Há 50 anos, em 20 de julho de 1969, o homem pisou na Lua pela primeira vez, após uma das missões mais planejadas e calculadas da história da humanidade. Pouco mais de dois meses depois, um imprevisto fez os astronautas Neil Armstrong e Michael Collins pousarem em Brasília. Em contraste à imperturbada viagem pelo espaço sideral, longe de interferências geopolíticas, uma turnê terrestre protagonizada pelos tripulantes da Apollo 11 sofreu um desvio de rota, resultado de uma briga entre Estados Unidos e Bolívia, que ocasionou em uma visita rápida e improvisada à jovem cidade brasileira.
O projeto espacial precisou de todo o conhecimento de física, química e biologia disponível, 18 viagens tripuladas e oito anos de desenvolvimento para ser cumprido. A NASA estima que 400 mil engenheiros, cientistas e técnicos trabalharam nas variadas fases e subfases do programa norte-americano. Tudo isso possibilitou os passos de Armstrong e Edwin “Buzz” Aldrin na superfície cinzenta e empoeirada de nosso único satélite natural, enquanto Collins pilotava sozinho o módulo de comando Columbia, em órbita.
Logo após retornarem da Lua e passarem por uma quarentena – um resguardo contra a transmissão de doenças, caso a humanidade tivesse feito também o seu primeiro contato extraterrestre, sem se dar conta –, os três astronautas embarcaram, em 29 de setembro, no Giant Step Apollo 11 World Tour e percorreram 24 países, pelos seis continentes.
Também fruto de um plano ousado, Brasília contava com cerca de 500 mil habitantes naquele ano – segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) – e se apresentava como uma cidade moderna e estruturada. No entanto, a capital do Brasil não estava na rota original da comitiva estadunidense. Todos os passos dos três viajantes estavam minuciosamente mapeados, mas nem tudo saiu como o planejado.
E, a partir de um incidente internacional, em 1º de outubro de 1969, Neil Armstrong e Michael Collins passearam pelo centro do Distrito Federal.
SALTO GIGANTESCO
Ao pisar na Lua, Armstrong declarou: “Este é um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”. Foi uma frase generosa, que reconheceu toda a história humana e reforçou um espírito internacional de cooperação, algo que interessava muito ao presidente americano à época, Richard Nixon. Aproveitando o sucesso da missão e a torcida global, em meio à Guerra Fria, a Casa Branca tratou logo de traçar um roteiro de visitas para seus três novos embaixadores culturais.
O arranjo para uma turnê ocorreria naturalmente sob o comando da NASA, mas comunicações entre membros da Casa Branca e o porta-voz da agência espacial, Julian Scheer, revelam que Nixon estava insatisfeito com a programação do tour. A princípio, a equipe indicou um itinerário de 50 dias e 30 cidades. A proposta teria contemplado regiões de menor importância para a diplomacia americana e ignorado outras mais impactantes. Em 15 de agosto, o Departamento de Estado tomou o projeto para si e reformulou o trajeto. Nixon queria algo extremamente político e bem-coreografado, que recompensasse aliados e esnobasse adversários.
O diplomata Henry Kissinger, conselheiro político do presidente, ajudou a mapear quais países teriam o privilégio de receber a turnê. O primeiro destino foi o México, e até a véspera Nixon ensaiou com Neil Armstrong o ponto principal do discurso a ser proferido a partir do dia seguinte: a iniciativa representava “o interesse dos Estados Unidos em manter a exploração espacial como um projeto de benefícios pacíficos para todas as nações do mundo”. Para demonstrar a importância do ato, todos os trechos da viagem foram feitos a bordo do avião Força Aérea Dois, normalmente destinado ao vice-presidente.
O resultado agradou ao líder norte-americano. Em um jantar na Casa Branca, em 5 de novembro, logo após a volta do grupo aos EUA, Nixon teria revelado que tentava há anos uma reunião com o presidente romeno, Nicolae Ceausescu, mas a proposta teria sido aceita apenas depois do sucesso da viagem à Lua. Entusiasmado, o anfitrião exclamou que “só essa reunião já teria pago por tudo que gastamos no programa espacial”, segundo Armstrong.
No entanto, enquanto alguns oponentes diminuíram suas hostilidades contra os EUA, um antigo aliado ergueu um muro invisível no plano de voo dos astronautas.
CRISE DIPLOMÁTICA
Alçado à Presidência da Bolívia após comandar um golpe de Estado, em 1964, o ex-general René Barrientos contava com o apoio de Washington no combate às forças guerrilheiras da América do Sul. Popular no cargo e com a admiração dos aliados, ele chegou a receber do governo norte-americano um pacote de benefícios militares e treinamento para as forças especiais bolivianas. Em 1967, capturou e executou Ernesto “Che” Guevara: famoso por sua atuação na Revolução Cubana, o argentino liderava um grupo, no sul do país, que tinha como missão organizar uma revolução nacional com a ajuda dos mineradores locais.
Apesar do apoio internacional, naquele mesmo ano, o capital político do presidente boliviano começou a desinflar. A opressão exagerada de manifestações (incluindo o massacre de 30 trabalhadores) e um escândalo em seu próprio gabinete ajudaram a diminuir a sua popularidade. Na ocasião, o ministro do Interior, Antonio Arguedas, fugiu clandestinamente do país com o diário secreto de Guevara em mãos. Ele publicou os escritos em Havana, com a afirmação de que Barrientos recebia dinheiro da CIA, órgão americano de espionagem.
No começo de 1969, enquanto a NASA executava os últimos preparativos para a expedição à Lua, o presidente boliviano decidiu viajar pelo país a fim de tentar reconquistar a popularidade. Em 27 de abril, após um pequeno comício na aldeia de Arque, nos Andes, o helicóptero em que ele estava encostou em um cabo de telegrafia local e explodiu, matando-o. O caso foi envolto de suspeitas e chegou a ser tratado como atentado, mas a hipótese nunca foi comprovada.
Nos meses seguintes, um governo fraco, herdado pelo vice-presidente Siles Salinas, conduziu a Bolívia. O verdadeiro poder político no país, no entanto, estava nas mãos do ex-aliado de Barrientos, o general Ovando Candia, que esperou até setembro para efetuar um novo golpe de Estado. Em poucos dias, o militar nacionalizou a empresa americana de petróleo Gulf Oil, impôs restrições no mercado de capitais, hostilizou os Estados Unidos, elogiou Che Guevara e começou a conversar com Cuba, a fim de possibilitar o comércio entre os dois países.
No fim de setembro, os EUA e a Bolívia cortaram relações diplomáticas. Com a medida, aeronaves norte-americanas foram proibidas de trafegar no espaço aéreo do país. A restrição atingiu um certo avião, o Força Aérea Dois, que transportava a comitiva de astronautas da Colômbia à Argentina. Eles haviam sobrevoado a Lua, mas foram proibidos de fazer o mesmo acima do solo boliviano.
Com a rota reformulada, o plano de voo passou a contar com uma nova parada para abastecimento, justamente no coração do Brasil.
A VISTA DA ESPLANADA
Antes mesmo do bloqueio boliviano, Buzz Aldrin já havia se separado do grupo. Ele partiu de Bogotá rumo a Nova York para discursar em uma conferência. A desconfiguração da equipe, no entanto, afetaria apenas Buenos Aires, o destino seguinte, uma vez que o trio se reencontraria no Rio de Janeiro, em 3 de outubro. O compromisso, no entanto, o tirou da visita ao planalto central brasileiro.
O Força Aérea Dois aterrissou no Aeroporto Militar de Brasília, às 15h30 de uma quarta-feira, e encontrou uma cena improvisada. Presentes para a recepção estavam o chefe de gabinete do prefeito do Distrito Federal, Rolf Goeden Pieper, o encarregado da Embaixada Americana em Brasília, Stephen Low, e o comandante da 6ª Zona Aérea, brigadeiro Mário Calmon Eppinghaus. Para quebrar a formalidade, a pequena comitiva carregou ainda alunos da Escola Americana de Brasília, além de funcionários da embaixada dos EUA e da Casa Thomas Jefferson.
Low havia conseguido um ônibus para o grupo e, enquanto o avião era abastecido, Armstrong e Collins, acompanhados das suas mulheres, Janet e Pat, respectivamente, e de alguns membros da equipe de apoio, começaram um pequeno tour pela cidade, saindo do aeroporto rumo à Esplanada dos Ministérios.
Descendo o Eixo Monumental, houve uma nova parada não planejada. Conta-se que alguém dentro do ônibus, provavelmente um dos próprios astronautas, pediu uma pausa em frente à Catedral, cuja obra estava inacabada. Não existem depoimentos ou gravações desse momento, e deve-se apenas supor o que Armstrong e Collins observaram no desenho de Niemeyer. Talvez tenham visto nas colunas parabólicas uma expressão artística do que eles mesmos fizeram, uma união entre a Terra e o céu, o planeta e o cosmo. Talvez imaginaram naqueles traços uma decolagem de foguete, como aquele que os levou à Lua, levantando voo no meio de uma saia de fumaça.
Ninguém desceu naquele ponto, porque o local ainda era um canteiro de obras. Mesmo assim, ao deixar a cidade, Collins expressou que gostaria de voltar a Brasília quando a Catedral estivesse pronta, algo que só aconteceria em maio de 1970.
Em seguida, o ônibus parou em frente ao Palácio do Itamaraty e o protocolo iniciou-se, ou pelo menos o que se pôde improvisar com pouco tempo de preparo. Armstrong e Collins foram recebidos pelo ministro Dário Castro Alves e sua mulher, Dinah Silveira de Queiroz. Juntou-se ao grupo a escultora Mary Vieira. Na visita aos jardins e corredores do prédio, Armstrong esclareceu que ele mesmo propôs o passeio por Brasília, e revelou estar impressionado com o desenvolvimento da cidade. O primeiro homem a pisar na Lua havia conhecido a capital brasileira três anos antes.
ESTOPIM CÁRMICO
A ideia de usar os esforços espaciais para cultivar boas relações durante a Guerra Fria não começou com a missão Apollo 11. O projeto Gemini, lançado em 1961, desenvolveu todo o passo a passo técnico para mandar uma tripulação à Lua e, de quebra, preparou seus principais representantes. Neil Armstrong viajou ao espaço pela primeira vez na Gemini 8; Michael Collins, na Gemini 10; e Edwin “Buzz” Aldrin, na Gemini 12.
Em 17 de outubro de 1966, Armstrong aterrissou pela primeira vez em Brasília, com o colega Richard Gordon – que posteriormente esteve a bordo da missão Apollo 12, em novembro de 1969. O protocolo seria quase que um ensaio para a futura turnê: viagem em avião da força aérea americana, entrevistas coletivas e visitas a estruturas políticas, como o Congresso Nacional, e uma palestra na Universidade de Brasília (UnB).
Sentados em uma bancada do auditório Dois Candangos, Armstrong e Gordon exibiram trajes espaciais, alimentos para consumo em órbita e projetaram filmes sobre suas missões em um telão. Uma pequena nota de jornal registrou o presente dado ao reitor da UnB àquela época, Laerte Ramos de Carvalho: uma miniatura em plástico da cápsula tripulada por eles e uma série de fotos do Brasil tiradas do espaço.
Neil Armstrong ainda não sabia que seria o comandante de uma missão à Lua. Mesmo assim, brincou que, quando retornasse à capital, já teria vivido o feito. Talvez tenha sido esse o estopim cármico que obrigou o pouso improvisado três anos depois. Ele era, afinal, um homem de palavra. Novamente em Brasília, quem teria mudado mais, ele ou a cidade?
BARRADOS POR OUTRA DITADURA
A última parada da visita de 1969 foi o Congresso Nacional. Desde o desembarque, porém, a notícia da presença de Armstrong e Collins na cidade se espalhara, e uma multidão os aguardava. Estavam ali turistas, fãs, funcionários públicos e alguns poucos senadores e deputados. Janet Armstrong e Pat Collins desistiram do desembarque quando avistaram a multidão. Graças a uma equipe de segurança, Neil e Michael conseguiram descer a rampa do Congresso e andar pelo perímetro do edifício.
Não se sabe a explicação dada a eles sobre a razão pela qual não puderam entrar no prédio: o Ato Institucional Número 5 havia literalmente fechado o Congresso e suspendido a Constituição Brasileira. Seu emissor, o presidente da República, general Artur da Costa e Silva, não apareceu durante a visita. Provavelmente se preparava para as festividades do Rio de Janeiro, que receberia os astronautas no dia seguinte.
Pela segunda vez no mesmo dia, a comitiva foi impedida, por ditaduras latino-americanas, de entrar em um espaço que deveria ser público. Do lado de fora, o grupo cumprimentou poucos políticos, como o senador Eurico Resende e o deputado Ary Alcântara, e acenou aos presentes.
Trinta anos depois, em uma entrevista à própria NASA, a secretária Geneva Barnes, que integrou a comitiva da Giant Step Apollo 11 World Tour, ainda se lembrava da curiosa estrutura da sede do Legislativo brasileiro: as duas cúpulas, uma virada para cima e outra para baixo, as quais nunca entendeu. “Será que simbolizam café? O grão de café?”, sugeriu o entrevistador.
Encerrava-se ali a visita à capital. Do Congresso, o ônibus retornou ao aeroporto, e a turnê decolou rumo a Buenos Aires. No dia seguinte, já voltariam ao Brasil, desta vez para o Rio de Janeiro, onde uma programação pomposa os aguardava.
DESTINO INEGÁVEL
Neil Armstrong passou 2 horas e 12 minutos com seus pés no solo lunar, em 20 de julho de 1969. Na capital brasileira, ficou apenas três minutos a mais: 2 horas e 15 minutos. A visita foi tão inesperada que nem o prefeito do Distrito Federal, Wadjô Gomide, estava presente. Em uma ironia do destino, ele havia tentando assegurar uma escala da turnê em Brasília, sem sucesso.
Outras duas cidades que também pleiteavam a visita, São Paulo e Porto Alegre, não foram incluídas pelo Departamento de Estado americano. Caso tudo acontecesse conforme o planejado, somente o Rio de Janeiro receberia os tripulantes da missão Apollo 11.
No município fluminense, a agenda foi extensa, com parada em carro aberto, condecorações do Exército e da Aeronáutica e um almoço no edifício sede da Revista Manchete. Uma cerimônia na Academia Brasileira de Ciências presenteou os visitantes com diplomas pelas contribuições ao avanço tecnológico.
Em 1960, com a inauguração de Brasília, o Rio de Janeiro deixou de ser a capital do país. Nove anos depois, após a viagem do homem à Lua, o impacto cultural da nova cidade, erguida no Planalto Central do Brasil, ainda era eclipsado – como a turnê norte-americana deixaria claro ao preteri-la pela Cidade Maravilhosa.
Mas nem o criterioso planejamento estadunidense pôde evitar que a jovem capital se impusesse. O destino de Brasília era inegável, e a cidade construída como uma utopia futurista chamou para si aquele que primeiro pisou em um astro distante.