e de artistas profundamente alinhados com a luta de esquerda.
Por isso, a tal turma do iê-iê-iê, que tinha como principal expoente Roberto Carlos, era vista com certo desprezo pela elite cultural da época. Eram jovens, que, apesar de cantarem o rock n’ roll, não tinham o espírito contestador da MPB – contradições que a própria história se encarregou, anos mais tarde, de desmontar.
Nos anos 1990, os críticos musicais contemporâneos revisitaram a produção de Roberto na Jovem Guarda. “Eles elegem aquela fase como o auge da carreira dele. Mas ao mesmo tempo atacam os discos do período, taxando-os de bregas e caretas. A relação entre Roberto e os críticos sempre foi muito conturbada, um eterno morde e assopra”, salienta Tito.
Mas a verdade é que Roberto Carlos, assim como João Gilberto, nasceu escutando música brasileira que tocava no rádio. “Se fossemos depender da turma da Bossa Nova, nunca teria existido a Bossa Nova. Ninguém poderia revolucionar a música brasileira ouvindo apenas discos de Fred Astaire e Frank Sinatra”, escreveu Paulo César de Araújo no livro Roberto Carlos Em Detalhes.
Com o tempo, Roberto e Erasmo Carlos provaram que o público estava certo e os críticos equivocados sobre a qualidade das músicas. Várias canções compostas pela dupla se tornaram clássicos da MPB. “Roberto é o lado popular do ouvinte mais sofisticado e o lado mais sofisticado do ouvinte popular”, disse Affonso Romano Sant’Anna, em entrevista a Paulo César de Araújo, na biografia proibida.
Roberto Carlos na frente da capela de Santa Rita em Veneza.Foto: Rino Petrosino/Mondadori via Getty Images
Roberto Carlos durante uma das inúmeras viagens à Itália.Foto: Mondadori via Getty Images
Nos anos 1990, Roberto Carlos já era o Rei do Brasil.Foto: GAB Archive/Redferns
Roberto Carlos posa para um retrato em 1995 no estúdio de gravação em Los Angeles.Foto: Harry Langdon/Getty Images
Roberto Carlos e Chico Buarque em uma apresentação no Rio de Janeiro, em 1993.Foto: Lalo Almeida/Estadão Conteúdo/AE/
O Rei foi homenageado pela Beija Flor no Carnaval do Rio de Janeiro de 2011.Foto: Buda Mendes/LatinContent via Getty Images
O cantor se apresentou no Coliseo Jose M. Agrelot, em 2015, na capital de Puerto Rico .Foto: GV Cruz/WireImage
Roberto Carlos lotou a AccorHotels Arena em 2019 na França.Foto: David Wolff – Patrick/Redferns
Roberto Carlos canta intensamente a própria vida, num repertório grande e autobiográfico. Ele tem talento para escrever canções que atingem multidões. “Roberto Carlos é um artista genial. O que ele faz é muito difícil – tocar o povo mais simples, com poucas palavras. Você acha que isso é fácil? Tente, para ver como é difícil sintetizar suas mensagens de uma forma tão sucinta, tão simples”, disse Erasmo Carlos a César de Araújo.
Porém, desde a Jovem Guarda, o conteúdo literário das canções já trazia afinidades com as da Bossa Nova. Roberto e Erasmo modernizaram a música popular, foram além do romantismo dos sambas-canções e dos boleros sentimentais — que dominavam a época. O trabalho de compositor do Rei amadureceu conforme os anos passaram.
1941
Nascimento em Cachoeiro de Itapemirim (ES)
1957
Recém-chegado ao Rio de Janeiro, Roberto se juntou a uma turma da Tijuca, que tinha Sebastião “Tim” Maia, Edson Trindade, José Roberto “China” e Wellington Oliveira. Eles formaram o grupo The Sputniks
1957
É também nesta época em que surge a amizade entre Roberto Carlos e Erasmo Carlos
1961
Roberto Carlos lança seu primeiro disco: Louco Por Você, em que se aproximava da Bossa Nova e de João Gilberto
1963
Roberto, então, muda de rumo e volta a suas origens, ao rock e à música jovem. Ele lança o disco Splish Splash, com faixas como Parei na contramão
1965
O cantor, ao lado de Erasmo e Wanderléa, apresenta o programa Jovem Guarda, na TV Record. Sucesso, os músicos dão início ao movimento Iê-iê-iê, que teria na Jovem Guarda seu principal expoente
1967
Roberto Carlos vira astro de cinema, no filme Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. A trilha sonora contava com os sucessos Como é grande o meu amor por você, Por isso corro demais e De que vale tudo isso
1970
Com o fim da Jovem Guarda, Roberto Carlos inicia sua aproximação do romantismo – e do título de Rei. A marca da transição foi a temporada de shows no Canecão, dirigida por Luís Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli
1974
Em 24 de dezembro, a Rede Globo exibiu pela primeira vez um especial de Roberto Carlos, conseguindo grande audiência e instaurando uma tradição na televisão brasileira
1978
O Rei lança músicas que marcaram gerações, como Café da manhã, Força estranha e Lady Laura, dedicada à sua mãe
1988
Roberto Carlos ganha o Grammy de Melhor Cantor Latino-Americano e chegou ao topo do ranking da Billboard
1994
O Rei conseguiu uma marca impressionante: ultrapassou os Beatles em vendas na América Latina, com uma marca de 70 milhões de discos comercializados
1999
Em 19 de dezembro, Maria Rita, esposa de Roberto Carlos desde 1996, morreu
2001
Aproveitando uma tendência na música mundial, Roberto Carlos lançou um Acústico MTV, com 14 releituras de seus clássicos e participações de Samuel Rosa e Tony Bellotto
2005
Roberto Carlos dá início a um de seus mais bem-sucedidos projetos comerciais, o Projeto Emoções em Alto Mar, um cruzeiro com show do cantor
2007
Após longa batalha judicial, Roberto Carlos conseguiu tirar das prateleiras o livro Roberto Carlos em Detalhes, biografia não autorizada escrita por Paulo César de Araújo. Em 2014, o mesmo autor lançou O Réu e o Rei, sobre os bastidores da disputa
2012
Roberto Carlos lança Esse cara sou eu, o disco fez com que a faixa-título, tema da novela Salve Jorge, virasse um sucesso nacional
2020
Em meio à pandemia de coronavírus, Roberto Carlos adere ao movimento das lives, com transmissões que emocionaram o Brasil
Roberto
soube envelhecer
A transição do Roberto Carlos jovem e roqueiro para a figura do grande crooner da música brasileira ocorreu nos anos 1970. Biógrafos do Rei não são unânimes na definição de um momento exato, mas boa parte deles concorda que a mudança começou com uma série de shows no Canecão.
Dirigido por Luís Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli, o cantor começa a incorporar elementos que passaram a fazer parte de sua trajetória como Rei. Canções românticas, superproduções musicais, instrumentistas e maestros ao seu lado, além da aprovação de boa parte do público nacional.
“Nesses shows, o Roberto mudou. É uma mudança marcada, de um artista do iê-iê-iê para uma coisa meio Frank Sinatra”, aponta Jotabê Medeiros, que lança a biografia Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha.
Foto: Getty Images
Até hoje, Roberto se mantém atual no imaginário popular. “Tem bandas de jovens que promovem releituras dele. Essa mobilidade temporal dele também é social. Toca da obra à sala do médico. Por isso, você pode defender que se trata do maior artista popular do Brasil. Tudo devido à qualidade da sua música”, afirma Jotabê.
A construção de Roberto como um ícone popular é baseada, segundo o biógrafo, na compreensão do artista de que deveria ecoar o Brasil em sua obra. Para além da frutífera parceria com Erasmos Carlos, o cantor buscou contato com compositores populares do Brasil, como Helena dos Santos – empregada doméstica, negra, moradora da favela, que compôs faixas como Agora eu sei, Recordações e O astronauta.
“O Roberto Carlos se cercou de pessoas que o ajudaram a entender as veias mais populares do Brasil. Mas, além disso, ele tinha essa percepção, ia atrás disso, usava da sua capacidade de compreender o que o povo queria ouvir. É o talento de alguém diferente”, comenta Jotabê.
Essa associação com compositores mais populares gerou, junto à crítica musical, a visão de que Roberto Carlos vampirizava esses autores. Para Jotabê, essa análise não condiz com a realidade.
“Eu não engulo muito essa versão, porque ela tenta dizer que o Roberto Carlos só manipulou para vender, e isso não é verdade. Ele criou muita coisa, ele adquiriu um tom que era próprio, um espaço único no mercado. Se popularizou e desenvolveu um estilo de cantar e ser”, opina.