Foi um choque. Samuel, irmão mais velho da vítima e grande parceiro das brincadeiras e piadas nos encontros de família, não fazia ideia dessa relação. Ele tinha visto Debora acompanhada de Sérgio apenas duas vezes, na igreja. Inclusive perguntou quem era. A caçula desconversou, disse que era apenas um amigo.
“Talvez fosse um rolo, algo que estava começando. Minha irmã era muito reservada, não apresentaria se não fosse importante”, diz Samuel, acostumado com o jeito discreto de Debora, principalmente quando o assunto era a própria intimidade. O primogênito, aliás, nunca soube o nome do homem até 20 de maio deste ano.
Naquela tarde de outono, aos 43 anos, Debora Tereza Corrêa foi assassinada por Sérgio Murilo dos Santos, policial civil de 47 anos. Ela estava no trabalho. O feminicida entrou no prédio da Secretaria de Educação, na 511 Norte, identificou-se na portaria e caminhou até a sala onde ela trabalhava. Pouco depois, após discutirem no corredor, sacou a arma, matou a professora e, em seguida, suicidou-se.
Xará e amiga de infância, Débora Mazzei também não sabia desse envolvimento. Estudaram na mesma escola, foram vizinhas na 307 Norte, viraram companheiras de viagens, eram rivais no jogo War e se tornaram parceiras na preparação das mousses de maracujá. Ela nunca viu Sérgio, tampouco ouviu falar dele. Sequer tinha conhecimento de que a colega sentia medo e estava sendo perseguida.
Conhecia alguns relacionamentos antigos e mais sólidos da amiga. “Éramos próximas havia bastante tempo. Apesar dos nomes iguais, tínhamos naturezas diferentes. Ela era tranquila, reservada, calma, meiga e mansa. Não era de balada. Saía mais para comer do que para beber. O contrário de mim”, confidencia Débora. As duas conviveram por 35 anos. Mas sobre Sérgio, nada sabia. Foi um choque.
A maior paixão de Debora era bem conhecida do irmão e dos amigos mais próximos: os gatos de rua. A professora andava com ração no carro caso encontrasse algum animal abandonado. Chegou a ter seis de uma vez. Abrigava os felinos e cuidava deles até encontrar uma família que julgasse acolhedora. Amava também cachoeira e mato. Pirenópolis estava entre seus passeios favoritos. Era louca por crianças, mesmo não sendo mãe.
Ana Cláudia, companheira de viagens, grande amiga e colega de trabalho, foi a primeira chefe de Debora na Secretaria de Educação do Distrito Federal – quando esta passou no concurso da pasta em 2007. Era uma das poucas pessoas que sabiam da existência de Sérgio. Tinha, porém, conhecimento só de uma parte. Acompanhou a perseguição do policial, especialmente quando o assédio à docente se intensificou, no final de 2018. Mas, segundo relatos de Debora, nos últimos meses, as brigas haviam diminuído e tudo estava sob controle. Ana Cláudia entendia o motivo pelo qual a colega trocava frequentemente o número do celular.
Debora dava aulas em uma escola para crianças especiais em Sobradinho, região administrativa onde morava. Tinha achado seu cantinho no DF – uma cidade calma, quase interiorana, na qual fez muitos amigos, pessoas de vida simples, afáveis, como ela própria. Sérgio chegou a ir à instituição onde a ex-namorada trabalhava fazer ameaças. Por isso, a professora deixou a unidade de ensino: foi transferida para o núcleo de cadastro, na Asa Norte.
Sérgio era policial civil e não a deixava em paz. Além do novo cargo, Debora precisou procurar outro lugar para residir. Alugou um apartamento no CA do Lago Norte. “Não fez nenhuma conta no nome dela: nem luz, nem celular e nem internet. Ela falou que estava com muito medo naquela época”, relata Ana Cláudia.
A amiga também se lembra de quando Sérgio precisou responder perante a Justiça sobre as ameaças e perseguições feitas à professora. Debora tinha ido à delegacia, acionado a Lei Maria da Penha e conseguido uma medida protetiva. Ana Cláudia sabia. Respirou aliviada.
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Depois de mudar de trabalho e de casa, a docente tocou menos no assunto. “Tudo parecia ter se acalmado. Nos encontramos cerca de 20 dias antes do crime, a Debora disse que estava tudo bem, não contou mais nada”, relata Ana Cláudia. Apesar de saber das histórias, ela também não conheceu e nem conviveu com o assassino da amiga.
Ana Cláudia não imaginava que Sérgio tinha revertido a medida protetiva após apresentar recurso em segunda instância. O policial civil havia recuperado o direito de andar armado. Mesmo conhecendo parte da história, sim, foi um choque.
Júnio sabia. Mas, de novo, só de alguns trechos. O pedagogo era colega de sala, grande amigo e parceiro de Debora. Gostavam de passar o tempo juntos, mesmo quando não falavam ou faziam nada. Para ele, a professora confidenciou viver um relacionamento esgotado e estar incomodada. “Na verdade, ela não aguentava mais aquela situação”, diz o servidor público. Ele não conheceu Sérgio, apenas o viu de longe em duas oportunidades, em janeiro deste ano.
Ao se lembrar das conversas com Debora, Júnio acredita que a relação era recente, no máximo dois meses, e estava prestes a terminar. O pedagogo não sabia das ameaças à vida dela. Não imaginava que as mudanças de trabalho e de moradia estavam relacionadas à tentativa de escapar de Sérgio.
Júnio já viu de perto um caso de violência doméstica. Precisou tirar a mãe e a irmã de casa após o padrasto ameaçá-las de morte. Por isso, desconfiava das ligações insistentes do policial para Debora, principalmente a partir de fevereiro deste ano. Percebia que, constrangida, a docente se dirigia ao corredor para falar ao telefone com Sérgio.
Cerca de um mês antes da morte de Debora, Júnio mandou uma mensagem via WhatsApp para a amiga. Ele não se esquece daquele 21 de abril. Eram exatamente 21h25 e o pedagogo queria checar se estava tudo tranquilo. A professora nem chegou a ler a mensagem. “Eu olhava o tempo todo para saber se ela ia me responder, mas ficava aquele único tracinho.”
Debora sumiu o fim de semana inteiro. Quando chegou ao trabalho, na segunda-feira à tarde, explicou. Não, o celular não quebrou. Ela destruiu o aparelho, de raiva. Passou o sábado e domingo se desfazendo de tudo que pudesse lembrar Sérgio. Levou móveis e objetos de casa para um brechó.
Naquela semana, Júnio passou no apartamento de Debora para usar a internet e transmitir a declaração de imposto de renda. Notou uma casa cheia de espaços vazios. “Apesar de muito reservada, de contar as histórias de forma fragmentada, ela estava claramente em um processo de limpeza. Estava se desfazendo de tudo: móveis, celular, dele”, conta o amigo. Desconfiado, Júnio passou a acompanhá-la até o estacionamento. Ligava para ela com frequência. No entanto, não imaginava que as ameaças eram tão graves. Sim, foi um baita choque.
A amiga de infância Débora acredita que a professora não compartilhou a situação por vergonha de se envolver com alguém tão perigoso. Samuel crê que o medo tenha reforçado o jeito calado da irmã. A parceira de viagens Ana Cláudia acha que a docente parou de relatar os problemas porque tudo havia se acalmado. O amigo Júnio imagina que a colega de sala revelou poucos detalhes porque o policial também ameaçava a família dela. A educadora teria ficado quieta para proteger os seus. Todos só puderam supor. Debora, reservada como era, não confidenciou muito. Eles não tinham como saber.
PS.: os nomes completos dos entrevistados citados nesta reportagem são: Samuel Corrêa, 53 anos, militar da reserva; Ana Cláudia Dias, 40, professora; Débora Mavvei, 44, secretária-executiva; Júnio César Ferro, 47, servidor e pedagogo.
Maria Clarice Dias
Formada em jornalismo pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduada em Parlamento e Direito pelo Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor) da Câmara dos Deputados. Foi repórter e editora do jornal Correio Braziliense e repórter na revista Época. Vencedora da primeira edição do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo e finalista do Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, com reportagem especial sobre abuso sexual. É jornalista da Câmara dos Deputados há 14 anos e há 4 anos é editora-chefe do Programa A Voz do Brasil, da Câmara Federal.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (06/09/2019), 10.906 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 20 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.