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Em nome de Alá: grupo islâmico doutrina e leva indígenas do Amazonas para a Turquia

Primeiro vieram os católicos, depois os evangélicos e, agora, o grupo Asham catequiza dezenas de crianças e adolescentes de São Gabriel da Cachoeira (AM) para convertê-los em muçulmanos

Thalys Alcântara23/04/2023 – 5:00

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O corre-corre era intenso em uma das maiores escolas públicas de Manaus (AM). Diante do fim do ciclo escolar, uma professora decidiu chamar os formandos do ensino médio para uma roda de conversa. O objetivo era falar sobre os planos para o futuro e qual faculdade pretendiam fazer, mas o assunto ali discutido acabou culminando em uma operação de resgate da Polícia Federal.

Entre os estudantes, havia um grupo formado por indígenas, que tinha entrado recentemente na escola. Em resposta à pergunta sobre o futuro, e para a surpresa da professora, um deles disse: “O tio falou que ano que vem a gente já vai para a Turquia”.

O tio em questão era Abdulhakim Tokdemir, chefe de um grupo islâmico que, desde 2019, tem catequizado dezenas de crianças e adolescentes indígenas da Amazônia para seguir o islã. Não há registro de islamização de indígenas antes disso na história do Brasil.

Além da doutrinação em território brasileiro, esses adolescentes são levados de suas comunidades, em São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade mais indígena do Brasil e que fica na divisa com a Colômbia e a Venezuela, e enviados para Manaus, com parada em São Paulo e destino final na Turquia, quando completam a maioridade.

Da Amazônia para a Turquia

Crianças e adolescentes indígenas são escolhidos na fronteira com a Colômbia e seguem de barco até a capital do Amazonas. A viagem dura dias.

Alunos passam temporada no Brasil aprendendo árabe, turco e islamismo antes de serem levados para as cidades turcas de Kutahya e Tarsus.

Na capital amazonense, crianças e adolescentes vivem em um sobrado transformado em internato, onde ganham nomes em árabe. Lá, eles ficam diariamente em contato com o idioma turco e árabe. Os internos são ensinados ainda sobre o Alcorão e seguem uma rotina religiosa, que inclui cinco orações diárias e respeito ao jejum do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos.

Alguns frequentam escolas de ensino regular, outros nem isso. Em São Paulo, ficam mais um tempo em outro tipo de internato, e os mais velhos são enviados para as cidades de Kütahya e Tarsus, interior da Turquia, onde são matriculados em escolas religiosas.

Pelo menos cinco indígenas já foram retirados do Brasil e levados para território turco de 2019 para cá. O grupo islâmico que comanda a doutrinação se autointitula Associação Solidária Humanitária do Amazonas (Asham), e só se interessa por garotos indígenas. Nenhuma menina indígena foi levada pela organização.

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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A maioria dos indígenas que passaram pela Asham sabe ler trechos do Alcorão

Os pais dos alunos assinam uma autorização informal para a entrada dos filhos nesse grupo islâmico, com a promessa de fazer faculdade. Para famílias em situação de vulnerabilidade, em uma das cidades mais remotas do Brasil, a possibilidade de uma vida com mais oportunidades é um grande atrativo.

A autorização, no entanto, não vale nada na prática. A instituição islâmica não tem cadastro para funcionar como abrigo nem a guarda das crianças e dos adolescentes. De olho no grupo, a polícia desconfia das boas intenções pregadas.

A reportagem do Metrópoles foi até São Gabriel da Cachoeira, Manaus e São Paulo, conversou com 18 pessoas e andou mais de 6 mil quilômetros para entender melhor essa história e revelar, em primeira mão, o funcionamento dessa nova forma de catequização.

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Capítulo 1:

DA MATA PARA O ISLÃ

Mais jovem de 10 irmãos, Angelo (*nome fictício) nasceu e viveu até os 14 anos em Cucura Manaus, uma comunidade indígena no meio da Floresta Amazônica, perto da fronteira com a Colômbia. O local é tão remoto que nem está registrado no Google Maps, e só é possível chegar lá por embarcação ou avião particular.

*A reportagem optou por colocar nome fictício para evitar a exposição do adolescente na comunidade.

Filho de mãe do povo Tukano e pai Desana, o garoto indígena cresceu sob os cuidados dos irmãos mais velhos. Culturalmente, os indígenas da região recebem a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos.

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Abdulhakim Tokdemir leva indígenas de São Gabriel da Cachoeira até Manaus desde 2019

Em Cucura Manaus, a maior parte das moradias é de barro e de palha, interligadas por trilhas que cortam a mata. Os ribeirinhos, de diferentes etnias, vivem da roça e da pesca. Um estreito igarapé passa pela comunidade e deságua no rio Tiquié, que, por sua vez, segue ziguezagueando no sentido leste até os rios Uaupés e Negro.

Foi desse lugar que Angelo ficou sabendo de uma história vinda da cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira (AM). “Minha tia disse que uma associação ajudava as pessoas carentes”, resumiu Irene, de 28 anos, uma das irmãs de Angelo, que mora no município.

Duas irmãs de Angelo já tinham deixado a comunidade para estudar e trabalhar na cidade, assim como tios e primos, mas o caçula da família saiu da aldeia por um motivo bastante atípico: ele foi enviado para ser educado por um grupo de turcos islâmicos.

Um familiar de Angelo negociou diretamente com Abdulhakim Tokdemir a ida do sobrinho para a Asham em Manaus (AM). O caminho é longo e feito pela água. Em linha reta, são mais de mil quilômetros.

O caçula da família foi acomodado na chamada voadeira (uma canoa de metal) com um pequeno motor atrás (a rabetinha). O trajeto de Gabriel da Cachoeira até o local de onde partem embarcações para Manaus dura cinco dias.

“A gente tem que levar mosquiteiros porque tem muito carapanã e pinhõ [tipos de mosquito]. Dá medo um pouco, por causa das cachoeiras. É muito cansativo”, lembra Irene, que só fez essa viagem duas vezes em toda sua vida.

Depois, são mais três dias de deslocamento até Manaus em um ferry boat (tipo de balsa) ou 24 horas em um barco menor chamado de “expresso”. A passagem custa cerca de R$ 500 por pessoa.

O caminho de Angelo

Durante o caminho entre Cucura Manaus e São Gabriel da Cachoeira, Angelo e seus familiares acampam na beira do rio para descansar e dormir.

As paradas são feitas, de preferência, em praias naturais e sob a proteção de árvores maiores, onde realizam as refeições que levam embaladas ou que pescam ali mesmo.

As refeições também podem ser oferecidas pelos parentes (outros indígenas) de comunidades que ficam no caminho. Os pratos mais comuns são beiju, mingau e quinhãpira (um caldo de peixe apimentado).

Também é preciso fazer paradas em caso de chuva.

Durante tempestades, ondas grandes são formadas no rio e podem naufragar embarcações.

A segunda parte da viagem é entre São Gabriel e Manaus.

Essa parte pode ser feita de balsa ou em um barco mais comprido, durando entre 24 horas e 3 dias.

Na balsa, os viajantes dormem em redes, na parte superior.

Os turcos pagam a passagem e recebem o novo integrante no porto manauara de São Raimundo.

Vai e volta

Depois de um ano morando na associação islâmica em Manaus, na tarde do dia 28 de fevereiro de 2023, Angelo foi um dos 14 adolescentes e uma criança resgatados no sobrado em que eles ficavam em Manaus, em uma operação com apoio da Polícia Federal por causa de irregularidades na documentação e nas condições do imóvel.

Equipes de conselheiros tutelares, com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), constataram três freezers cheios de carnes vencidas desde 2021 – o alimento era consumido pelos adolescentes.

Os agentes também identificaram que a instituição muçulmana não tinha a guarda das crianças e dos adolescentes, o que seria necessário para mantê-los longe das famílias. Além disso, o registro do CNPJ da Asham não era para abrigo e não havia cadastro na prefeitura.

Todos os adolescentes e crianças resgatados voltaram para a casa dos pais, entre eles Angelo. Os conselheiros tutelares e a polícia não têm um número exato de quantos indígenas passaram pela instituição, mas sabem que são dezenas.

Em outubro, eram oito abrigados com idades entre 9 e 15 anos. No começo de fevereiro, havia 18 adolescentes e crianças.

Angelo, que atualmente tem 16 anos, recebeu a reportagem do Metrópoles em sua atual casa, no bairro Miguel Quirino, na periferia de São Gabriel da Cachoeira, duas semanas após ter deixado o centro islâmico.

A maior parte das crianças, dos adolescentes e jovens levados pelo grupo islâmico é desse bairro. Um parente de Angelo, que mora na mesma vizinhança, ajuda a escolher os adolescentes e as crianças que vão ingressar no grupo muçulmano. Um primo de Angelo já está na Turquia há dois anos.

Angelo vive agora com duas irmãs mais velhas e dois sobrinhos em uma casa cercada de pés de açaí e terra batida. As paredes externas da moradia são feitas por blocos de cimento, e os cômodos, divididos por paredes improvisadas, fabricadas com tecidos e uma placa de madeira pintada com uma ilustração do Fuleco, o mascote da Copa do Mundo de 2014.

Diferentemente dos outros membros da casa, o garoto recém-chegado de Manaus não tem um quarto privativo. Ele dorme em uma cama na cozinha, dividindo espaço com geladeira, fogão e alimentos.

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Obrigado a rezar

Com sorriso tímido e olhar inicialmente desconfiado, Angelo contou que até gostava de viver em Manaus com outros garotos da idade dele e os “abi” (irmão em turco), que é a forma como eram chamados os três turcos, assistentes de Abdulhakim Tokdemir, que vivem na instituição com os meninos indígenas. No entanto, o que ele não gostava era das rezas diárias, que no começo eram opcionais, mas, depois, passaram a ser obrigatórias.

“O responsável acordava a gente às cinco da madrugada. Nós, então, arrumávamos as nossas camas, limpávamos a casa e tomávamos o café. Depois do banho, os professores nos davam aulas de árabe e turco. As classes de línguas eram seguidas de um momento de oração. Em seguida, a gente lavava os uniformes da escola. Nós rezávamos antes da janta e de novo antes de dormir. Essa era a nossa rotina todos os dias”, contou o adolescente Desana na língua Tukano.

Angelo fala português, mas só se sentiu à vontade para contar mais sobre a situação da instituição islâmica falando em tukano, língua materna de diferentes povos da região do rio Uaupés, onde fica Cucura Manaus, na parte de baixo da chamada Cabeça do Cachorro. A região noroeste do Amazonas é conhecida por esse nome por causa do formato do mapa – que lembra a cabeça de um animal.

Além do português, São Gabriel da Cachoeira tem outras três línguas oficiais
TUKANO

Além do povo Tukano, a língua tukano é usada por outros povos dos rios Uaupés, Tiquié e Papuri. O idioma acabou se transformando em língua franca nessa região para que diferentes povos se comuniquem

BANIWA

Nome dado aos povos que falam diferentes línguas da família Aruak, na região do rio Içana. No fim dos anos 1990, a gramática do idioma foi unificada — a língua também é falada pelo povo Koripako

NHEENGATU

Conhecida como Língua Geral ou Tupi Moderno, criada a partir do Tupinambá. O idioma é falado pelos Baré e Warekena dos rios Xié e Alto Rio Negro

Vergonha de rezar

No dia a dia dessa espécie de internato islâmico criado em Manaus, as atividades religiosas aconteciam com mais intensidade durante a manhã. Parte dos alunos ia para a escola regular à tarde. Por falta de documentação, oito estavam sem matrícula na rede estadual neste ano.

As aulas de árabe, por exemplo, eram repetições de páginas do Alcorão que deveriam ser decoradas em detalhes. Nas sextas-feiras, os jovens eram levados para uma reza especial na mesquita. Durante feriados e folgas prolongadas, os alunos tinham intensivão de árabe e turco. Nas férias, voltavam para a casa dos pais em São Gabriel da Cachoeira.

A reportagem tentou contato com a mesquita, que funciona no Instituto Islâmico de Manaus, mas os pedidos de entrevista não foram atendidos.

Durante uma visita à instituição islâmica em janeiro de 2023, conselheiros tutelares de Manaus relataram que se depararam com um local insalubre: um quarto com beliches e “muitas carnes expostas penduradas”. “Para ser um abrigo, precisa melhorar muito”, escreveram os conselheiros em um relatório.

Polícia Federal/Divulgação

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Polícia Federal verifica a qualidade da comida refrigerada durante operação que retirou jovens indígenas da Asham

No islamismo, o abate dos animais para consumo deve ser feito de um jeito específico, evocando o nome de Deus (Alá). As carnes exportadas para países muçulmanos, por exemplo, são produzidas seguindo essa forma de corte.

Por conta disso, os turcos que moravam com crianças e adolescentes indígenas compravam frangos e bovinos vivos. Eles mesmos matavam os animais. As aves eram abatidas na própria instituição, e os bovinos sacrificados atrás de um açougue de Manaus. Isso explicaria as carnes penduradas no quarto com beliches.

O abate é feito por um muçulmano, que deve pronunciar o nome de Alá.

A face do animal deve estar voltada para Meca, cidade sagrada do islã.

O animal não pode estar com sede no momento do abate.

A faca usada não pode ser afiada na presença do animal.

O corte deve ser feito no pescoço em um único movimento, que deve atingir jugular, traqueia e esôfago.

O sangue deve ser totalmente escorrido da carcaça.

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No mês do Ramadã, o almoço não era servido, e os adolescentes tinham apenas café da manhã e jantar reforçados. Nesse período, os muçulmanos celebram a data em que Mohammad recebeu a revelação da palavra de Alá. Eles realizam um jejum do nascer ao pôr do sol.

Mesmo quando não era época do Ramadã, a alimentação dos indígenas abrigados era inadequada, segundo o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).

De acordo com o conselho, o cardápio da instituição ficava longos períodos sem proteína. Durante uma visita em outubro de 2022, os turcos serviram um almoço apenas com feijão, arroz, farofa e refrigerante. Uma criança disse que sentia vontade de comer peixe e farinha, base da alimentação nas comunidades ribeirinhas da fronteira com a Colômbia.

Abdulhakim diz que apenas os adultos eram obrigados a seguir o Ramadã, mas os pais e adolescentes disseram que todos eram incluídos no jejum. O líder da Asham também diz que houve um período em 2022 sem carne de gado, por falta de fornecedor, mas que havia frango e peixe. Sobre a carne vencida, seria uma doação de São Paulo, que não teria sido consumida, mas os internos dizem que comeram.

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Os indígenas internos da Asah rezam cinco vezes ao dia, inclusive antes de jantar e de novo na hora de dormir

Nos fins de semana, os jovens podiam jogar futebol em um campo de grama sintética, comer pizza e, às vezes, passear pela Praia de Ponta Negra, mas não tinham autorização para entrar na água, só era permitido molhar as pernas e as mãos.

“Eles levavam a gente na Ponta Negra para jogar bola. No fim do jogo, antes de retornar para casa, faziam reza com a gente. Eu ficava com vergonha nesse momento de reza em público”, relata Angelo, dando uma risada. “Me dá vergonha só de contar.”

Outros dois adolescentes que viveram na instituição acrescentaram que era proibido tomar banho no rio porque “não podia mostrar as partes e ficar sem roupa”, “porque é a religião deles”.

Dupla doutrinação

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Angelo e a irmã diante de guarda-roupa com imagens religiosas

No quarto da irmã mais velha de Angelo, o guarda-roupa de madeirite é enfeitado com uma porção de símbolos católicos: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima grudada com fita adesiva, Jesus Cristo crucificado, São Jorge sobre o cavalo branco matando o dragão e um terço de cruz branca com bolinhas coloridas.

“Eu não sei se os turcos querem que a gente seja igual a eles… Eu acho. Porque a gente é católico e não sei qual a religião deles”, pontua Rosa, a dona do quarto, ao comentar a diferença religiosa.

A comunidade de onde a família de Angelo veio passou por um processo de catequização católica, desde o começo do século 20, por missionários da Congregação Salesiana. A família, que é Desana, se converteu ao catolicismo desde antes de seus avós.

“Meu pai começou a trabalhar com os missionários para ajudar a catequizar o povo Hupda quando eu era pequena. Aí ele foi ajudando e ficou. Até hoje meu pai catequiza. Ele pega a estrada por meia hora e pouco. Ele acorda 6h da manhã e chega lá às 7h”, conta Irene.

O povo Hupda fala maku, uma língua totalmente diferente de tukano, baniwa ou nheengatu, os idiomas oficiais do município. Eles são considerados de recente contato com não indígenas. Muitos não falam português e não têm habitação fixa.

Para realizar esse trabalho de catequização católica, o pai de Angelo sai de sua moradia, em Cucura Manaus, por volta das 6h e caminha por cerca de 45 minutos até Fundação Nova, uma comunidade mais para dentro da floresta, onde vive o povo dessa etnia.

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Capítulo 2:

MOSAICO DA FÉ

A população estimada de São Gabriel da Cachoeira era de 46,3 mil habitantes em 2020. Desse total, mais de 75% são indígenas. Isso fica evidente andando pelas ruas da cidade. O prefeito é indígena, o dono do supermercado é indígena, o padeiro é indígena. O pastor e o padre também.

O município fica na região denominada como Médio e Alto do Rio Negro e é composto por uma área urbana com mais infraestrutura e 750 comunidades e povoados espalhados nas beiras dos rios e nas matas, que englobam 23 etnias.

A área do município é gigantesca, maior que a do estado de Santa Catarina e da Guatemala, por exemplo. Navegar de uma comunidade para outra depende de embarcações e gasolina, um insumo valioso e motivo de disputa.

Município mais indígena do país é o terceiro com mais território
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O valor do litro da gasolina chega a R$ 15 nas aldeias mais longínquas, três vezes mais que o preço médio no Brasil. Em algumas áreas, o insumo é adquirido mediante troca por objetos e alimentos.

“Eu não vendi meu filho”

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Menino indígena que foi retirado da Asham em operação da Polícia Federal

Embora São Gabriel da Cachoeira tenha um território tão amplo, as informações já circulam rapidamente no município, ainda mais com o aumento de comunidades com sinal de internet e a propagação dos smartphones.

A ida de dezenas de crianças e adolescentes para uma instituição islâmica que leva indígenas à Turquia não passou batida pelo sistema informal de notícias, mais conhecido como “fofoca”.

Não foi difícil encontrar moradores de São Gabriel da Cachoeira que diziam saber alguma coisa sobre a associação turca que levava filhos dos moradores, mas os comentários costumam estar acompanhados de estigmas e preconceitos.

“Relação com terrorismo”, “obrigados a usar drogas”, “iam transformar os meninos em homens-bomba” e “venda de crianças” foram alguns dos relatos ouvidos pelo Metrópoles. Inclusive autoridades e agentes públicos, ao conversar com a reportagem de forma reservada, mencionaram comentários semelhantes, embora não se tenha nenhum indício de terrorismo ou tráfico humano.

Os rumores se intensificaram depois que os garotos indígenas foram retirados da instituição em uma operação envolvendo a PF, conselhos tutelares e a Funai. Uma comitiva, incluindo o prefeito, foi para o porto de São Gabriel receber as crianças e os adolescentes, que chegaram de ferry boat no dia 4 de março, acompanhados de uma assistente social.

“A fofoca que mais ouvimos era que os turcos iam vender as nossas crianças. Muita gente falava na minha cara: ‘Certeza que está recebendo dinheiro’. Eu não ganho dinheiro com isso. Mas eu não me preocupo, sei que meu filho vai voltar. Eu não vendi meu filho”, conta em tom melancólico o carpinteiro do povo Tuyuka Osvaldo Dias Sanches, de 43 anos.

Osvaldo é o principal articulador da ida dos indígenas para a Asham em Manaus. Ele organizou a viagem de Angelo, por exemplo, que é seu parente. O filho de Osvaldo, o jovem Edney, hoje com 19 anos, fez parte do primeiro grupo a ir para a capital amazonense e também foi o primeiro a se mudar para a Turquia, ainda com 16 anos.

Em dias difíceis, quando chega a faltar comida, Osvaldo pede ajuda para Abdulhakim Tokdemir, que envia pequenas quantias de dinheiro, como, por exemplo, um montante de R$ 200. Um pai de um outro jovem que foi levado para fora do país ganhou uma cirurgia de catarata.

Diretora na Funai, Lúcia Alberta Baré vê com desconfiança esse assistencialismo da instituição islâmica. Ela reconhece a eficiência de uma política de assistência para povos em situação vulnerável, como a entrega de cestas básicas, mas, no caso da Asham, entende que há má-fé e que o objetivo real do grupo é o proselitismo religioso.

“O que se tem de conhecimento sobre esse grupo islâmico é que eles usavam a questão da cesta de alimentos e a doação de dinheiro como uma forma de manipular esses pais, para que eles não fizessem denúncias e não buscassem mais informações sobre essas ações que esse grupo desenvolve.”

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Autorização inválida

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Osvaldo é responsável por convencer famílias a enviarem seus filhos para a Asham

Ao lado da esposa, Nazária, de 52 anos, Osvaldo contou que recebe demandas de Abdulhakim Tokdemir sobre a quantidade de garotos que deve selecionar. Muitos dos escolhidos são amigos e familiares do mesmo bairro, o Miguel Quirino.

“Eu falava com os pais deles, se estavam interessados em enviar seus filhos para estudar em Manaus, São Paulo e fora do Brasil. Eu explico para os pais: ‘Como a gente não tem dinheiro para pagar os estudos, na instituição deles ninguém gasta nada, ninguém paga, tu não vai gastar nada, eles vão comprar tudinho – roupa, comida, tudo que precisar é com eles”, explica Osvaldo.

Nos relatos dos familiares ouvidos pela reportagem, é comum a citação do nome de Osvaldo. A ida de Edney para a Turquia costuma ser usada como um exemplo de que o esquema dá certo. “Se o filho do Osvaldo conseguiu ir e está tudo bem, então meu filho também pode conseguir”, diz um dos familiares ouvidos pela reportagem.

De acordo com o carpinteiro, Tokdemir costuma ser específico nos pedidos: “Este ano eu vou querer 10 alunos”. Por conta das exigências, houve uma dificuldade inicial para conseguir levar os filhos dos moradores. O turco ainda exige a autorização assinada pela mãe e pelo pai. Nos casos dos filhos registrados apenas pela matriarca, basta uma assinatura.

A autorização é chamada de “termo de consentimento” e tem a assinatura dos pais da criança reconhecida em cartório. No entanto, segundo as autoridades, esse documento não tem validade jurídica para a Asham manter a guarda dos garotos.

O texto tira a responsabilidade da associação islâmica e de seus integrantes de qualquer incidente que aconteça com as crianças e os adolescentes. Mas perante a lei, a cláusula não vale nada.

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Mesmo com esse documento, tanto a instituição quanto os pais podem ser responsabilizados em caso de violência contra a integridade das crianças e dos adolescentes. É o que explica a advogada Luiza Simonetti, presidente da Comissão de Direito de Família e Adoção da OAB do Amazonas.

“O consentimento dos pais não é suficiente para institucionalizar uma criança. Eles precisam formalizar essa vontade para o Judiciário”, explica a advogada. Segundo Luiza Simonetti, esse processo passa pelo Ministério Público e pelo Juizado da Infância. Um magistrado deve autorizar o ingresso da pessoa com menos de 18 anos em uma instituição.

Pioneiro

O primeiro grupo a ir para a Asham em Manaus foi formado por cinco adolescentes, entre eles o filho de Osvaldo, Edney, que está atualmente na Turquia. Os outros quatro “não se adaptaram” à instituição e voltaram para São Gabriel da Cachoeira.

Desde que a instituição islâmica passou a atuar no Amazonas, crianças e adolescentes retornaram para a casa dos pais por opção ou, segundo a Asham, por mau comportamento.

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De acordo com Abdulhakim, houve um caso de um adolescente que teria assaltado um posto de gasolina com colegas da escola. Também há relatos dos pais de alunos sobre um garoto que teria aplicado pasta de dente no rosto dos colegas enquanto eles dormiam, como forma de brincadeira.

Uma mãe disse que o filho foi expulso porque malinava muito (fazia travessuras) e ficava rindo do sotaque dos assistentes turcos, que não falam bem português. Assim, a instituição vem mantendo apenas os adolescentes que consideram mais adequados e comportados.

Essas características fazem parte, inclusive, das exigências de Abulhakim a Osvaldo, na escolha dos novos alunos. A preferência é por adolescentes com idade entre 12 e 15 anos, que seriam obedientes e que realmente quisessem estudar.

Qual o seu Deus?

Quando conheceu Osvaldo, Abulhakim disse que os internos não são obrigados a virar muçulmano, mas a rotina religiosa é constante na instituição, inclusive ao chegar à Turquia. Edney fala com os pais todo fim de semana sobre como está o dia a dia na Siteler Talebe Yurdu, escola religiosa em que vive na cidade turca de Kütahya.

Os pais de Edney chegaram a visitar a instituição em Manaus, antes de o filho seguir para fora do país – a viagem foi custeada pela Asham.

A família de Osvaldo é católica, e Edney declarou para a reportagem que “acha que é muçulmano”. Para o carpinteiro, não será problema se o filho mudar de religião.

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Osvaldo tem orgulho que o filho estuda o Alcorão e fala árabe

“Pessoal aqui [em São Gabriel da Cachoeira] muda muito, tem muita igreja. Católico quase não tem mais ninguém. Lá para cima do rio estão querendo levar essa outra igreja [evangélica]. Eu não sei qual é melhor. Meu filho tem que aprender a ser muçulmano se quiser continuar a trabalhar com os turcos. Não [ia ser problema se ele virasse muçulmano], porque cada qual vai na religião dele. Se quiser mudar, ele muda. Tem muito parente [outros indígenas] que já mudou, são das outras igrejas”, avalia o carpinteiro.

Antes de Edney partir para a Turquia, ele deixou com os pais um exemplar do Alcorão e um misbaha de madeira (espécie de rosário islâmico). O livro sagrado é todo escrito em árabe, e o casal se refere a ele como “o livro que nosso filho estuda”.

Arquivo Pessoal

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A maioria dos adolescentes indígenas que esteve na instituição islâmica sabia ler em árabe um trecho do Alcorão.

“Finge que é turco”

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Órfão de pai e de mãe, Antônio viveu em um internato Salesiano durante a infância e adolescência

Crianças e adolescentes indígenas ganham um nome árabe logo após o ingresso no internato improvisado de Manaus. Nomes como Danial, Ömer Faruk, Difid, Bekir Ali e Mustafá.

Abdulhakim Tokdemir diz que a mudança é apenas para facilitar a pronúncia, apesar de ser comum que pessoas que se convertem ao islamismo passem a ter um novo nome em árabe. A mudança, porém, não é obrigatória na religião.

Na Asham, esses nomes são usados apenas durante as aulas com os turcos. Depois da mudança para a Turquia, passam a ser permanentes.

A religião muçulmana exige essa alteração quando o nome de batismo da pessoa significa algo considerado ruim, como adoração a outros deuses, mas também pode ser opcional para o convertido se sentir mais dentro da nova fé.

A mudança de nome e de religião permeia a mente de Antônio Tenório Bastos, de 49 anos, professor indígena do povo Tukano, e que também entregou o filho para a instituição islâmica.

Órfão de pai e de mãe, Antônio viveu em um internato Salesiano no distrito de Pari-Cachoeira, na divisa com a Colômbia, durante a infância e adolescência.

Ao comentar o fato de a associação islâmica dar um nome árabe para o filho, o professor lembrou que usa o nome católico “Antônio”, mas tem um nome em Tukano, Ʉremiri (o fonema Ʉ é pronunciado pela garganta, de boca fechada), que quer dizer “rouxinol”.

“Eu falei para o meu filho: ‘A religião deles é outra. Tudo se chama fingir. Faz de conta que você é turco, mas você vai ser Tukano lá”, explica Antônio.

Ainda nessa explicação, o professor disse que orientou o filho a não se esquecer de Deus, Jesus, Nossa Senhora, Anjo da Guarda e dos deuses (criadores) Yepá-oãku, que é a divindade masculina criadora do céu e do universo, e a Yepá-oako, que é a versão feminina dessa divindade. Antônio pontua que, no sincretismo, ela também é Nossa Senhora.

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Antônio Tenório Bastos é professor indígena do povo Tukano e também entregou o filho para a instituição islâmica

“A prática de fazer oração vai ser a prática de lá, mas, espiritualmente, o pensamento vai ser teu, meu filho, vai ser nosso. Tu vai estar falando com esse estilo de tradição turco, mas aqui, espiritualmente (aponta para a cabeça), você vai estar com nossos senhores. Falei para ele: ‘Assim que você tem que ser: não vai esquecer nosso Deus e vai trazer o Deus deles também’”.

Embora a associação islâmica leve crianças e adolescentes de modo completamente irregular, o consentimento dos pais não é dado de forma perversa ou totalmente ingênua.

Os pais dessas crianças parecem contrabalancear riscos e até desenvolvem estratégias para encarar essa nova cultura islâmica. E não é a primeira vez que eles têm de lidar com um aparente proselitismo religioso misturado com oferta de benefícios.

Um século de catequização

Paulo Desana/Rede Wayuri.

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O antropólogo Aloisio Cabalzar estuda a história da religiosidade na Amazônia

A missão católica salesiana chegou ao Rio Negro em 1915 com uma proposta civilizatória e de profissionalização. É o que explica o antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA) Aloisio Cabalzar, que estuda a religiosidade nessa região da Amazônia.

“Naquele período, eram padres em geral europeus (italianos e alemães) com um ideário bem antigo, dos índios selvagens e primitivos que precisam ser trazidos para a civilização. As crenças e concepções dos indígenas eram associadas ao culto ao diabo”, explica o pesquisador.

Segundo Cabalzar, os missionários católicos chegaram a proibir as línguas indígenas e condenavam as malocas, tipo de construção ampla de madeira e palha, onde as famílias viviam e realizavam rituais, festas e danças.

As crianças das comunidades indígenas eram afastadas de suas famílias e levadas para internatos. À medida que esses alunos iam avançando nos estudos, seguiam para lugares mais distantes.

“Eram grandes escolas que tinham redários no andar de cima, onde ficavam centenas de alunos. Essas crianças eram afastadas desde cedo para estudar nesses internatos e ficavam lá todo o período letivo, iam para casa só nas férias. Então, de certa forma, cortava essa circulação dos conhecimentos próprios (indígenas)”, pontua Cabalzar.

Diversidade étnica
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Maiores populações por etnia:
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Na cosmologia dos povos indígenas da região do Rio Negro, os primeiros humanos pegaram carona em uma cobra gigante, a cobra-canoa (pamulin yuhkusoa), que saiu deixando os diferentes povos nas margens do rio

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Naquela época, não havia a presença forte da jovem República brasileira na região do Rio Negro. Indígenas eram condenados ao trabalho forçado e ficavam à mercê de comerciantes que dominavam o território com muita violência.

“No começo, os salesianos foram acolhidos porque contiveram esses abusos que já existiam”, aponta o antropólogo.

Messianismo evangélico

Enquanto a Igreja Católica obteve sucesso em catequizar os indígenas das proximidades do rio Uaupés, que falam línguas da família Tukano, missionários evangélicos atuaram na região do rio Içana, na parte de cima da Cabeça do Cachorro, incluindo comunidades da Amazônia na Venezuela e Colômbia.

Nessa região vivem povos como os Baniwa e Kuripako, que foram evangelizados principalmente por um movimento da missionária Sophie Müller, que começou entre os anos 1940 e 1950. Ela era ligada a um instituto norte-americano de linguistas evangélicos que aprendiam as línguas indígenas para pregar nas aldeias.

“Houve um movimento quase que messiânico de conversão dos Baniwa à religião evangélica”, avalia Cabalzar.

Religião dominante em cada região na Cabeça do Cachorro
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Com o passar das décadas e o acúmulo de críticas, a Igreja Católica reviu suas práticas de catequização e hoje não existem mais internatos para indígenas. Essa mudança ocorreu a partir dos anos 1970 e teve influência de movimentos como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“Fecharam os internatos e passaram a rever essas práticas, as linhas catequéticas e pastorais. Hoje, os católicos começam até a levar rituais e instrumentos dos indígenas para dentro das missas.”

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Placas de igrejas evangélicas na entrada da cidade de São Gabriel da Cachoeira evidenciam proselitismo religioso no Alto Rio Negro

Sincretismo

Com pelo menos um século de experiência com o cristianismo, os povos do Alto do Rio Negro acabaram criando paralelismos entre suas crenças e a religião católica, segundo o antropólogo Aloisio Cabalzar.

O tukano Antônio, por exemplo, diz que o ser Yepa-Oako é Nossa Senhora. No entanto, de acordo com Cabalzar, os sistemas das crenças cristãs e do povo Tukano são bem diferentes.

“Uma noção de fundo no sistema deles é que o ser humano não está fora da natureza, não há essa separação do ser humano do mundo natural, como no cristianismo (o homem como senhor da criação)”, explica o antropólogo.

Segundo o estudioso, na cosmologia do povo Tukano, o ser humano é “parte de relações interespecíficas complexas”, com uma agência importante para cuidar dessas relações e fazer com que elas aconteçam de forma regular e saudável.

“Para que essa agência se efetive, é preciso conhecer e curar o mundo constantemente. Curar através de benzimentos de proteção, de comunicação com os donos dos animais, dos peixes, da floresta, das estações do ano, fazer as cerimônias apropriadas”, detalha Cabalzar.

Capítulo 3:

TURCOS NA AMAZÔNIA

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Correnteza no Rio Negro próximo a região da Cabeça do Cachorro. Os turcos percorreram o rio para acessar a região de São Gabriel da Cachoeira

O contato entre Abdulhakim Tokdemir e os povos indígenas de São Gabriel da Cachoeira começou em um cenário turístico da capital do Amazonas. Diariamente, visitantes da cidade assistem ao chamado “encontro das águas”, que é o momento em que o Rio Negro cruza com o Rio Amazonas, misturando as diferentes cores de suas águas.

O ano era 2019, e o são-gabrielense do povo Pira-tapuya Daniel Rodrigues ganhava a vida realizando rituais indígenas com um grupo de parentes (outros indígenas) no “encontro das águas” em Manaus.

As danças ritualísticas, passadas de geração em geração, serviam de atração para os turistas. Mais tarde, Daniel abandonou o trabalho porque o pagamento era muito pouco, entre R$ 50 e R$ 120 por semana.

Foi nesse contexto que o grupo de dançarinos indígenas passou a receber visitas de turcos que realizavam atividades beneficentes e presenteavam os indígenas com pacotes de comida. Alguns dias depois, Tokdemir foi ao local novamente à procura de Daniel. O turco tinha uma proposta.

Conversando com o então dançarino Pira-tapuya, Abdulhakim Tokdemir fez a promessa de dar estudo formal para adolescentes de São Gabriel da Cachoeira até a faculdade. No diálogo entre o indígena e o turco, as intenções religiosas também foram expostas.

Daniel foi catequizado na Igreja Católica, mas quando chegou a Manaus frequentou igrejas evangélicas, como a Universal do Reino de Deus.

“Todas essas igrejas gostam dos índios, mas na hora que eles precisam. Na hora que eles não precisam, a gente é escanteado”, desabafa Daniel, no quintal de sua casa, em uma rua de terra da comunidade Tarumã, periferia de Manaus.

O ex-dançarino Pira-tapuya não esconde certa expectativa com a nova religião descoberta, embora hoje se considere sem religião. O filho dele, que está em Tarsus, na Turquia, já se converteu ao islamismo.

“Essa questão de religião eu pensava muito. Será que tem mais outra religião? Então, acho que Deus mostrou que existe. Acabei conhecendo esse muçulmano”, diz Daniel.

Abdulhakim pregou para Daniel que os missionários cristãos teriam ensinado só metade do caminho e prometeu que os turcos dariam um ensino completo. Também ensinou que a Bíblia Sagrada teria passado por muitas mudanças na tradução, enquanto que o Alcorão teria mantido as palavras originais.

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Daniel mostra a foto do filho Daubles, que está em Tarsus, na região de Adana, na Turquia

Nessa mistura de conversa sobre religião e proposta de ajuda humanitária, Abdulhakim explicou qual seria a função de Daniel.

O Pira-tapuya narrou o diálogo com o turco: “Ele falou assim: ‘Conversei com muito cacique de muita região. Eu apresentei esse projeto e ninguém trouxe nenhum aluno até hoje’. Aí ele disse: ‘Olha, tem criança em São Gabriel da Cachoeira?’. Eu falei: ‘Tem. A partir de qual idade seria?’. Aí ele falou: ‘A partir de 12, 15 anos – no máximo 15 –, porque os maiores não obedecem mais’”.

O superior

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Abdulhakim convidou Daniel para ajudá-lo a convencer os pais a entregarem seus filhos para a Asham

Sem dar certeza de que aceitaria a proposta, Daniel então pediu para conversar com um superior do turco e, alguns dias, depois foi apresentado a um homem, que ele disse não se lembrar do nome.

Dentro de um escritório, esse homem girou um globo terrestre sobre a mesa e apontou várias regiões do planeta, como países da Ásia e da América Latina, onde teria trabalho de instituições islâmicas com adolescentes. “A gente trabalha em nível internacional”, teria falado esse superior de Abdulhakim Tokdemir.

Com essa promessa na mente e com a intenção de mandar o filho para estudar na Turquia, Daniel repassou as propostas de Tokdemir para os conhecidos de São Gabriel da Cachoeira.

“Eu apresentei essa versão que ele me passou: ‘Olha, tem uns missionários que ajudam pessoas carentes. Eles oferecem moradia, material escolar e alimentação, tudo tem lá’”.

Inicialmente, Daniel não conseguiu que o filho fosse levado para a instituição islâmica. Era necessário o consentimento da ex-mulher, mãe do adolescente, que não achou uma boa ideia.

A primeira leva de garotos para a Asham ocorreu em 2019 e teve uma pausa no início da pandemia. Depois de Edney, o filho de Osvaldo, ter ido para a Turquia, ficou mais fácil o convencimento para que mais famílias enviassem seus filhos. A ex-mulher de Daniel cedeu, e o filho do casal, Daubles, vive na Turquia desde o primeiro semestre de 2022.

Abdulhakim Tokdemir nega que o senhor que falou com Daniel seja seu superior. Segundo o líder da Asham, trata-se de um amigo idoso, professor de inglês aposentado. Abdulhakim alega que, quando girou o globo terrestre e apontou pontos em países, esse idoso teria falado sobre a história da dispersão do ser humano pelo mundo desde Adão e Eva, e não sobre grupos islâmicos espalhados.

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Celular de Osvaldo com foto de seu filho, Edney Cabral, que está morando na Turquia

Edney, um Tuyuka em Kütahya

Eram cinco da madrugada e Edney dormia em sua casa modesta, em São Gabriel da Cachoeira, quando foi acordado repentinamente pelo pai, Osvaldo, e precisou arrumar sua mala às pressas. Ele iria embora com outros quatro colegas indígenas para estudar com os turcos em Manaus.

Um dos adolescentes havia desistido de última hora, e Abdul Tokdemir, o líder da associação turca, queria aproveitar o valor já pago na passagem.

Quatro anos depois, Edney vive na Siteler Talebe Yurdu, um internato religioso islâmico na cidade montanhosa de Kütahya, no interior da Turquia. Hoje, ele tem 19 anos.

O jovem do povo Tuyuka é um dos cinco adolescentes indígenas de São Gabriel da Cachoeira que foram levados para o território turco. Os outros quatro estão em um internato na cidade de Tarsus, na região de Adana.

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Daubles Rodrigues, filho de Daniel, está em Tarsus, na região de Adana, na Turquia

Por telefone, Edney contou para a reportagem que os primeiros dias na Turquia foram difíceis porque ele não entendia bem o idioma. Diferentemente dos outros indígenas que passaram uma temporada em São Paulo antes de seguir para fora do país, Edney foi diretamente e ainda era menor de idade na época.

“Eu quis ir sozinho. Os vizinhos falavam que iam me sequestrar e que eu nunca mais retornaria para minha casa, mas, quando cheguei aqui, [os turcos] não fizeram nada, só me ajudaram.”

Em Kütahya, Edney é chamado pelo nome em árabe Suhail (a pronúncia é su-rrei), que ganhou ainda na instituição em Manaus.

Ao ser questionado se foi convertido ao islamismo, Edney disse que antes não tinha religião, apesar de os pais serem católicos. “Mas agora, eu acho que sou (muçulmano), que eu comecei a gostar de viver como os muçulmanos vivem.”

Na internet, a Siteler Talebe Yurdu é avaliada como um dormitório estudantil “muito religioso”, um “albergue de aprendizado do Alcorão”, o “mais adequado para a civilização islâmica turca” e “um bom lugar para a educação do aluno em termos religiosos, morais e científicos”.

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Antes e depois

A cerca de 700 quilômetros de Edney, estão os outros quatro estudantes indígenas brasileiros, no internato Makam, em Tarsus, na região de Adana, na Turquia.

O local é descrito na internet como um dormitório masculino, e as avaliações em turco são exaltando o lado religioso da instituição.

“Magnífico dormitório onde os alunos que leem o Alcorão são imaculados e brilhantes”, escreveu uma pessoa identificada como Osman Karakus. “É um mundo separado, cheio de espiritualidade, e que serve o Alcorão. É necessário viver para entendê-lo”, escreveu Soner Sagnak.

“É um lugar onde ficam as crianças pobres ou pobres da aldeia”, assinalou Orhan Avsar.

No entanto, nem todos os comentários são elogiosos. Há cinco anos, uma pessoa identificada como Kadir Konu escreveu o seguinte sobre o internato em Tarsus:

“Não é um lugar nada legal. Só tem um professor. Não se fala aqui. Que tipo de pessoa ele só serve para o culto, caso contrário, não venha para ficar, igual a uma prisão tipo F.” Prisão tipo F é o presídio de segurança máxima da Turquia.

É lá que vive, há cerca de um ano, o jovem Daubles, filho do Pira-tapuya Daniel.

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Nas redes sociais, ele publicou uma montagem em fevereiro com a legenda “antes e depois”. No “antes”, aparece a foto dele em frente a uma parede sem reboco, deitado, sem camisa, com uma corrente no pescoço. Já na imagem do “depois”, Daubles está de camisa e blazer, com montanhas da Turquia ao fundo.

Um colega de São Gabriel da Cachoeira comentou na foto em tom de brincadeira: “Essa primeira foto era quando você era da bagaceira, né?”. E Daubles respondeu: “Pois é, velhos tempos”.

O alcoolismo e o uso de drogas ilícitas são assuntos presentes nas falas dos pais que entregaram seus filhos para a instituição islâmica. Além da esperança de um futuro melhor em relação aos estudos e à vida profissional, os familiares veem uma chance de afastar os filhos das drogas. O uso abusivo de álcool é um problema enfrentado em várias comunidades indígenas.

Durante uma visita do conselho tutelar de Manaus no começo de 2023, a única brasileira e mulher integrante da Asham, a pedagoga Saleth Paes, disse que a “finalidade da associação é retirar esses adolescentes do ócio e das drogas ilícitas”.

Quem é quem na Asham
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Ponto de parada

Em São Paulo, os adolescentes continuam o estudo em turco e a rotina religiosa na União Cordial Harmonia Espiritual (Unicor), situada em uma rua residencial na zona leste da capital paulista. A estadia no local funciona como um preparo mais avançado antes de seguirem para a Turquia.

O imóvel da Unicor é uma casa de tijolinhos, com subsolo e primeiro andar, em aparente bom estado de conservação. A grama é aparada e há rosas plantadas no jardim situado na parte da frente. Uma escadinha em curva leva à porta de entrada, que fica sempre fechada.

A Unicor só instalou uma placa com a logo da instituição no dia 17 de abril, segundo os vizinhos, cinco dias após a reportagem ir ao local. Fica na área interna, do lado da porta de madeira.

Fotos postadas pela Unicor no Google há dois meses mostram que o local tem: dormitório com beliches e varal de chão; área coletiva de refeição; sala de estudo com mais de 10 cadeiras e lavanderia.

A Unicor tem 41 avaliações no Google, todas feitas nos últimos dois meses e com 5 estrelas. Uma das avaliações inclusive é feita pelo turco Fatih Hakan, que vivia com os adolescentes indígenas na sede da Asham, em Manaus.

“Se eu tiver uns filhos, eu vou dar lá, muito bom para o desenvolvimento da criança”, escreveu Hakan. Ele tem apenas dois comentários no Google, um na página da Unicor e outro na página da Asham.

A Unicor é incrivelmente silenciosa. Os vizinhos relataram que não sabem o que funciona dentro da instituição, mas dizem ter visto “crianças entrando e saindo” poucas vezes. Os atuais moradores teriam se mudado para o imóvel há menos de dois anos.

Um jovem do povo Baniwa que está morando na Unicor, aguardando o momento para seguir até a Turquia, disse por ligação que jovens de outros países também seguem para o território turco, mas sem passar por São Paulo, saindo diretamente de suas respectivas nações. Ele citou Venezuela, Argentina e Chile como exemplos.

Sete adolescentes indígenas foram transferidos da Asham, em Manaus, para a Unicor, em São Paulo, no ano passado. Desses, quatro seguiram para a região de Adana na Turquia e outros três continuam na capital paulista, com expectativa de irem ainda este ano para fora do país.

O dono da Unicor é o turco Yener Cubucku, de 39 anos, que está em São Paulo pelo menos desde 2013. Abdulhakim Tokdemer disse que conheceu Yener em São Paulo e contou para ele sobre o trabalho que estava realizando em Manaus. Os jovens seriam enviados para a Unicor após a maioridade por causa das melhores condições da estrutura do local.

Em 2014, Yener criou a Associação Educacional, Cultural e Solidária Turquia-Brasil (Aturbra), que tinha sede em São Bernardo do Campo (SP). Mais tarde, o mesmo CNPJ da Artubra se tornou a Unicor.

Já em 2020, o dono da Unicor abriu outro CNPJ como sócio-administrador de uma agência de viagens, a Hakko.

O Metrópoles tentou contato com Yener pessoalmente e por ligação. Ele disse que não tem interesse na reportagem e que confirma o que Abdulhakim falar. “O que ele falou é falado, não tenho nada para falar.”

A associação

A Associação Solidária Humanitária do Amazonas, a Asham, funciona em um discreto sobrado no bairro militar de São Jorge, em Manaus, pintado de azul e com blindex na parte superior. Quem passa pela porta não imagina que dentro do imóvel o ambiente é bem diferente das casas tradicionais brasileiras.

Seguindo a cultura turca, ao entrar na Asham, é preciso tirar os sapatos. O piso de quase todos os cômodos é coberto por carpetes. Ao receber visitas, os três turcos que moram na instituição oferecem chá e doces turcos de pistache e nozes.

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O diretor da associação, Abdulhakim Tokdemir (a pronúncia é Ab’durrakím Tok’démir), recebeu a reportagem em seu escritório de paredes azuis, 10 dias depois de todos os adolescentes e as crianças da instituição terem sido retirados em uma operação envolvendo a PF, o conselho tutelar e a Funai.

Não havia documentação legal que permitisse a permanência dos alunos na instituição, e eles estavam consumindo carne vencida. Tokdemir diz que vai providenciar a documentação e alega que a carne era doação, que ainda não havia sido consumida, embora os adolescentes tenham falado para a reportagem que comeram.

Turcos assustados

Quando a operação de retirada das crianças aconteceu, Abdulhakim Tokdemir estava há cerca de seis meses em sua terra natal, a cidade turca de Malatya, onde chegou a presenciar o terremoto na madrugada de 6 de fevereiro, que destruiu a casa de seus familiares.

Ele veio às pressas para o Brasil quando ficou sabendo que os alunos foram retirados do seu projeto de internato.

Para o líder da associação, tudo não passou de uma grande confusão, porque os três assistentes que cuidavam da Asham em sua ausência não sabem falar bem português.

“Eles ficaram assustados. Quando os policiais perguntaram, eles (turcos) não conseguiram responder. Aí já cria dúvida”, defende Tokdemir, com um forte sotaque turco. Ele tem um pequeno bigode que cobre apenas o espaço sobre a boca e um jeito muito manso e educado de conversar, sempre chamando o interlocutor de “senhor”.

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De fato, equipes do conselho tutelar e da Prefeitura de Manaus fizeram visitas na instituição desde outubro de 2022 e relataram dificuldade em se comunicar com os homens que se apresentaram como responsáveis pelos indígenas de São Gabriel da Cachoeira.

O líder da Asham também avalia que existe preconceito de pessoas que denunciam a instituição sem conhecê-la direito.

“Como somos turcos, tem muito preconceito. E como somos muçulmanos, tem preconceito também com a religião. Somos sunitas, não temos radicalismo, não temos terrorismo.”

Abdulhakim Tokdemir também diz que o preconceito com estrangeiros seria o motivo para ele nunca ter falado publicamente sobre as ações da Asham até a veiculação desta reportagem. A instituição não tem páginas na internet e nunca havia divulgado informações na imprensa.

No próprio sobrado onde funciona, não há letreiro ou placa indicando que o local é um abrigo de crianças e adolescentes.

Religião omitida

Entre uma ligação e outra, quando precisava interromper a entrevista para falar ao telefone em turco, Abdulhakim Tokdemir defendeu sua ideia de criar um internato para rapazes e, no futuro, um outro internato para moças, com professoras mulheres. O objetivo seria repetir um modelo de dormitório estudantil comum nas escolas da Turquia.

Segundo o diretor da Asham, o motivo para atualmente só aceitar garotos na instituição é porque os professores são do sexo masculino. “Nossa cultura é diferente: mulheres ensinam meninas e meninos são cuidados por professores”, salienta.

Durante mais de 30 minutos, Abdulhakim falou do seu projeto sem citar o fator religioso. Segundo ele, a questão da religião só tinha relação com o princípio humanitário e solidário, de que é preciso ajudar os mais necessitados.

Ao ser questionado sobre o objetivo de doutrinar os adolescentes indígenas, o diretor da Asham disse que as rezas e leituras do Alcorão eram apenas por parte dos assistentes da instituição, não sendo obrigatório aos adolescentes e crianças.

“Não temos nenhum pedido de religião. Os alunos participam, mas voluntariamente, e às vezes por curiosidade, porque querem ver o que o abi está fazendo. Já conhecemos essa linha vermelha que todo mundo tem direito à sua fé”, afirma.

Os relatos dos estudantes indígenas, no entanto, são de que as aulas de árabe eram também leituras do Alcorão, que eles precisavam repetir em detalhes. Depois que Abdulhakim Tokdemir foi para a Turquia, as cinco orações diárias passaram a ser obrigatórias. Às sextas-feiras iam até a mesquita.

Além disso, havia aulas em que eram ensinadas a doutrina islâmica e histórias sobre o profeta Muhammad, o último profeta, segundo a religião muçulmana. O próprio Conselho Municipal da Criança de Manaus descreveu em relatório de outubro de 2022 que havia aulas sobre princípio e leitura do Alcorão.

Abdulhakim disse que apenas ajuda a conseguir bolsas de estudos na Turquia para os estudantes que completam a maioridade, mas que são as próprias famílias que pedem para ir ao país. Da mesma maneira, ele pontuou que são os pais que o procuram a fim de levar os filhos para a instituição.

“Eles estão vendo que esse tipo de criança [antes problemática] está respeitando, melhorando, não fuma, não toma droga. Então, todo mundo quer dar seu filho para receber essa ajuda. Quase 60 famílias pediram para entregar o filho para a instituição.”

Abdulhakim Tokdemir foi pessoalmente até São Gabriel da Cachoeira na primeira semana de abril. Ele se reuniu com familiares das crianças levadas pela instituição, entregou cestas básicas e prometeu que a associação seria legalizada e voltaria a receber os alunos.

Antes, dois assistentes turcos de Abdulhakim desembarcaram em Cabeça do Cachorro, mas um deles teve uma crise de apendicite e precisou ser internado e operado às pressas, o que acabou impedindo que eles visitassem as comunidades mais afastadas do território indígena.

Abdulhakim Tokdemir se comunica com os familiares das crianças e dos adolescentes por um grupo de WhatsApp.

Apesar de a maior parte dos alunos ser indígena, Tokdemir nega que procure especificamente por esse público, e sim por famílias com vulnerabilidade social, independentemente da etnia.

No entanto, fato é que todos os alunos encontrados na instituição em visitas de conselheiros e da Funai eram indígenas de São Gabriel da Cachoeira.

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Um turco na Amazônia

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Filho de uma juíza e de um funcionário da Prefeitura de Istambul, Abdulhakim Tokdemir chegou ao Brasil pela primeira vez em 2012, depois de passar seis meses em Ruanda, na África. Ele tinha acabado de terminar o curso de relações internacionais na Universidade de Eskisehir, na Turquia, e tinha o objetivo de começar um negócio em outra nação.

Sem se adaptar ao país africano, acabou vindo parar no Brasil por indicação de amigos, segundo ele. Em São Paulo, Tokdemir dava aulas de turco para filhos de imigrantes e se aproximou da comunidade muçulmana brasileira, conhecendo pessoas que realizavam atividades de caridade baseadas na religião.

Uma dessas pessoas que ele conheceu foi o libanês Hajj Ahmad Ali Saifi, do Centro de Divulgação do Islam para a América Latina (CDIAL). Abdulhakim Tokdemir disse que eles não são próximos, mas que chegou a participar de dois jantares oferecidos pelo CDIAL no Hilton Hotel, em São Paulo (SP).

O CDIAL surgiu em 1987 e atua com ações educacionais e assistenciais para a comunidade muçulmana e de pessoas em situação de vulnerabilidade social. A organização foi responsável por fazer uma das primeiras traduções do Alcorão para o português.

Em um artigo para o Türkiye Gazetesi, intitulado “Muçulmanos no Brasil”, Ali Saifi começa o texto da seguinte maneira: “O Brasil é uma terra de imigrantes. Os indígenas, índios, continuam sua vida tradicional em áreas de mata. O outro elemento indígena são os descendentes de pessoas que já foram trazidas como escravas da África. Muitos deles eram muçulmanos quando chegaram” (tradução livre).

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Missão global

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Dois alunos levados da Amazônia para a Turquia ouvidos pela reportagem relataram sobre a presença de jovens de outros países nos internatos na Turquia, como da Venezuela, República Dominicana, Colômbia, Indonésia, Malásia, do México, de Djibuti e outros países da África.

Por volta de 2019, logo em seu início, a Asham recebeu a visita de integrantes da ONG turca Diversity-Farklılık Derneğ (Associação da diversidade). Membros desse grupo entregaram cestas básicas em comunidades ribeirinhas de Manaus, na companhia dos assistentes de Tokdemir.

A Diversity-Farklılık é conhecida por atuar em países do continente africano, como Somália, Senegal, Etiópia, Gana, Quênia, Mauritânia, Moçambique, Tanzânia e Uganda. Eles distribuem alimentos e constroem poços artesianos em comunidades vulneráveis.

Em seu site oficial, a Diversity-Farklılık também deixa bem claro seu viés religioso e de doutrinação do islamismo, assim como instituições cristãs que atuam em missões.

Em uma de suas propagandas, por exemplo, há crianças sorridentes segurando exemplares do Alcorão. “Apresentamos o Alcorão a estudantes de Madrasah no Mali”, diz o título de uma das publicações.

Também há propagandas sobre a doação de animais – ovelhas e cabras – para serem sacrificados seguindo ritos específicos do islamismo e sobre espécies de mutirões para a circuncisão de garotos, também seguindo a tradição da religião.

Em uma tese de mestrado da Universidade de Bursa, na Turquia, sobre técnicas de propaganda de grupos religiosos, a acadêmica Gizem Yakisir diz que a Diversity-Farklılık já chegou a 112 países e a três continentes.

“Em suas atividades educacionais, eles basicamente visam criar uma ‘geração de boa moral’ atendendo às necessidades de alimentação e moradia dos alunos”, escreveu a pesquisadora em um trecho da obra.

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Uma foto de um jantar da Asham em 2019 revela um banner pendurado na parede com a frase “Brezilya Amazonlar” (Brasil Amazonas, em turco). O banner tem várias fotos pequenas, entre elas uma da fachada da Asham em Manaus. A maior foto em destaque é de uma onça-pintada. No canto superior do banner, há uma logomarca da Diversity Association.

Em um release de 2017, a Diversity-Farklılık afirma que, além da África, atua na América do Sul. A Diversity-Farklılık confirmou para a reportagem que voluntários da organização turca fizeram uma atividade de entrega de cestas básicas para necessitados na Amazônia, mas pontuou que, atualmente, os trabalhos da organização estão voltados apenas para países africanos.

Relação com o Kwait

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Quando foi a São Gabriel da Cachoeira, no começo de abril de 2023, Abdulhakim estava acompanhado de Yasser Mohamed, um empresário do Paraná que faz parte de um Centro Islâmico Beneficente no estado sulista.

Esse centro islâmico é patrocinado por uma organização do Kwait, país árabe no Golfo Pérsico, chamada Namaa Charity. A entidade diz em seu site oficial que realiza ajuda humanitária em países da África e da Ásia, além de ações religiosas, como a distribuição de exemplares do Alcorão.

Durante a visita a São Gabriel, os integrantes da Asham, Yasser, adolescentes e crianças indígenas posaram para uma foto segurando bandeiras do Kwait e um cartaz com as seguintes escritas em árabe: “Projeto Latin Light (Luz Latina) patrocinado pela Namaa Charity, estado do Kwait, Amazônia – Brasil, implantação do Centro de Caridade Islâmica no Paraná”.

Segundo Abdulhakim Tokdemir, a Diversity-Farklılık e a Namaa Charity ajudaram a Asham de forma pontual. A associação de Manaus não é integrada a elas, de acordo com o líder da Asham.

Dinheiro da família

Abdulhakim Tokdemir, que hoje tem 32 anos, decidiu entrar de cabeça no projeto voltado para crianças e adolescentes em meados de 2017, quando se mudou para a capital do Amazonas.

O principal patrocinador da ida de Abdulhakim para terras brasileiras foi seu tio, Cemali Tokdemir, empresário rico da Turquia, dono da rede de postos de combustível Firat e da construtora TOKD.

Originalmente, o sonho do tio Tokdemir era que o sobrinho fizesse uma nova faculdade e aprendesse outras línguas. A família teria ficado encantada quando Abdulhakim os visitou na Turquia e arranhou a língua portuguesa.

“Meu tio sempre me fala: ‘Mais um idioma é mais um homem. Se você fala três idiomas, você é três diferentes homens”, conta Abdulhakim Tokdemir.

No entanto, o sobrinho começou a realizar ações beneficentes. Ele mandava fotos desse trabalho para seus familiares na Turquia, incluindo o tio patrocinador.

“Acho que meu tio sempre acredita que vou começar estudar curso aqui, por isso ele sempre ajudava, mas no final eu só escolhi a parte de ajudar as pessoas e não terminei curso aqui no Brasil.”

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Hoje em dia, segundo Abdulhakim, o tio não patrocina mais sua vida no Brasil. O dinheiro da Asham viria da ajuda de empresários islâmicos brasileiros e de outros países.

Toda sexta-feira, após a reza especial na mesquita de Manaus, por exemplo, Abdulhakim pede ajuda para os irmãos do islã. Um dos empresários apontado como doador é um imigrante palestino proprietário de uma rede de lojas de roupa e utilidades do Amazonas.

Inicialmente, a Asham, que só foi ter um CNPJ em 2021, ajudava com cestas básicas. Algumas crianças de comunidades pobres mais próximas de Manaus chegaram a ir morar na instituição nos dias de semana, mas saíam nos fins de semana e acabavam não voltando mais.

Foi em São Gabriel da Cachoeira que Abdulhakim encontrou crianças e adolescentes que ficavam permanentemente na instituição.

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Propagadores do islã

Assim como na maior parte das vertentes cristãs, o islamismo tem a ideia de que é necessário pregar a palavra do Alcorão para outras pessoas, segundo o presidente do Instituto pelo Diálogo Intercultural, antigo Centro Cultural Brasil-Turquia, Mustafa Goktepe.

“Tanto o cristianismo, quanto os muçulmanos têm isso. No caso dos muçulmanos, pode ensinar a quem interessar, mas jamais pode impor”, pontua Goktepe. Ele lembrou que existem grupos radicais que defendem uma guerra para converter infiéis, mas que isso é uma minoria.

Goktepe não conhece a Asham nem a instituição que recebe os adolescentes em São Paulo, mas disse que há vários grupos conhecidos que difundem a palavra do islã. Um dos mais conhecidos é o Tablighi Jamaat (sociedade de pregadores), que atua em vários países e começou na Índia, na parte que hoje é o Paquistão, por volta de 1926.

O islamismo é a segunda maior religião do mundo, com aproximadamente 1,6 bilhão de praticantes. O Centro de Pesquisas Pew, dos Estados Unidos, fez uma estimativa de qual será o total de muçulmanos no planeta em 2050, e a América Latina é a única região em que o islã não deve crescer.

Há registros da presença de praticantes da religião muçulmana na Amazônia há mais de 100 anos, trazida por turcos, árabes, persas e outras etnias do Oriente Médio. O prestigiado escritor Milton Hatoum, por exemplo, nasceu em Manaus e é filho de um árabe libanês.

Apesar desse passado, a primeira mesquita na Amazônia só foi inaugurada em 2012, que é o Centro Islâmico do Amazonas, frequentado pelos integrantes da Asham aos sábados. A diferença e a novidade agora é a propagação dessa religião entre os indígenas.

Filho sem pensão

Abdulhakim Tokdemir é casado com uma turca, com quem tem uma filha. A mulher não fala português e morou com ele no Brasil, mas atualmente está na Turquia.

Quando recebeu a reportagem do Metrópoles no sobrado da Asham, em Manaus, ele sempre citava a filha. No entanto, deixou de contar um detalhe sobre sua vida no Brasil.

Durante mais de um ano, Abdulhakim Tokdemir empregou uma jovem diarista, com quem teve um relacionamento extraconjugal. A funcionária trabalhava em sua residência e na Asham.

O visto de Abdulhakim no Brasil é por conta do filho que teve com essa diarista. O menino de 4 anos de idade foi reconhecido pelo pai em cartório apenas quando completou 2 anos. Ele vive em uma modesta quitinete com a mãe e uma meia-irmã.

Apesar de Abdulhakim Tokdemir se oferecer para cuidar de crianças e adolescentes indígenas, ele não paga pensão do filho que teve fora do casamento, apenas ajuda a ex-diarista de forma esporádica, enviando dinheiro quando solicitado. Da última vez, transferiu R$ 80.

Sobre o filho fora do casamento, Abdulhakim disse que começou a se relacionar com a diarista antes de ela trabalhar para a família, por volta de 2017.

“Ela era minha amiga. Estava separado da minha mulher, eu estava sozinho e queria casar no Brasil”, afirma.

No entanto, o relacionamento não teria dado certo. Abulhakim disse que, depois disso, voltou à Turquia e trouxe a esposa para o Brasil.

O líder da Asham diz que conseguiu visto como refugiado, e não por causa do filho que nasceu no Brasil. Entretanto, documentos da Polícia Federal mostram que ele tentou obter refúgio no Brasil entre 2015 e 2019, mas só adquiriu “autorização de residência permanente” em 2021 pelo motivo de “convivência familiar”, porque tem esse filho com a diarista.

Ao ser questionado se levaria o filho para a Asham em Manaus ou para a Turquia, ele disse que ainda não é possível, porque a criança é muito pequena, mas que seria possível se a mãe autorizasse.

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Polícia entra na história

A Associação Solidária Humanitária do Amazonas apareceu no radar das autoridades ainda em 2019. Um adolescente indígena deu entrada em um hospital de Manaus com um machucado no rosto, alegando que sofreu uma queda jogando futebol.

Os funcionários da unidade de saúde acharam estranho que o jovem estivesse acompanhado de homens turcos e acionaram a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).

Titular da DPCA, a delegada Joyce Coelho ficou intrigada com a situação e chamou o adolescente ferido e os turcos para prestarem depoimentos.

Em relação ao garoto machucado, ela não encontrou crime, mas enviou o caso para a Polícia Federal, por suspeitar que aquilo poderia ser uma situação de tráfico internacional de pessoas.

A Polícia Federal chegou a ficar de campana por algumas horas na porta da Asham em Manaus e a fazer questionamentos para uma criança, no momento em que ela saía do local. A PF também verificou que nenhum tinha passaporte ou bilhete aéreo para o próximo dia.

Em um relatório de março de 2022, a Polícia Federal escreveu que, “apesar da denúncia, não ficou superficialmente demonstrado no local possível tráfico internacional de crianças e adolescentes para a Turquia”.

O relatório, no entanto, informou sobre insuficiência documental e “cruciais divergências” no depoimento de Abdulhakim Tokdemir com as narrativas de outras pessoas envolvidas.

Como a PF não encontrou transnacionalidade da suposta conduta delitiva, o caso acabou voltando para a mesa da titular da DPCA.

“A gente reiniciou essa investigação, ouvindo pessoas, acrescentando informações, para que, assim que tiver o mínimo de indício de que há uma conduta criminosa por trás, a gente tome as providências judiciais cabíveis. Isso tudo nos intriga bastante, mas ainda falta conseguir puxar um fio para identificar qual a finalidade dessa doutrinação”, pontua a delegada Joyce Coelho.

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Uma nova perspectiva

No início de 2023, em paralelo à investigação da Polícia Civil, outros integrantes da Polícia Federal do Amazonas começaram a se debruçar novamente sobre o caso da Asham.

Membros recém-empossados do governo federal, mais especificamente da Funai e do Ministério de Direitos Humanos, em Brasília, começaram a articular uma solução junto à PF, ao conselho tutelar de Manaus e a assistentes sociais de São Gabriel da Cachoeira.

Conselheiros tutelares das duas cidades realizaram pelo menos quatro visitas na instituição durante o mês de fevereiro, quando constataram que a associação não teria nenhum respaldo judicial para funcionar, além de questões sanitárias envolvendo alimentação e limpeza.

Todas as informações que os conselheiros colheram foram repassadas à PF. Em uma operação conjunta, as crianças acabaram retiradas do local e levadas de volta para São Gabriel da Cachoeira.

Procurada pela reportagem, a corporação disse que não passa informações sobre investigações em andamento.

Bastidores

O novo desdobramento sobre o caso dos indígenas levados pelo grupo islâmico começou no alto de um prédio de Brasília, com vista para o Parque da Cidade, na sede da Fundação Nacional do Indígena (Funai).

A atual coordenadora de Gênero, Assuntos Geracionais e Participação Social da Funai, Lídia Lacerda, voltou cismada de uma viagem de rotina que fez a São Gabriel da Cachoeira em outubro de 2022. Aos prantos, uma conselheira tutelar do Alto do Rio Negro contou sobre a situação dos turcos que levavam crianças e adolescentes.

Lídia então ajudou a articular a retirada das crianças junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), do novo Ministério dos Direitos Humanos.

“Por mais que a instituição [Asham] pense em apresentar documentação e regularizar a sua atuação, antes desse processo, as crianças devem ser retiradas. O modo como elas estavam lá é totalmente ilegal. É ilegal do ponto de vista não só da criança indígena, mas é ilegal para qualquer criança e adolescente”, frisa a servidora.

Negação da cultura

Acima de Lídia, a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lúcia Alberta, acompanhou a situação, que a fez relembrar sua infância difícil. Lúcia é do povo Baré e nasceu na região da Cabeça do Cachorro, em uma comunidade na divisa com a Venezuela.

A gestora Baré recebeu a reportagem na sede da Funai usando brincos com desenhos indígenas que contam a história da região de onde ela veio. Um dos brincos tem o desenho da “cobra-canoa”, que, segundo a cosmologia do Alto do Rio Negro, serviu de transporte para os primeiros seres humanos e saiu espalhando as comunidades nas margens do rio.

Lúcia ficou espantada ao saber que adolescentes indígenas estavam sendo proibidos de mergulhar no rio, tendo permissão apenas para molhar as mãos e os pés. Segundo ela, isso é a negação da própria cultura.

“Somos povos ribeirinhos, o Rio Negro e os seus afluentes são nossa vida. Consegue imaginar um indígena da região do Rio Tiquié proibido de tomar banho no rio? Essa é uma das maiores afrontas, porque, para nós, o mergulho na água, além da limpeza do corpo, é limpeza da nossa alma”, pondera.

Vinícius Schmidt/Metrópoles

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Assim como as crianças e os adolescentes levados pela Asham, Lúcia deixou sua comunidade quando tinha apenas 9 anos de idade para poder estudar na cidade.

“Quando não tem escolas na comunidade, as pessoas procuram escolas na cidade. E lá na cidade não tem escolas indígenas específicas e diferenciadas. Se as escolas não dão resposta para os projetos de vida dos povos indígenas, eles vão procurar outras alternativas”, analisa Lúcia Alberta.

Em entrevista ao pesquisador Gersem Baniwa, em 2011, Lúcia Alberta Baré definiu a escola indígena “como espaço de diálogo possível entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos da sociedade moderna”.

A diretora da Funai defende que as escolas indígenas devem ter uma pedagogia própria, com professores que falam as línguas dos povos dos alunos, para ter uma comunicação melhor com eles, mas também deve ter um bom ensino formal.

“A estratégia deve ser de levar conhecimentos não indígenas – ou mesmo de outros povos indígenas –, mas de forma harmônica e respeitosa, sem colocar aquele conhecimento como melhor ou superior.”

No entanto, além de não ter escolas indígenas com esse diferencial, as instituições de ensino de São Gabriel da Cachoeira passam por outros tipos de precariedade, como professores com salários baixos e contratos temporários que chegam a ser interrompidos antes do fim do ano letivo. A falta de atividades esportivas e culturais para os jovens também é uma questão.

“A vulnerabilidade desses povos, tanto social como educacional, os levou a serem cooptados por esses turcos, que ofereceram educação melhor para os filhos, mas por trás tinha outra coisa, que nós estamos acompanhando, mais ligado ao proselitismo religioso.”

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