Muito antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia do novo coronavírus, em 11 de março de 2020, o convívio com a fome já era a realidade de muitos brasileiros. Com o aumento do desemprego, a alta dos preços e a diminuição drástica na renda de profissionais autônomos, a quantidade de pessoas mal-alimentadas ou sem nada no prato dobrou. É o que aponta o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).
Com olhar atento e empático, moradores das periferias de todo o Brasil se mobilizaram para amenizar o sofrimento da população em situação de vulnerabilidade. Uma parceria entre o Favela em Pauta e o Instituto Marielle Franco mapeou 230 pontos de mobilização social, em 58 cidades, de 22 estados do país. A campanha intitulada #CoronanasPeriferias deu visibilidade ao trabalho coletivo e voluntário dos influenciadores sociais.
O Metrópoles selecionou sete projetos nas cidades do Rio de Janeiro (RJ), de São Paulo (SP), Ceilândia (DF), Palmas (TO) e Belo Horizonte (MG) com o objetivo de realizar um panorama dos influencers sociais no país. A equipe conversou com líderes comunitários que, no combate à fome, resgataram o real sentido de uma rede de apoio nas mídias digitais e iniciaram correntes do bem, com frutos como doações de toneladas de alimentos e demais produtos de necessidades básicas.
#CoronanasPeriferias
Há 15 anos em funcionamento, o coletivo Jovem de Expressão, de Ceilândia (DF), nunca havia feito distribuição de alimentos até o Governo do Distrito Federal (GDF) decretar o lockdown pela primeira vez, em março de 2020. O programa, destinado a pessoas de 18 a 29 anos, promove uma sobreposição de ações sociais que vão desde terapia comunitária até cursinhos de pré-vestibular e atividades profissionalizantes.
“A gente sempre acreditou em dar autonomia e liberdade às pessoas, para que elas, com a sua própria renda, conseguissem comprar os seus produtos. E, apesar da nossa comunidade ter vulnerabilidades, nós passamos um grande período sem essa demanda explícita. Havia, claro, casos muito pontuais que a gente supria”, explica Max Maciel, coordenador pedagógico do Jovem de Expressão.
O grupo sentiu a fome bater primeiro entre os seus. Voluntários do próprio projeto, em sua maioria trabalhadores informais, precisaram contar com a solidariedade dos colegas para se alimentar. Com o passar dos dias, a equipe percebeu o empobrecimento generalizado da cidade. “Um terço da nossa população vive da informalidade, e não tem essa de fazer compra do mês, ela compra o do dia, compra o que dá. Essas pessoas se viram completamente desesperadas, e como a gente era um braço social conhecido, elas nos procuraram”, conta Max.
Em uma parceria entre o R.U.A.S — Rede Urbana de Ações Socioculturais e o Jovem de Expressão, a campanha #CoronanasPeriferias ganhou as mídias digitais. No primeiro estudo, os voluntários descobriram que comida não era a única necessidade do povo. “Muitas pessoas queriam gás, kit higiene… Porque na televisão se falava muito sobre higiene, mas em comunidades como o Sol Nascente 20% dos moradores não têm acesso a água. Isso na capital do país. Como você vai falar de higiene para quem sequer tem água em casa?”, questiona Max Maciel, influenciador social com mais de 20 mil seguidores, só no Instagram.
Em um mutirão para identificar as famílias mais necessitadas, a campanha criou uma lista com mais de 5 mil famílias cadastradas, número que só foi crescendo com o passar dos meses. Para conseguir atender a demanda, o Jovem de Expressão criou um Fundo de Apoio às Periferias, com arrecadações feitas via financiamento coletivo.
A relação de confiança, construída ao longo dos anos com a população, foi decisiva para o grupo conseguir arrecadar um número expressivo de doações. De acordo com Max Maciel, até o momento, o Fundo já recebeu mais de R$ 1 milhão, com recursos vindos de embaixadas, grandes empresas e uma rede de pessoas solidárias de diversas regiões do país.
Para uma arrecadação tão expressiva, Max revela que precisou adotar uma dinâmica diferente nas mídias. “As redes sociais, que já eram um forte nosso, deixou de ser só divulgação para ser também forte na mobilização. Exigia uma comunicação mais real, instantânea e de engajamento. Parte das doações de pessoas físicas se deram por esse caminho, na credibilidade do trabalho que já desenvolvemos há 20 anos e na pronta resposta às demandas das famílias necessitadas.” As redes do Jovem de Expressão também eram base do recebimento de cadastro espontâneo de famílias em vulnerabilidade.
Mesmo com a efetividade das publicações nas redes, Max Maciel sinaliza a dificuldade de o conteúdo de projetos sociais conquistar grande interação entre os internautas. “A dor engaja, quando ela está no intangível. Aí ela te sensibiliza. Mas quando a dor está perto, está no seu vizinho, ela te constrange. Então buscamos, com a nossa comunicação, muito mais discutir sobre a pauta da fome do que mostrar o indivíduo com fome. Apresentar esses fatos políticos nos deu muito mais atenção”, disse.
Até o momento, O Jovem de Expressão atendeu mais de 7 mil famílias. Só de cestas básicas foram doadas 6.700, até setembro de 2021. Mesmo com a chegada do auxílio emergencial do governo federal, os brasileiros não saíram da condição vulnerável imposta pela crise. Uma das causas foi o aumento dos preços.
Atento às urgências da população, Max também distribuiu 1.435 vales-gás dentro de Ceilândia. Entre os itens ofertados estavam, ainda, 2.500 kits de limpeza e 500 cestas de legumes e hortaliças vindas dos agricultores familiares direto para a mesa de quem mais precisa.
Saúde mental
A desigualdade social sempre afetou a saúde mental de quem vive em vulnerabilidade no Brasil. O agravamento da fome e a inexistência de políticas públicas para o combate da pandemia, como a demora na definição do auxílio emergencial, além da falta de testagem nos casos suspeitos e de informações sobre as ocorrências de mortes e contaminações, deixaram a população em uma espécie de apagão.
Para ajudar as pessoas a lidarem com esse sofrimento, o Jovem de Expressão ampliou o atendimento terapêutico, que já funcionava com sessões comunitárias para os alunos das oficinas e dos cursos promovidos na sede, para a população em geral. A psicóloga Nayara Cruz, ex-beneficiária do programa, atualmente se dedica à escuta e ao acolhimento da população, a maioria negra, de Ceilândia.
De acordo com a terapeuta comunitária, é muito difícil as pessoas permanecerem saudáveis enquanto precisam lidar com a falta de moradia digna, renda mínima, emprego, saneamento básico, segurança e acesso à cultura e ao lazer, por exemplo. “A principal aflição dessas mães é ouvir os filhos pedindo comida e não ter nada na geladeira. É buscar ajuda na família, e eles também não terem nada. É tentar receber uma cesta básica de doação, mas os cadastros das ONGs já estarem lotados”, ressalta Nayara.
A terapeuta narra, ainda, ser comum a população periférica se culpabilizar pela condição na qual vivem. “Eu tento mostrar que eles não têm culpa e dão o máximo de si. É um trabalho de resgate e empoderamento, e, paralelamente, de ajudá-los a encontrar saídas para a conquista de uma renda ”, conta Nayara, que atende diariamente na sede do Jovem de Expressão, na Praça do Cidadão de Ceilândia.
Vocação para o voluntariado
Nascido em Campina Grande (PB), Charles Silva tinha apenas 3 anos quando mudou com os pais, os agricultores Severino Alexandre e Ivanilda Galdino, para o Rio de Janeiro. A jornada, 20 dias de viagem cumpridos em cima de pau de arara e ônibus, prometia uma vida melhor, mas se desenhou com os desafios comuns aos de muitos nordestinos que deixam a terra natal. As lembranças infantis das mãos estendidas aos seus no momento de necessidade, foram as fagulhas que despertaram no designer a vocação para o voluntariado.
O primeiro incentivo veio aos 14 anos, por meio dos professores do Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) 339 Mário Tamborindeguy, no Irajá, escola onde o ativista passou a estudar quando se mudou com a mãe para a Favela Para Pedro (Vila São José), comunidade localizada dentro do bairro Colégio, na zona norte do Rio. Lá, tornou-se monitor de skate do projeto Escola da Paz, parceria entre o governo federal e a Unesco. Já na aula de estreia, percebeu a necessidade de ter mais que boa vontade para repassar seu amor pelo esporte. “Eles não tinham os equipamentos e comecei a pedir doações para alguns amigos. De cara consegui cinco skates e fiz a minha primeira turminha”, orgulha-se.
O Escola da Paz durou até 2002 com o apoio do Estado. Para não deixar os alunos desassistidos, Charles decidiu criar o Coletivo Brisas Skate. “Eu tinha uma abertura grande na escola, pelo trabalho que havia desenvolvido ao longo de oito anos. Então conversei com a direção para continuar desenvolvendo as atividades.” O Brisas cresceu, transformou-se em ONG e, ao longo de 18 anos, atendeu mais de 1.500 alunos.
O trabalho no Brisas estava interrompido há quase um ano, quando as pessoas voltaram a bater na porta de Charles. “Um dia, a mãe de um ex-aluno me perguntou se não estávamos dando comida. A minha ficha caiu e eu decidi fazer algo”, recorda.
Mais uma vez, a vocação para servir o coletivo falou mais alto. De início, Charles identificou 10 famílias em situação de fome e recorreu aos quase mil amigos no Instagram para pedir as primeiras doações. “Coloquei nas minhas redes sociais e, em menos de 24 horas, conseguimos as 10 cestas de que precisávamos”, conta o influenciador. A princípio uma ação pontual, a mobilização foi ampliada e ganhou nome e página oficial: Beco Social, atualmente com 500 seguidores.
Só em 2021, o Beco atendeu 500 famílias, algo em torno de 3.000 pessoas afetadas direta ou indiretamente. Ao todo, o coletivo arrecadou e distribuiu mais de 50 toneladas de comida. Além de promover iniciativas como o Beco Literário e instigar o debate sobre violência menstrual com a doação de absorventes para as meninas da favela.
Pensando em também dar visibilidade a quem usa a voz como instrumento de transformação social, Charles elaborou a série Pobres. Publicada no Instagram do Beco Social, a criação faz uma sátira dos eleitos pela revista norte-americana Forbes como os “influenciadores de sua geração”. Na lista ressignificada, a influência não é medida pela quantidade de seguidores e curtidas em publicações nas redes sociais, mas pelo tamanho do impacto positivo deixado para o coletivo.
“Eles podem ter 1 milhão de seguidores, mas na pandemia nós fomos mais influentes. Já que não podemos entrar na Forbes, eu criei o Pobres”
Charles Silva, influenciador
Para Issaaf Karhawia, pesquisadora em comunicação digital na Universidade de São Paulo (USP), a palavra “influenciador” vem se esvaziando desde que o termo foi cooptado pelo mercado e ligado a fins publicitários e estímulos de consumo.
“Quando a gente pensa em questões sociais, a gente está, na verdade, retomando o sentido real de influência. Porque ao falar de influenciador, nós falamos justamente de pessoas capazes de atuar como líderes de opinião, de sintetizar os anseios e representar as dores e os desejos de um grupo. A influência virtual tem a ver com a capacidade de amplificar discursos”, considera Issaaf.
Cidade de Deus
O Twitter é hoje a principal ferramenta de comunicação de Jota Marques, de 29 anos, estudante de pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e conselheiro tutelar eleito mais jovem do estado. De Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná, trilhou caminho nômade com a mãe até chegar à capital carioca. Nas passagens por Maringá (PR), Vitória (ES), Limeira (SP), Campinas (SP) e São Paulo (SP), bebeu da mesma fonte, — um dos fundadores do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Paraná—, e dedicou-se à educação popular.
Morador e ativista social da Cidade de Deus, idealizou e fundou o Coletivo Marginal, em 2015, responsável pela distribuição de mais de 10 mil cestas básicas, criação de um pré-vestibular comunitário e, em breve, pelas construções de uma biblioteca e uma cozinha solidária. Mesmo com os frutos palpáveis de suas ações, Jota reconhece a dificuldade de causas como as dele conquistarem o mesmo engajamento nas mídias que os perfis de influenciadores tradicionais. “As pessoas querem felicidade, querem alívio. E está tudo bem. Nós já temos uma realidade dura, por que vamos perseguir a dureza?”, acredita.
Para driblar essa barreira do conteúdo, o conselheiro busca equilibrar suas publicações, entre temas informativos e entretenimento. “Nós temos um desafio em relação às redes sociais, que é ter um balanço. Eu tenho aprendido isso. Falo sobre o conselho tutelar, direito da infância e tiroteios, mas também vou fazer humor, falar da realidade da minha mãe, vou mostrar que eu não sou um super-herói, eu também bebo uma cerveja, assisto um filme”, pondera.
Autora do livro De Blogueira a Influenciadora (Ed.Sulina, 2020), Issaaf Karhawi concorda com a estratégia de Jota para atrair a atenção da audiência. A especialista reforça, ainda, a necessidade de estabelecer uma relação de identificação com os internautas. “As pessoas buscam essa sensação de compartilhamento de semelhanças. Isso gera vínculos muito fortes e um certo pacto de comunidade entre seguidores e influenciadores. Quando não há hierarquias, há ação de coletividade, de mobilização em prol de algo”, completa.
“O influenciador não é um título, não vem de uma autodeclaração, mas ele é eleito através de relações sociais. E o influenciador social não só se dá por essas relações como contribui para condições sociais ainda melhores.Ele reúne muitos aspectos da influência positiva que a gente tanto reivindicou durante a pandemia”
Issaaf Karhawi pesquisadora da USP
#FavelaContraCovid
Júlio César Evaristo de Souza, de 46 anos, trilhou caminhos tortuosos até se tornar o Julio Fessô, conhecido líder comunitário do aglomerado Morro do Papagaio, em Belo Horizonte. Na adolescência, o vício em crack o fez praticar diversos delitos que o levaram a passar oito anos, entre idas e vindas, no sistema penitenciário de Minas Gerais. Depois de pagar a sua dívida com a sociedade, decidiu trabalhar para que os jovens da comunidade não se enveredem pelo mesmo caminho de violência e dependência em drogas. “Sempre ouvi dizer que as crianças são o futuro do Brasil, mas pensava: ‘Quais crianças?’. Com certeza as que não precisam trocar a escola por trabalho”, afirma.
Inconformado com a falta de oportunidades e os estereótipos negativos estabelecidos aos moradores de favelas, Julio fundou, em 2013, o movimento Eu Amo Minha Quebrada. Até 2020, o coletivo se dedicava a promover oficinas de arte, fotografia, serigrafia, inglês, rodas de leitura, futsal infanto-juvenil e cursos de pré-vestibular. Mas com o aumento da fome no morro, a sede do projeto se tornou, também, ponto de arrecadação e distribuição de cestas básicas e produtos de higiene pessoal, entre outros.
Preocupado com a saúde da comunidade onde mora, Júlio movimentou as redes sociais com a campanha #FavelaContraCovid, com a qual desenvolveu uma série de ações voltadas para orientação e prevenção da transmissão do vírus, como doação de máscaras na saída do Morro do Papagaio para os moradores que continuaram trabalhando mesmo após as orientações da OMS, avaliação de saúde daqueles que apresentavam sintomas respiratórios e testagem rápida.
Para conscientizar as pessoas sobre a importância da prevenção à Covid-19, Eu Amo Minha Quebrada abandonou o tom protocolar e pouco acessível das informações divulgadas pelos órgãos públicos e aproximou todos do debate usando uma linguagem mais jovem. “Criamos cartazes parecidos com chamados para um baile funk e todos paravam para ler, mas na verdade a gente reforçava a importância de usar máscaras, lavar as mãos e manter o distanciamento”, conta o idealizador.
“Como eu assisto muito jornal, eu via tudo acontecendo lá fora e dizia: ‘Esse trem vai chegar aqui’. Então nós nos antecipamos. No auge da contaminação na cidade, teve favelas da grande BH onde morreram 45 pessoas. Aqui no Morro do Papagaio morreram 5”, compara.
Júlio também viu na cultura hip-hop um canal ainda mais efetivo de comunicação com a população periférica e compôs, em parceria com MC Jhonata, a música Corona, Cerol Fininho. Para que todos ouvissem a mensagem, ele alugou um carro de som por R$ 20 a hora, com o objetivo de circular durante todo o dia pelos becos e vielas do Morro do Papagaio até os moradores decorarem o refrão.
“A gente não tá aqui pra criar pânico, não. Queremos apenas alertar para o mal que está no mundão. É invisível, parece inofensivo, mas na realidade é o nosso grande inimigo. Estava lá do outro lado, chegou aqui de mansinho, coronavírus é tipo cerol fininho”, diz trecho da composição que viralizou por outras favelas da capital mineira.
Tamanha contribuição para a segurança sanitária foi reconhecida, e o movimento Eu Amo Minha Quebrada recebeu a visita de Romeu Zema (Novo), governador de Minas Gerais. “Ele não só parabenizou a gente pelo nosso trabalho como levou algumas de nossas iniciativas para outras comunidades”, orgulha-se Júlio.
Julio Fessô ensinou empreendedorismo às senhoras que não podiam sair de casa. Fez oficinas de confecção de máscaras de pano e as ajudou a vender os produtos na cidade e pela internet. “Elas participaram de uma reportagem, ganharam visibilidade e conquistaram clientela em outras regiões do país”, conta o ativista.
Eu Amo Minha Quebrada não parou por aí. O grupo de voluntários se empenhou em movimentar também a economia local e estimulou os doadores de cestas a adquirirem os produtos de comerciantes do próprio Morro. “Criamos vales para compras em açougues, verdurões, de gás. A gente foi consertar o avião com ele no ar”, lembra Júlio, que também é presidente da associação Centro de Defesa Coletiva do Morro do Papagaio.
O professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Ellery destaca a importância das ações de influenciadores sociais como Julio Fessô para amenizar o impacto da crise causada pela pandemia nos comerciantes e microempresários das periferias.
“Esse sentimento comunitário é importante em qualquer momento de crise. As grandes redes têm mais facilidade de sobreviver a uma pandemia, porque têm mais acesso ao crédito. Enquanto o pequeno comerciante não tem. As ações de valorização da economia de bairro são responsáveis por manter muitas dessas empresas vivas”, explica Roberto Ellery.
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”
Angela Davis, ativista
A história do quilombo urbano Casa Akotirene, localizado em Ceilândia Norte (DF), começou muito antes da pandemia de Covid-19. O espaço, que homenageia em seu nome a ancestralidade da matriarca, conselheira e orientadora do quilombo Serra da Barriga, de Palmares, funciona desde 2019 como um centro de atendimento sociocultural e de políticas para mulheres negras e periféricas.
A fundadora Joice Marques Pereira, de 35 anos, traz na própria vivência o estímulo para a luta antirracista. Piauiense radicada na capital federal desde os 10 anos de idade, a ativista lembra da chegada difícil na nova cidade. “Não foi fácil, mas nossa mãe, uma mulher muito lutadora, nos ensinou valores como criar relações mais humanizadas com as pessoas, levar coisas boas e transformações positivas para onde a gente fosse”, conta.
Ao longo da caminhada, viu-se repetindo os ciclos de gravidez na adolescência, as barreiras da maternidade solo e o medo constante de perder o filho para a violência do Estado. “Nossos jovens sequer conseguem sonhar, pois não é natural a realização desses sonhos. Eu cresci vivendo tudo isso à minha volta e entendi que transformar a vida dos nossos é mudar a nossa própria história também. Como Angela Davis nos ensina, ‘quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela’”, reforça a ativista.
Quando chegou à Ceilândia Norte, em 2018, Joice tratou primeiro de encontrar seu lugar na comunidade. “Eu comecei como forasteira, eu não conhecia a comunidade e precisei criar uma relação com os moradores e entender as suas necessidades”, explica. O projeto começou desenvolvendo atividades como rodas de conversas, saraus e oficinas de arte e profissionalizantes, sempre voltadas para debater autoestima, representatividade e protagonismo negros.
Com as recomendações da OMS para a não aglomeração e o risco iminente do contágio pela doença, a líder comunitária suspendeu todas as ações que aconteceriam no quilombo urbano nos meses seguintes. Mas antes de repensar como o espaço se reinventaria para atuar de acordo com as novas regras sanitárias, as voluntárias da Akotirene foram confrontadas com a fome da comunidade.
“Tem alguma coisa aí para eu dar para os meninos amanhã de manhã?”. “Me arruma uma cesta, por favor, aqui em casa não tem arroz, não tem nada.” “Estou passando muito frio com meus filhos, tem cobertor?”. “Aqui não tem leite, nem café, mas tem manteiga. Tentei conseguir R$ 10 para fazer cuscuz, mas está difícil.” Os pedidos de socorro começaram a chegar por meio de mensagens no celular, davam uma amostra do quanto a população mais vulnerável seria também a mais atingida pela crise mundial.
Joice percebeu que a ação deveria ser rápida e transformou a Casa Akotirene em um ponto de arrecadação e distribuição de alimentos e produtos de higiene. Em uma publicação feita no perfil do Instagram, apresentou aos mais de 4 mil seguidores o tamanho do problema social, buscou apoio e, rapidamente, conquistou as primeiras parcerias.
“É muito doloroso ver mães de família passarem momentos tão difíceis. A Casa tem um trabalho de apoio para essas mulheres, mas a gente sabe que elas precisam de muito mais. Nosso povo precisa ser visto, reconhecido e inserido nessa sociedade, não apenas fazendo parte de um sistema que retira direitos, negligência, e não oferece saúde, educação…”, reivindica Joice.
Atualmente, a Casa Akotirene atende 150 famílias de Ceilândia, em sua maioria chefiadas por mulheres negras com renda fixa mensal de até R$ 500. Além das cestas básicas e de produtos orgânicos, fruto de uma parceria com produtores do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), e apoio psicológico, com sessões comunitárias de terapia que tratam da saúde mental da população, o local atua no combate à violência menstrual.
“É um trabalho de formiguinha, é coletividade e é engrandecedor. É o que nos alimenta. Queremos mesmo é ver elas escrevendo as próprias histórias, independentes, felizes e com saúde mental. Tendo a liberdade de decidir a história que vão escrever para elas, de poderem criar os filhos com dignidade, sem precisarem de cesta básica”, acredita Joice.
Joice considera que os resultados seriam ainda maiores se projetos como a Casa Akotirene recebessem mais engajamento nas redes sociais. “Seria fundamental. Com mais seguidores e compartilhamentos, poderíamos alcançar novos e maiores parceiros e apoiar ainda mais pessoas”, explica a ativista que, atualmente, lançou campanha de financiamento coletivo para continuar com as doações para a população de Ceilândia. Da meta de R$ 5 mil, o coletivo só recebeu R$ 50 até o momento. “São essas doações que mantêm o trabalho vivo e garante o alimento dessas famílias.”
Reconhecimento
Moradora de Ceilândia Norte, Maria Amanda dos Reis Santana, 49 anos, é uma das beneficiadas da Casa Akotirene. Maranhense da cidade de São João dos Quatro, chegou ao Distrito Federal há 20 anos. Semianalfabeta, trabalhou como doméstica até receber o incentivo de uma amiga, que pagou seus cursos de cabeleireira e manicure. Durante as aulas, o empenho em aprender o novo ofício comoveu uma das professoras, que também organizou uma vaquinha com o objetivo de comprar os materiais necessários para que ela ingressasse de vez na profissão.
Com muita luta, Maria Amanda começou a conquistar a independência financeira e a dividir com o marido, o ajudante de pedreiro José Francisco Pereira da Silva, o sustento da casa. Quando as primeiras mortes por Covid-19 foram noticiadas, a autônoma perdeu a maior parte da clientela. “Não pude mais atender ninguém, fiquei sem trabalho nenhum”, lamenta.
Os bicos feitos pelo companheiro de Maria Amanda também diminuíram, e o casal empobreceu. Os moradores de Ceilândia não foram os únicos a chegar nessa situação.
O caminho das doações foi o último a ser trilhado por Maria Amanda. Mesmo após tomar conhecimento do trabalho de Joice, resistiu em pedir ajuda. “Ela sempre me chamava para vir fazer o cadastro para receber, mas eu tinha vergonha.” Com aluguel, água e luz atrasados, teve de deixar o orgulho de lado e passou a receber os alimentos distribuídos na Akotirene. “A cesta daqui é muito boa, com produtos que a gente realmente precisa e de qualidade. Já aconteceu, em outro lugar, de eu receber uma cesta que eu mesma não teria coragem de dar para ninguém, com arroz cheio de lagarta. Não é porque a gente é pobre que tem que ser assim, né?”, questiona.
Por muitos meses, os alimentos doados pela Casa Akotirene foram os únicos na mesa de Maria Amanda. Mesmo hoje, com os R$ 150 que recebe do auxílio emergencial do governo federal, o apoio é essencial. “Só o gás de cozinha está R$ 95. O que sobra não dá para fazer nada. Se não fosse essa cesta de verduras, que eu estou pegando hoje, não teria nenhuma mistura”, confessou a cabeleireira.
Vontade de crescer
Mais que a comida, Maria Amanda busca oportunidade nos serviços oferecidos na Casa Akotirene. Sempre que pode, reivindica uma turma de alfabetização para adultos que, segundo Joice, só precisa de professores voluntários para sair do papel. A cabeleireira também participa com frequência das rodas de conversa com as terapeutas comunitárias, em encontros voltados para a saúde mental das mulheres de Ceilândia.
“Eu disse para meu irmão: ‘vocês vão ver, eu vou lutar pela minha vida, vou estudar e vou ter minha casa aqui em Brasília. Deus vai me dar saúde, força e coragem. Vou conseguir o que eu quero, vou investir em mim”
Maria Amanda, moradora de Ceilândia
Andréia de Cássia Alves, de 46 anos, e o marido, Sebastião Justino de Oliveira, de 53, estão entre os mais de 14 milhões de desempregados do país, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgada em agosto pelo IBGE. Pais de Luiza Eduarda, de 14 anos, e de Paulo Eduardo, 4, a família sobrevive com o auxílio do Bolsa Família e os raros bicos feitos pelo patriarca como locutor de promoções dos comércios de Ceilândia Sul.
Como o dinheiro que entra está cada vez mais insuficiente para o pagamento das despesas básicas, o casal conta ainda com a solidariedade de parentes e projetos sociais como o da Casa Akotirene para se manter. “Se não fosse essa cesta, nós não teríamos nada disso para comer”, afirma Andréia.
Sem emprego desde que engravidou do caçula, Andréia também pode ser enquadrada no quadro de desalentados do país — pessoas que desistiram de procurar trabalho devido às condições estruturais do mercado — e que atualmente somam mais de 5 milhões de brasileiros, segundo o Pnad.
Um dos motivos para o desalento é a longa espera por uma cirurgia de hérnia de disco, que aguarda ser realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e tem prejudicado Andréia em conseguir trabalho. “Nossos governantes não querem enxergar o que realmente está acontecendo. Toda a população está precisando e eles fechando os olhos”, revolta-se.
Mapa #CoronanasPeriferias
Embaixadora da Paz
Com apenas 21 anos, Júlia Albuquerque carrega nos ombros a responsabilidade de ser a esperança de comida na mesa de mais de 1.400 crianças, de 600 famílias, moradoras de sete comunidades periféricas de Palmas (TO). A relevância do trabalho voluntário em prol do desenvolvimento social dessas comunidades deu à idealizadora e fundadora da ONG Unidos Por Um Mundo Melhor (UPMM) o título de Jovem Embaixadora da Paz pela organização IAYSP – International Association Of Youth And Students For Peace, entidade parceira da Organização das Nações Unidas (ONU), com sede na Coreia do Sul.
Nascida na periferia de Brasília, Júlia começou a ajudar o próximo com apenas 12 anos, integrando grupos que serviam sopão para pessoas em situação de rua em Taguatinga, no Distrito Federal. Aos 16, precisou se mudar com o pai para Palmas e, lá, convocou um grupo de jovens da Escola Castro Alves, localizada na zona sul de Palmas, para a criação da Unidos por Um Mundo Melhor (UPMM).
Em pouco tempo, a UPMM se tornou referência em assistência, não só pela doação de roupas, calçados e, claro, alimentos, como pela promoção de oficinas de arte e profissionalizantes e debates sobre temas considerados tabus, como depressão, suicídio e gravidez na adolescência, entre outros. “Nós buscamos estar sempre presentes na vida de cada família. Visitamos a comunidade e mantemos contato com cada um deles. É preciso que cada pessoa se sinta importante”, ensina Júlia.
Com mais de 6 mil seguidores, o Instagram, a principal ferramenta de mobilização da Unidos Por Um Mundo Melhor se tornou ainda mais essencial durante a pandemia de Covid-19. Com a credibilidade conquistada ao longo dos anos, Júlia chegou a receber 200 cestas básicas da fábrica da Coca-Cola de Manaus (AM) para distribuir para as famílias atendidas pela ONG. “Mesmo assim, não foi suficiente para ajudar todos que precisavam, pois a demanda cresceu muito.”
Para a ativista, a maior revolução causada pela UPMM foi o fortalecimento do sentido de coletividade que se criou na região. “Os nossos principais doadores não são grandes empresas. São as tias da cantina da escola, o moço da limpeza…Os próprios moradores se ajudam, e ninguém melhor para saber das nossas demandas e das nossas dificuldades”, garante.
Júlia Albuquerque também tem moldado a mentalidade das futuras gerações de Palmas. Um dos exemplos é que a maioria dos voluntários ativos na ONG já foi beneficiada no passado. “Hoje alguns se tornaram cabeleireiros, manicures e sempre estão agregando nas nossas ações”, elogia a ativista.
O maior desafio da UPMM é não ter uma sede oficial e Júlia ter que fazer da sua casa, onde vive com o marido e a filha de 1 ano e 2 meses, local de arrecadação e distribuição das doações. “Após me tornar mãe, mudei muito a rotina. Antes a ONG era a minha única prioridade, hoje tenho a minha filha e gostaria de criar ela separada do projeto. Não adianta tirar meu cobertor, para cobrir todo mundo, e ficar no frio”, confessa.
Apesar das dificuldades impostas no dia a dia, Júlia acredita na força da luta por um futuro melhor. “Eu passei a entender depois da maternidade. Tudo o que eu faço, reflete nela. É muito bom ver o carinho das pessoas e de outras crianças. Quando ela nasceu, eu e meu marido não estávamos passando por uma boa situação financeira, e ela ganhou tudo de que precisava. Pessoas que já haviam sido ajudadas pela UPMM nos ajudaram com o pouco que tinham. É uma verdadeira corrente do bem”, celebra.
Fundo para mães de Paraisópolis (SP)
Unidos pelo amor ao voluntariado, o casal de educadores Jonathan Grigório, 33 anos, e Mayara Caldeira, 22, também se comprometeu a ajudar mulheres chefes de família que perderam sua fonte de renda durante a pandemia. Professores do Quilombo Cursinho Popular Conceição Evaristo, projeto que atualmente atende 70 alunos nas aulas on-line de pré-vestibular, ministradas por 25 professores voluntários de diferentes áreas, os ativistas criaram o Fundo Para Mães e Trabalhadoras Informais Afetadas pela Covid-19.
A ideia de resguardar mulheres, em sua maioria negras e periféricas, surgiu quando as mães de Jonathan e Mayara, que trabalhavam de maneira autônoma, se viram sem renda devido às medidas de isolamento. As dificuldades enfrentadas por elas inspiraram a dupla a a apoiar outras famílias que também passavam pela mesma situação. “Começamos com uma lista de 15 pessoas, mas logo foi tomando uma proporção que a gente não imaginava”, recorda Jonathan.
Para conquistar mais visibilidade para a rede, uniram forças com o Instituto Embarque, também com foco na promoção da educação popular e atuante no bairro de Paraisópolis, em São Paulo. “Eles foram nossos parceiros e nos deram impulso para divulgar, em especial nas redes sociais deles, a campanha”, explica Mayara.
Diferentemente de outras iniciativas, o coletivo organizado por Jonathan e Mayara optou por dar independência às mães. Em vez de cestas básicas prontas, doaram poder de escolha e consumo com auxílios financeiros no valor de R$ 400 mensais. “Com esse dinheiro, elas podiam pagar uma contas atrasadas, comprar remédios ou a comida que elas achassem melhor”, considera Jonathan.
Todo o trabalho da rede de apoio às mães foi feito por meio das mídias digitais: desde a mobilização nas redes sociais, passando pelas doações recebidas via crowdfunding e as transferências on-line para as beneficiárias até a prestação de contas para a população. Ao todo, o coletivo arrecadou mais de R$ 100 mil. “Nós começamos em março de 2020, na semana em que explodiram os casos de coronavírus, quando tudo ainda era muito desconhecido. Na iminência do perigo de contágio, ficamos temerosos, vimos o quanto era inviável e decidimos fazer tudo de casa”, conta Jonathan, que também é mestrando em políticas públicas.
De acordo com o educador, as plataformas Instagram, WhatsApp e Facebook foram fundamentais para o sucesso do projeto. “Sem as mídias digitais, em especial neste período de pandemia, essa mobilização seria impossível. Elas foram responsáveis por unir as pessoas que estavam dispostas a participar dessa corrente e para nos conectar com as mães apoiadas.”
Em 2021, muitas pessoas que ajudavam o projeto também passaram a enfrentar dificuldades financeiras. Os organizadores da campanha precisaram então recalcular o campo de atuação, e passaram a transferir R$ 300 para as mães. Ao todo, foram 225 famílias beneficiadas, muitas delas mais de uma vez. “Quem estava ao nosso redor, nos apoiou muito através do compartilhamento e de doações, principalmente porque já conheciam a seriedade do nosso trabalho. Isso foi essencial para que a rede fosse para frente e superasse as expectativas”, afirma Mayara.
A pesquisadora conta, ainda, que o atendimento não ficou restrito às mães de Paraisópolis. Com apoio de voluntários do Cursinho Carolina de Jesus — do qual Mayara fez parte primeiro como aluna e, depois de formada, como professora de filosofia —, a rede tomou conhecimento de moradoras de Capão Redondo (SP) que também estavam em situação de fome. “Além disso, algumas das beneficiadas nos indicavam a familiares de outros estados e acabamos doando para pessoas até do Nordeste”, comemora.
“Eu me emociono muito, porque muitas faziam questão de receber o dinheiro, correr para o mercado e para a farmácia e tirar fotos para nos mostrar. Mas sempre tomamos muito cuidado para não expor a fragilidade delas, nem mesmo para conseguirmos mais doações”
Jonathan Grigório, educador
Jonathan e Mayara reforçam a importância do trabalho realizado em cursinhos como o Quilombo Cursinho Popular Conceição Evaristo para validar e dar mais credibilidade ao Fundo de Apoio às Mães e Trabalhadoras Informais Afetadas Pela Covid-19. “Nós trouxemos a nossa experiência na atuação por meio da educação, das relações que já havíamos criado com as famílias e com educadores voluntários. Essa campanha só existe a partir dessa expertise”, pontua o sociólogo. Mayara considera uma honra para ela, enquanto mulher negra e periférica, poder apoiar outras mulheres da periferia.
“O uso das redes sociais para fazer o bem me trouxe uma sensação de esperança muito grande. De que posso segurar e seguir em frente com o bastão de luta dos meus ancestrais. A luta coletiva é muito importante para a existência da população preta e periférica. Tudo que temos é uns aos outros para estarmos vivos. E a educação tem sido nossa maior aliada, para que possamos ganhar mais vozes, armaduras e sentido. Conhecimento e um celular nas mãos da população negra e periférica é uma prática da liberdade”, conclui.