Silenciosos e organizados, exploradores de jogos de azar infestaram o Distrito Federal com casas de bingos, videopôquer e máquinas caça-níqueis. Para escapar das autoridades e conferir uma falsa segurança aos clientes, os contraventores desenvolveram mecanismos para ocultar a jogatina. O Metrópoles teve acesso exclusivo aos detalhes de investigações que correm em sigilo e já estouraram 13 locais usados para promover a atividade criminosa apenas neste ano. Na noite de quarta-feira (8/11), a reportagem acompanhou uma batida policial em uma das casas clandestinas.
As investigações sobre o avanço dos bingos se concentram na Divisão de Falsificação e Defraudação (Difraudes), vinculada à Coordenação de Repressão aos Crimes contra o Consumidor, à Ordem Tributária e a Fraudes (Corf). Os responsáveis pela contravenção se reinventaram nos últimos anos após a última grande ação desencadeada pela Polícia Civil, ainda em 2013. A operação Jackpot, da Divisão de Combate ao Crime Organizado (Deco) desarticulou 34 casas de apostas no DF e no Entorno. A maioria pertencia ao contraventor Carlinhos Cachoeira, preso na ação.
Jogo na quitinete
Até quitinetes passaram a servir como esconderijo para as máquinas e seus apostadores. Os pequenos apartamentos são montados com até dez equipamentos e contam apenas com um banheiro e uma pequena cozinha de apoio para servir bebidas e comida. Com cortinas blackout, quem passa pela rua não imagina que o jogo corre solto no apartamento.
Uma delas ficava em um prédio situado na região conhecida como Boca da Mata, em Taguatinga Norte. O local foi descoberto por agentes da Corf e alvo de operação em maio deste ano. Duas pessoas responsáveis pelas dez máquinas apreendidas foram conduzidas para a delegacia.
O donos dos imóveis raramente têm conhecimento que seus patrimônios se transformaram em casas clandestinas de bingo. Para tocar os negócios com tranquilidade, os contraventores chegam a pagar seis meses de aluguel adiantados. A estratégia adotada serve para evitar que os proprietários façam visitas surpresas e flagrem o comércio irregular em pleno funcionamento. O pagamento adiantado também contribui para os locatários aceitarem acordos de “boca”, evitando a assinatura de contratos.
Bingos itinerantes
Tornar a atividade cada vez mais discreta fez com que os exploradores dos jogos de azar alugassem até três imóveis simultaneamente e promovessem um rodízio entre eles. As investigações apontaram que gerentes e seguranças das casas figuram como locatários das propriedades, mantendo sempre a identidade dos verdadeiros donos do negócio em sigilo. Os bingos não passam mais do que dez dias funcionando no mesmo local.
Um dos pontos de jogatina, baseado em um apartamento na Asa Norte, também foi fechado pelos investigadores recentemente. O local, monitorado pelos policiais, mantinha 15 máquinas de vídeobingo. O local era frequentado, em sua maioria, por idosos que moram no Plano Piloto e apostavam alto. Após uma denúncia anônima, policiais da Corf fecharam o local e apreenderam os equipamentos.
De acordo com o diretor da Corf, delegado Wisllei Salomão, o método utilizado pelos os “chefões do jogo” ainda envolvem o pagamento das custas processuais das pessoas usadas como laranjas do esquema. “Eles pagam os advogados e, em troca, tentam escapar de figurarem nos inquéritos”, explicou.
Como o jogo de azar é considerado apenas contravenção penal no Brasil – que gera apenas um Termo Circunstanciado – a polícia trabalha para associar crimes como lavagem de dinheiro e associação criminosa.
Nome na lista
Há cinco anos, quando as casas ainda não tinham sido alvo de grandes operações desencadeadas pelas polícias Civil e Federal, era fácil entrar, sentar em frente a uma das máquinas e jogar durante toda a noite. Atualmente, os barões da jogatina mudaram as regras. Os apostadores que chegam até os salões precisam receber convites. As propostas chegam por meio de uma ligação, ou por mensagem através do WhatsApp.
Segundo o investigador Ânderson Coimbra, que participa das operações contra os bingos, os gerentes que coordenam a jogatina guardam listas com nomes e telefones dos mais ávidos apostadores. “São pessoas com alto poder aquisitivo, com cargos públicos importantes e que são viciados em jogo. Sem as listas, os contraventores não conseguem fazer a casa dar lucro. Os contraventores sentem mais falta das listas apreendidas do que das máquinas”, contou.
Durante as batidas policiais, os agentes também apreendem, com frequência, talonários usados para controlar a dívida dos apostadores. As folhas são preenchidas quando o dinheiro do apostador acaba ou os cartões já estão sem crédito. Em uma das operações, os policiais apreenderam vales com dívidas de até R$ 15 mil.
As pessoas que costumam frequentar os bingos passaram a ser usadas pelos gerentes e atendentes da casa para tentar evitar prisões em flagrante. Máquinas de crédito e débitos passaram a ser escondidas nas bolsas dos apostadores, ou eram deixadas dentro dos veículos dos clientes. “Quando algum pagamento precisa ser feito, eles vão até o carro e buscam a máquina. Depois, voltam a escondê-la”, explicou o investigador Coimbra.
Operação na ADE
Já era noite de quarta-feira (08/11) quando uma equipe da Corf se aproximou de um prédio de quitinetes na Área de Desenvolvimento Econômico (ADE) do Riacho Fundo. Os investigadores monitoravam a existência de uma casa de bingo funcionando dentro de um dos imóveis.
A porta da residência estava trancada e não havia ninguém. No entanto, ao conseguir alcançar uma das janelas, os policiais sentiram o forte cheiro de cigarro, lençóis pretos em formato de cortinas e ausência de móveis na sala, sinais claros de o local era usado como casa de jogo. Próximo à janela havia um livro que os investigadores encontraram anotações do suposto contador do jogo.
Com todas as provas em mãos, a equipe forçou a porta e entrou no local. As sete máquinas estavam acomodadas em um dos quartos. Todas estavam instaladas e em pleno funcionamento. “Esses pequenos bingos estão se espalhando pelo DF, pois é uma forma de funcionarem sem levantar suspeitas. Eles pulverizam as máquinas por vários imóveis e evitam um grande prejuízo”, explicou o agente Ânderson Coimbra.
Polêmica na regularização
Em meio às operações realizadas pela Polícia Civil, os jogos de azar também são centro de polêmicas antigas na esfera política. Em 2004, os bingos irregulares estiveram no centro do primeiro grande escândalo envolvendo o governo do ex-presidente Lula. À época, ex-assessores do petista foram acusados de receber benefícios do bicheiro Carlinhos Cachoeira em troca de influência no governo.
No ano seguinte, o Congresso Nacional instituiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos, que tinha o objetivo apurar a utilização das casas para a prática de crimes de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores. Apurava, ainda, a relação desses estabelecimentos com outras facetas do crime organizado e com integrantes do governo federal.
O relatório final da comissão, apresentado pelo senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), pediu o indiciamento de 83 pessoas e se manifestou a favor da legalização dos jogos de azar no Brasil. “Muitos dos depoimentos colhidos por esta CPI alertaram para a ligação das empresas que exploram jogos de azar com o crime organizado, promovendo a lavagem de dinheiro. É preciso, portanto, que a regulamentação da atividade preveja uma eficiente fiscalização das casas de bingo”.
Em 2010, uma proposta de regulamentação dos jogos de azar apresentada pelo deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP) foi arquivada na Câmara. Atualmente, tramita no Congresso o Projeto de Lei nº 186, de 2014, do senador Ciro Nogueira (PP-CE), que versa sobre nova proposta de regulamentação da atividade. O PL cria regras para a exploração do setor e determina sanções para aqueles que não as cumprirem.
“O próprio Estado realiza inúmeras modalidades de jogos de azar. Por que não legalizar as outras modalidades? Qual fundamento justifica esse equívoco? A velha retórica já não mais explica a realidade dos jogos no Brasil; é preciso avançar e criar um marco regulatório para essa atividade”, defende o parlamentar.
O posicionamento é o mesmo defendido pela Associação Brasileira de Bingos, Cassinos e Similares (Abrabincs). De acordo com o presidente da entidade, Olavo Sales, os benefícios da regularização dos jogos de azar são “inúmeros”.
A medida adicionaria R$ 9,2 bilhões em impostos à arrecadação do governo, criaria cerca de um milhão de empregos diretos e indiretos e melhoraria a dinâmica financeira do país. Cerca de 80% dos países livres hoje já regularizaram os jogos de azar. Entre os que não fizeram, a maioria está ligada à religião islâmica
Olavo Salves, presidente da Abrabincs
O dirigente afirma ainda que é “ingênuo” associar as casas de bingo à lavagem de dinheiro, já que, caso a regulamentação fosse aprovada, a tributação dos valores seria alta.
Crime organizado
A proposta, no entanto, encontra resistência não só no meio político, mas também em diversas entidades e no Ministério Público Federal (MPF). Em nota técnica sobre o projeto de lei, a Procuradoria-Geral da República (PGR) se opõe veementemente à regulamentação dos jogos de azar. No documento, o órgão cita as dificuldades de fiscalização e a utilização das casas de bingo para o cometimento de crimes como lavagem de dinheiro.
Nota Técnica PGR – Jogos de Azar by Metropoles on Scribd
“Com a aprovação do projeto, nada mais se fará do que legitimar uma atividade que se impôs (e continuará se impondo, pois estará nas mãos das mesmas pessoas) pela violência e pela corrupção, regularizando-a em benefício de organizações mafiosas que atuam com planejamento, controle de fluxo de caixa, divisão territorial e atuação espúria de forma estruturada e contínua”, diz a nota do MPF.
A visão é corroborada pelo Movimento Brasil sem Azar, que tem atuado com o objetivo de impedir a aprovação do PL nº 186, de 2014. De acordo com o advogado Paulo Fernando Melo, diretor da entidade, não passa de bravata a promessa de maior arrecadação e destinação de recursos para áreas como saúde e segurança. “O que está por trás da jogatina é o crime organizado, o narcotráfico e a lavagem de dinheiro”, defende.
Tramitação
Em novembro do ano passado, o PL foi aprovado na Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional no Senado. A matéria deveria ser avaliada em plenário, mas retornou para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, após manifestação de parlamentares contrários à proposta.
O Senado também realiza uma consulta pública onde a população pode opinar sobre o projeto: até esta quinta-feira (9/11), 2.025 internautas haviam se manifestado favoravelmente à regulamentação dos jogos de azar e 450, contra.
Na quinta-feira (9/11), deputados e senadores contrários à legalização de jogos de azar no Brasil lançaram uma frente parlamentar para combater a matéria.