Sobre mulheres, comenta-se de tudo: qual a roupa certa para usar, como se comportar, com quem se relacionar e quais ambientes frequentar. A sociedade impõe uma conduta esperada para o sexo feminino nas mais diversas situações. Essa intromissão não acontece exclusivamente quando elas estão vivas. Quando são assassinadas, muitos julgam a vítima e poucos se interessam em falar sobre sua história.
Passava de 23h, do dia 29 de agosto, uma quinta-feira, quando Cristiane Mendes de Sá foi assassinada pelo namorado. Antônio Carlos da Silva, de 45 anos, desferiu golpes, com uma faca de cozinha, no tórax da vítima, de 41. O crime aconteceu em uma rua escura de Samambaia, naquela que seria a última das diversas brigas do casal. A câmera de segurança do vizinho filmou toda a cena.
Nos registros da polícia e do Ministério Público, não há informações sobre os familiares de Cristiane. Os parentes não reclamaram a morte da mulher, nem prestaram declarações à polícia. No processo contra o feminicida, aparece um único parente da vítima listado: o neto de uma vizinha que ela considerava como mãe. Já o agressor tem a ex-mulher e a ex-cunhada como testemunhas de defesa.
O pai da vítima, João Francisco de Sá, mora bem perto de onde a filha foi assassinada, mas não quer conversar sobre ela. Limita-se a dizer “eram dois coitados”, referindo-se tanto à vítima quanto ao assassino. Cristiane era viciada em crack e álcool. Assim como Antônio. Aos olhos do pai, o vício os igualava.
Dinâmica do crime
Quem é essa mulher?
Antes do crime, Cristiane estava desempregada e morava em um cômodo nos fundos da casa do pai. O lote tem cerca de 100 m² e fica a mais ou menos 1 km do local onde o crime aconteceu. Na frente, João Francisco reside com a sua atual esposa. A mãe da vítima morreu há alguns anos de problemas pulmonares causados pelo fumo.
Apesar da proximidade física entre pai e filha, o distanciamento afetivo era enorme. Os dias de Cristiane dividiam-se entre a casa da vizinha dona Enoi, vagar pelas ruas para manter os vícios ou ficar com o namorado.
Dona Enoi Joaquina de Sousa Neta, de 67 anos, viu Cristiane crescer e agora parece ser a única da vizinhança a guardar recordações carinhosas dela. “Era muito boa. Apesar de usar droga, não desviava nada de ninguém. Quando queria algo, me pedia dinheiro e eu dava.” A vítima se referia a senhora como a “mãe que nunca tive”.
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Enoi interveio para Cristiane não ser enterrada como indigente. Os parentes de sangue cogitaram pedir auxílio público para o sepultamento, só recuaram quando a vizinha assumiu os gastos. “Ela merecia ter um enterro digno e ficar em um lugar seguro, pelo menos depois de morta”, relata a vizinha. A vítima foi enterrada na mesma sepultura da mãe, no Cemitério de Taguatinga.
O distanciamento entre Cristiane e a família começou ainda na adolescência, quando ela ficou grávida pela primeira vez. Seus pais a expulsaram de casa e Enoi a acolheu. Durante a temporada na casa da vizinha, Cristiane envolveu-se com o filho dela, Francisco das Chagas Ferreira. O casal teve dois bebês, mas o rapaz morreu aos 21 anos em uma emboscada que os parentes não sabem explicar direito.
Gabriel, o filho mais velho dos dois, hoje tem 15 anos e cumpre medida socioeducativa, na Unidade de Internação de São Sebastião, por crime análogo à tentativa de homicídio. O menino foi esfaqueado em uma festa e revidou com um tiro de arma de fogo.
Perdas e violências
Cristiane teve nove filhos, mas nenhum deles morava com ela. Sete estão vivos e têm idades entre 23 e 6 anos. Ela perdeu Natália e Nataly, gêmeas. Elas morreram, respectivamente, com 6 e 9 dias após o parto prematuro.
Perdas, abandonos, desditas e violências são uma constante na narrativa sobre a vida dessa mulher. Teria a tristeza a empurrado para o vício?
No ano em que Cristiane nasceu, Clarice Lispector lançou um de seus mais aclamados romances: A Hora da Estrela. Uma passagem do livro parece resumir a vida da brasiliense que não era dada a leituras. “Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: Quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar.”
Quem ouviu sobre os últimos passos de Cristiane pode reconhecê-la no trecho acima. Parece que a mulher não mais sentia, não mais pensava, não mais projetava. Há um ano estava dominada pelo uso de drogas e pelo consumo excessivo de álcool.
Ela não sabia o que fazer quando não tinha ao alcance das mãos uma garrafa de pinga forte. Cristiane tentou se livrar das dores do vício, mas não conseguiu. Chegou a ser internada duas vezes em clínicas terapêuticas. Também foi atendida no Centro de Atenção Psicossocial para tratamento de dependentes de álcool e drogas de Samambaia. “Ela tentava, ficava triste, ia para a igreja, sentava aqui na mesa da cozinha e me dizia: ‘Dona Enoi, Deus fala comigo, eu me sinto bem, mas não consigo’.”
O crime de Antônio
Cristiane e Antônio Carlos moraram juntos por dois anos em uma casa alugada, não tiveram filhos. Quando o crime aconteceu, namoravam e viviam em endereços diferentes. Duas ruas separam a casa do pai de Cristiane da casa da mãe de Antônio, para onde ele foi quando decidiram não dividir mais o mesmo teto. Ele trabalhava como pedreiro e continuou sustentando-a.
Durante os quatro anos de relacionamento, não há registro policial e nem relatos de agressões físicas por parte de Antônio. Dona Enoi garante que isso jamais aconteceu: “Ele nunca fez nada. Não seria capaz de triscar a mão nela”. Mas as crises de ciúmes eram conhecidas. “Ele estava sempre desconfiando que era traído.”
No dia do crime, Cristiane passou na casa de dona Enoi no início da noite, disse que iria sair e convidou o sobrinho de consideração, Phellipe Wesley de Sousa Nascimento, 22 anos, para acompanhá-la até uma padaria nas proximidades.
Antônio, ao procurar pela namorada na casa dela, não a encontrou. Se cruzaram por acaso na padaria, onde ele, transtornado, começou a xingá-la.
No depoimento prestado à polícia, o assassino diz que foi agredido por Phellipe e, por isso, teria voltado à casa de Cristiane, pegado uma faca na cozinha e retornado armado ao local onde a briga havia começado.
À polícia, Antônio disse que pegou a faca apenas para se defender e não lembrava de ter golpeado Cristiane. Imagens captadas por uma câmera de vídeo de um comércio próximo mostram o pedreiro partindo violentamente para cima da mulher com a faca em punho e, já quando ela não esboçava qualquer reação, caminhando para longe.
Em seguida, as mesmas câmeras mostram uma sessão de espancamento contra Antônio, que só seria interrompida com a chegada da Polícia Militar.
Por que eles matam?
Seis em cada 10 feminicidas dizem ter cometido o crime por ciúmes, de acordo com informações da Secretaria de Segurança do DF. As mulheres também sentem ciúmes quando estão em um relacionamento, mas não matam com tanta frequência um companheiro ou ex por causa disso. Qual é a diferença? Para essa pergunta, há uma resposta certeira: esse sentimento, na verdade, é de posse, uma das muitas nuances do machismo.
“Nossa sociedade permite ao homem achar que é dono da mulher. Eles não responderam por seus atos contra nós durante séculos. Nossa cultura é violenta, exalta o masculino e rejeita o feminino. O homem acredita ter a posse da companheira, de sua vida, ao ponto de achar que pode decidir se ela vive ou não. Isso é injustificável, é o extermínio do feminino”, afirma a advogada e presidente da Comissão da Mulher da Subseção de Taguatinga da OAB/DF, Lúcia Bessa.
Antônio está preso aguardando julgamento. A única que chora a vida perdida de Cristiane é Enoi.
Carol Oliveira
Jornalista desde 2010. Fala desde os 9 meses de idade e, até o momento, não parou. Acredita que nasceu para observar, perguntar, ouvir e relatar. Em sua vida profissional, já mapeou ruas de Brasília e esquadrinhou sapatos, gestos, expressões, conversas, ternos vestidos de parlamentares, ministrxs e juízxs. Formada na Universidade de Brasília, já trabalhou na CBN, Globo e Record. Em outro país, descobriu que o tempo não se mede por relógios. E, nessa lógica, acredita que a notícia não está onde a maioria procura.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (08/11/2019), 12.637 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 27 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.