"Avisa quando chegar": O assédio que paralisa as mulheres. Quando o medo é medido em quilometros.
10/08/2016 18:23 , atualizado em 08/07/2019 15:29
O pedido guarda em si uma prece: -“Avisa quando chegar”. Ao saber que a filha está em segurança, os pais dormirão em paz. A amiga ficará aliviada pois, naquele dia, aquela mulher não virou mais um rosto perdido entre estatísticas mal contabilizadas. A preocupação tem fundamento.
Mais de 86% das brasileiras já foram vítimas de assédio em espaços públicos, segundo levantamento da ONG ActionAid. O transporte público é onde elas mais têm medo de sofrer abordagens indesejadas, de acordo com a pesquisa.
Outro estudo, do Datafolha, chegou à mesma conclusão: cantadas,
encoxadas e mãos que não se aguentam dentro dos bolsos já fizeram vítimas 35% das mulheres entrevistadas que usam o metrô, o ônibus ou o trem todos os dias. A taxa é maior do que a de abordagens na rua (33%).
Discutir a importância da mobilidade urbana e da transformação social é indispensável para a autonomia feminina. Chegar ao trabalho, ao supermercado, à creche do filho ou à festa no fim de semana em segurança deveria ser a menor das preocupações de um dia atribulado. Na prática, é bem mais complicado que isso.
Há quem já tenha perdido entrevista de emprego por ter sofrido abuso a caminho da nova oportunidade, meninas que deixam de ir ao cinema por medo de pegar ônibus à noite e mulheres que trancam a faculdade para evitar as viagens de metrô. Até a cor do batom entra na lista de precauções. “Melhor deixar para passar quando chegar”. Vai que um homem no vagão entende os lábios vermelhos como convite?
Arquivo Pessoal
A violência e o assédio nos espaços públicos impedem as mulheres de quebrarem os ciclos de pobreza em que vivem, limitando seu acesso ao estudo e ao trabalho Glauce Arzua Coordenadora da campanha Cidades Seguras para as Mulheres no Brasil
“A ActionAid defende um planejamento urbano que leve a perspectiva das mulheres em consideração, e a melhoria dos serviços públicos, para que todas as mulheres tenham seu direito de ir e vir com segurança garantido e possam alcançar seu pleno potencial”, afirma Glauce.
A equipe do Metrópoles andou de trem, ônibus e metrô no DF, Rio de Janeiro e São Paulo nos horários de pico e nas linhas de maior aglomeração para entrevistar dezenas de mulheres. Passeamos pelos vagões mistos e exclusivos — no caso de Rio e DF — para avaliar a sua eficácia.
Reunimos também relatos sobre assédio no transporte público em Salvador, Porto Alegre e Fortaleza, além de depoimentos de moradoras de 12 países. Na Índia, na Irlanda, na Itália ou na África, por exemplo, as queixas se parecem. Revelam o retrato de um mundo que não respeita o direito de locomoção das mulheres.
Capítulo 1 Próxima estação: medo O crime que ninguém vê no Brasil
Passa das 18h na estação Palmeiras – Barra Funda, do metrô de São Paulo, numa quarta-feira. Ela é o terminal da Linha Vermelha, a principal da rede metroviária da capital paulista, com uma demanda de 1,2 milhão de passageiros nos dias úteis. É também onde se faz a baldeação para as linhas Diamante e Rubi de trem, que ligam o centro da cidade às zonas Leste e Norte, respectivamente.
Na plataforma à espera do próximo trem sentido Jundiaí, centenas de pessoas se espremem contando os minutos para chegar em casa depois de um dia de trabalho. Os trens partem tão lotados que agentes de segurança vestindo coletes onde se lê “auxiliar de embarque” empurram passageiros vagão adentro para que a porta não se feche nas suas pernas. Eles riem dos fios de cabelos das moças que, às vezes, ficam para fora.
Conversando sobre as situações rotineiras do seu trabalho, eles não se abalam ao falar de assédio. O crime é banal, coisa à toa. “Você não viu o que acabou de acontecer?”, um deles pergunta, rindo. Uma moça acabara de procurar a dupla de seguranças apontando para sua saia ejaculada.
Contando o caso, um dos funcionários apontava os joelhos para mostrar a altura da roupa da mulher. “Batia aqui. Não sei como é que o cara conseguiu fazer isso”. Ela foi para casa com a roupa suja e sem atendimento. “Ué, sem saber quem é o cara não tem o que fazer.”
Lembram de uma vez em que pegaram um encoxador em um dos vagões. A moça reagiu e os outros passageiros se juntaram para espancar o homem. Os seguranças foram acionados para apartar a briga e o assediador foi encaminhado à Delegacia de Polícia do Metropolitano, a Delpom, dedicada exclusivamente às ocorrências nas linhas de metrô e com sede ali mesmo, na estação Barra Funda. “Aquele se deu mal. Parece que o pai da mulher era um ‘polícia’”, o segurança conta. A maior parte das outras vítimas, no entanto, nunca vai ver a justiça sendo feita.
A certeza da impunidade é tão grande que a maioria das mulheres sequer procura uma delegacia para denunciar a violação. Passar a mão, encoxar, esfregar ou se masturbar dentro dos vagões ou pelos ônibus são crimes cometidos à revelia das estatísticas ou da própria Justiça. O assédio sexual no transporte público é invisível para a sociedade e para o Estado.
Rafaela Felicciano / Metrópoles
Um cara passou a mão em uma mulher no metrô. Você acha que ela vai para a delegacia fazer um boletim de ocorrência, ficar três, quatro horas esperando? Ela tem que ir trabalhar, tem que ir buscar o filho na escola. Ela deixa para lá! Rosana Chiavassa Presidente da Associação das Advogadas, Estagiárias e Acadêmicas de Direito do Estado de São Paulo (ASAS), entidade voltada à promoção da igualdade de gênero.
Além disso, pesa o medo de que o agressor esteja armado, de que numa luta corporal ela leve a pior, pesam a vergonha de ter sido vítima de uma investida sexual, o receio de ser julgada pela família e pelas pessoas ao redor, pelo policial que faz perguntas às vezes “estranhas”, como para onde a vítima ia ou que roupa vestia, como se ela fosse culpada por ter saído de casa usando uma saia ou um short curto demais. “A denúncia passa por um processo psicológico. A coisa ‘interna’ é muito forte nessa hora”, afirma Rosana.
No primeiro trimestre de 2015, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo registrou 33 denúncias de importunação ofensiva ao pudor — o nome oficial dos assédios — nos transportes públicos e pontos de ônibus. Pela legislação brasileira, o crime de “assédio sexual” só se configura em ambiente de trabalho.
Em 2016, foram 54 denúncias no mesmo período. O órgão atribui o aumento de casos à maior atuação da polícia, aos movimentos feministas e à maior publicidade do problema. Os números crescem não porque o crime aumenta, mas porque elas estão cada vez mais dispostas a denunciar.
Nos trens da CPTM, os casos de assédio saltaram de 80, em 2011, para 168, em 2015 — um aumento de mais de 100% em quatro anos. No mesmo período foram registrados dez casos de estupro e detidos 564 suspeitos.
O que é assédio?
Qualquer abordagem que cause constrangimento ou viole a intimidade pode ser considerada assédio e deve ser denunciada. Entram aqui assobios, cantadas indecorosas, puxões pelo braço ou cabelo, masturbação em público, encoxadas e apalpadas, por exemplo.
Os especialistas argumentam que denunciar é importante porque sociedade e Estado funcionam à base de números: o crime não existe enquanto gráficos não o provam. Mas, na outra ponta, às vezes a coragem de levar o caso à polícia morre na delegacia. “A gente incentiva a denúncia sempre, mas com um aviso: ‘Cuidado para não se frustrar, se nada for feito’”, comenta Rosana.
“O maior problema é provar esse assédio, porque naturalmente a primeira coisa que esse homem vai fazer é negar. E aí eu não sei o que pode ser pior: a violência do assédio ou a de ver que a denúncia não vai dar em nada”, continua a advogada.
Os números, que já são mirrados para uma região metropolitana (a Grande São Paulo) que transporta em média 17 milhões de passageiros por dia, sendo 58% deles mulheres, são ainda menos expressivos em outras cidades. A Secretaria de Segurança Pública do DF sequer contabiliza esse tipo de denúncia.
A história da secretária Marília Silva, 43 anos, por exemplo, não entrou para as estatísticas. Ela ia a uma entrevista de trabalho na Asa Sul, saindo de ônibus de Taguatinga, quando sentiu algo molhar a manga de sua blusa.
“Eu tava sentada no banco e cochilei, porque era muito cedo. Quando abri o olho, vi que a manga da minha camisa estava molhada. Na hora, eu só chorava. Não queria acreditar que um homem tinha ejaculado em mim desse jeito. Não tive coragem de ir à entrevista de emprego assim e voltei para casa. Perdi a oportunidade”, lembra.
Daniel Ferreira / Metrópoles
O corpo da mulher é tratado como um espaço público. Se não é de ninguém, qualquer um pode pegar, abusar. Há algumas semanas, um motorista de ônibus trouxe o coletivo com todo mundo dentro para a porta da delegacia, porque um homem ejaculou na saia de uma passageiraAna Cristina Melo Santiago Delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher do Distrito Federal
No Distrito Federal, a única régua para medir a ocorrência de encoxadas no metrô, por exemplo, é a Ouvidoria da empresa que administra o serviço, que recebe via WhatsApp denúncias das usuárias para depois encaminhar o apelo à segurança. Só que das 25 estações metroviárias do DF, apenas cinco possuem as chamadas “inspetorias”, os postos de segurança: Central, Shopping, Ceilândia Centro, Praça do Relógio e Samambaia.
Estações com postos de segurança no metrô DF
O quadro de agentes de segurança é “deficitário”, como reconhece o chefe da Ouvidoria do Metrô DF, Luciano Dantas. A Ouvidoria funciona em horário quase comercial: encerra o “expediente” no aplicativo às 19h.
Este ano, foram quatro notificações de assédio, até julho. Nenhuma delas virou denúncia. Segundo Dantas, as vítimas são informadas de que podem formalizar a reclamação na delegacia (fora da estação), mas acabam desistindo.
O crime que é invisível às estatísticas, no entanto, ganha contornos nítidos quando se conversa com as usuárias do transporte. Todas as mulheres entrevistadas nas três cidades pela reportagem enfrentam esse problema diariamente, já passaram ou conhecem alguém que tenha vivido a situação.
Em abril, a advogada Lígia Batista, de 23 anos, começou o périplo da sua casa, no bairro do Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, até o trabalho, em Laranjeiras, antes das 9h. O bairro onde ela mora não tem metrô e os ônibus não estavam circulando por algum motivo extraordinário.
Sabendo que precisaria descer do trem na Central do Brasil e pegar um metrô, evitou sair de casa muito cedo, “porque esse horário é muito tenso”. “A Central estava lotada e eu já comecei a me estressar.”
Como os vagões exclusivos estavam cheios — o metrô do Rio reserva o penúltimo vagão dos carros às mulheres em horários de pico –, entrou num vagão comum e se viu rodeada de homens. Ligou o alerta imediatamente. Notou que um senhor se acomodou bem próximo a ela, mas não disse nada.
“Pensei: ‘Ah, isso é coisa da minha cabeça’”, lembra. Mesmo com o metrô mais vazio depois de algumas estações, o homem não abria distância da advogada. “Eu não olhava para ele para ver o que ele estava fazendo porque não queria me fazer de louca”. Olhou e constatou que o até então inofensivo senhor tinha uma ereção. “Me senti agredida.”
Nervosa e invadida, Lígia começou a gritar. Para seu espanto, os outros passageiros permaneceram inertes, olhando de olhos arregalados para a moça que chorava no metrô. “Fiquei de louca ali na hora, mas queria que as pessoas entendessem como eu estava destruída. Queria falar, queria que todo mundo me ouvisse”, conta.
Rafaela Felicciano / Metrópoles
Aquilo para mim foi um estupro. Eu não dei àquele homem consentimento para que ele sentisse prazer comigo.Lígia Batista Advogada
O metrô do Rio de Janeiro só perde hoje para o de São Paulo, em fluxo de passageiros. São mais de 800 mil por dia. Lá, a encoxada tem até nome próprio: “sarrada”. Não precisa nem fazer menção ao medo para receber avisos de cautela do recepcionista do hotel, do motorista do Uber, da ativista da ONG: todo cuidado com os “aproveitadores” é pouco. Imagine para quem não tem outra opção a não ser se aventurar entre eles, às 7h, todos os dias.
Desde 2006, o Instituto de Segurança Pública do estado divulga o Dossiê Mulher, um relatório com números sobre a violência contra a mulher no Rio e o perfil das agressões. Este ano, assoprando velinhas por uma década de vida, traz pela primeira vez o capítulo “Outros olhares”, que trata do assédio em locais públicos — no transporte, inclusive.
Segundo o documento, o Rio de Janeiro registrou 610 denúncias de importunação ofensiva ao pudor em 2015. A maior parte (32,8%), na rua. Outros 17% foram no transporte público ou em terminais de embarque.
“O assédio tem característica cultural”, comenta Monique Eleotério, assessora de projetos da Camtra, ONG idealizadora da campanha “Não me cale, nem me culpe #merespeitaae”, contra o assédio, que busca dar visibilidade às diversas formas de violência que as mulheres sofrem.
Rafaela Felicciano / Metrópoles
O assédio vem de uma cultura totalmente machista.
Os homens são criados para entender que podem dispor dos corpos das mulheres.
Elas são objetos.Monique Eleotério Assessora de projetos da Camtra
A busca por soluções passa pela mudança cultural. Por isso, em setembro de 2015, um coletivo de ONGs entregou à Secretaria de Transporte de São Paulo um documento com 18 páginas chamado Busão dos Sonhos.
O texto lista as principais demandas da população para a melhoria do transporte público. Entre elas, está a questão do assédio. Ter mais ônibus e, consequentemente, mais vazios é um dos caminhos apontados. Outros tópicos, como ter ruas mais iluminadas, frota maior e mais pontos de ônibus — para diminuir as distâncias percorridas pelas mulheres até chegar em casa — foram abordados.
A ONU Mulheres também propõe ações para melhorar o transporte para esse público específico: dar a mulheres o direito de descer do ônibus fora dos pontos oficiais e mais perto de seu destino, instalação de serviços de prevenção da violência e de atendimento a vítimas nas estações de metrô, calçadas suficientemente iluminadas, instalação de tarifas abordáveis.
Nesse debate, pouco se fala, entretanto, sobre formas de educar os homens e combater a cultura machista. A socióloga Marília Moschkovich é uma das vozes que se manifestam sobre o assunto.
Essas estratégias precisam partir da desconstrução de hierarquias entre homens e mulheres.Pensadas dessa maneira, de quebra, ainda colaboram a longo prazo para que esses estereótipos caiam por terra, possibilitando uma sociedade mais justa e igualitáriaMarília Moschkovich Socióloga e autora do blog Outras Palavras
Capítulo 2 Vagão exclusivo: problema vestido de solução?
Se o crime que ocorre dentro de um ônibus ou vagão lotado morre na indignação da vítima e não chega à polícia, então como inibir os assediadores? Algumas cidades concluíram que a resposta talvez fosse criar vagões exclusivos para mulheres, protegendo-as assim dos agressores. No Brasil, eles funcionam no Rio desde 2006 e no DF, desde 2013.
Não é tão simples assim. A medida, que a princípio soa como alento para quem depende do metrô e fica à mercê de aproveitadores, gera polêmica entre feministas, usuárias e políticos. Quem defende o vagão rosa, como é conhecido, justifica que é um paliativo de urgência para inibir os assédios. Quem critica diz que isolar as mulheres dos homens não é a solução para um problema que tem origem no machismo. Só legitima a prática.
No RJ, o penúltimo vagão de todos os carros é dedicado às mulheres nos horários de pico: entre 6h e 9h e das 17h às 20h. Eles são sinalizados com discretos avisos gastos no chão e placas do lado de dentro dos vagões. Embora a medida exista há dez anos, só em 2016 a Assembleia Legislativa do estado aprovou punição, com multa de até R$ 1.085, para quem descumprir a regra. Agora, sim, os homens são obrigados a conter-se pelas placas de aviso.
Mesmo assim, não é preciso mais do que cinco minutos dentro do vagão para flagrar desavisados acomodando-se entre as mulheres. A maioria está só de passagem. Alguns fazem-se de desentendidos até que alguma moça peça para que ele se retire. Geralmente, o pedido é prontamente atendido.
Nas linhas de trem, no entanto, a coisa é diferente. “Trem é terra sem lei”, uma das usuárias resume. Os mesmos vagões exclusivos existem, mas são mal sinalizados — há placas escondidas por telas de LCD recém-instaladas.
Saindo da estação Central do Brasil, os carros vão tão apinhados de gente, que passageiros sentam nas janelas em busca de ar — os trens antigos, chamados de “latas de sardinha”, sequer têm ar-condicionado. Naturalmente, todos se acomodam onde há espaço. Inclusive no vagão de mulheres. Elas nem ligam. “É comum esse tanto de homem assim no vagão feminino?”. A passageira sacode a cabeça afirmativamente, dá de ombros e volta a colocar os fones de ouvido.
O segurança na plataforma também não parece se incomodar com os homens que usam o vagão exclusivo. “Olha, eu deveria tirar a pessoa, mas… né?” e faz um sinal, como quem diz: “Sou um só”. O desrespeito é invencível.
Em Brasília, o vagão para mulheres e pessoas com deficiência foi criado pela Lei 4.848 de 2012, também para horários de pico do transporte. Desde o ano passado, a regra vale para qualquer horário. A polêmica que ferve as discussões entre especialistas mundo afora parece nem ter batido à porta do Metrô DF.
A última pesquisa de satisfação da empresa concluiu que 90% dos usuários aprovam a medida — inclusive 85% dos homens se disseram a favor do carro feminino. O próximo passo é pintá-lo de cor-de-rosa pelo lado de fora.
Segundo Luciano Dantas, da Ouvidoria, a maior parte das queixas recebidas via WhatsApp é justamente sobre homens no vagão exclusivo. Aqui, a contravenção não é punida com multa. A fiscalização cabe à escassa equipe de segurança e às próprias mulheres usuárias do sistema.
Já em São Paulo, a adoção do vagão para mulheres chegou a ser debatida e aprovada pela Assembleia Legislativa em 2014. Só que apenas os deputados homens votaram a favor. A ideia causou tanto debate na sociedade que foi abandonada. Não pegou. Um do argumentos é que com 58% dos usuários sendo mulheres, destinar um ou dois vagões em cada carro a elas seria irrisório. Um tampão furado para o problema.
A ideia do espaço exclusivo já havia sido testada na capital paulista antes, em trens da CPTM, nos anos 1990. Na época, algumas usuárias fizeram um abaixo-assinado pedindo à companhia carros reservados a mulheres. O teste durou dois anos. Primeiro, porque a Constituição estabelece a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e a medida foi considerada inconstitucional. Depois, a superlotação inviabilizava a reserva do carro.
O vagão é uma forma de perpetuar o preconceito. Aquilo é uma burca metálicaRosana Chiavassa Presidente da Associação das Advogadas, Estagiárias e
Acadêmicas de Direito do Estado de São Paulo (ASAS).
“E quem não conseguir lugar no vagão? Quer ser assediada, então?”, provoca a advogada. Rosana, que se diz “visceralmente contra” a divisão, defende que a medida nada mais é do que uma forma de “calar a boca das ‘chatas’ que reclamam”.
Mais do que separar homens e mulheres, ela acredita que, além da educação, a solução talvez seja assumir que o Brasil tem, sim, um problema. “A cultura do machismo é no mundo todo. Mas por aqui passa essa imagem de que não tem, porque as pessoas não falam sobre isso. Essa confusão é que dificulta.”
Em vez do vagão, a ASAS criou em 2014 a campanha “Não hesite, apite”, que distribui apitos para que as mulheres façam barulho quando se sentirem agredidas no transporte. Até agora, mais de 1,5 milhão de apitos já foram distribuídos pelo Brasil. O projeto foi inspirado na iniciativa de uma comunidade de Recife com alto índice de violência doméstica. Toda vez que ouviam uma mulher apanhando em casa, elas saíam juntas para rua e apitavam até que a polícia aparecesse.
Uma campanha parecida teve início na Cidade do México, em julho. A prefeitura distribuiu 15 mil apitos às mulheres para inibir casos de assédio. A iniciativa foi criticada por setores da população com argumento de que carregar o aparelho como “aviso” aos homens é, por si só, uma forma de se perpetuar o comportamento machista. Gritar seria mais fácil.
A Cidade do México foi uma das primeiras a adotar o vagão, mas os índices de assédio e violência sexual no transporte não diminuíram. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Geografia do país, 72% das moradoras da capital já sofreram algum tipo de violência sexual.
Assédio é crime?
Pela lei brasileira, o crime de “assédio sexual” diz respeito apenas aos casos que envolvem uma relação de superior e subordinado. Ou seja, vale para relações de trabalho. Uma passada de mão ou encoxada no metrô pode ser:
1. Importunação ofensiva ao pudor (artigo 61 da Lei de Contravenções Penais): A maior parte dos casos se encaixa aqui. Como não é crime, apenas “contravenção penal”, é punido com multa, a ser definida pelo juiz.
2. Injúria (artigo 140 do Código Penal): Como a importunação tem pena muito leve, dependendo da abordagem do assédio o juiz pode classificar a ação como injúria, com punição menos branda, de três meses a um ano de detenção.
3. Estupro (artigo 213 do Código Penal): Além da relação sexual sem consentimento, o assédio pode ser classificado como estupro se a abordagem for mais agressiva, a exemplo de quando o homem toca as partes íntimas da vítima. Nesse caso, a pena é de seis a dez anos de cadeia.
Capítulo 3 Assédio é como andar de bicicleta, nunca se esquece
Saem de cena ônibus, metrôs e seus encoxadores. No lugar de poluentes, de passagens caras e meios de transporte ineficientes, a bicicleta surge como opção. Muito além de levar e trazer, ela é uma importante ferramenta de emancipação feminina.
A magrela deu liberdade de deslocamento para as mulheres, permitindo que fossem sozinhas de um lugar ao outro, e ajudou a mudar o vestuário que limitava seus movimentos. Naquela época (século 19), médicos como o francês Phillipe Tissié afirmavam que pedalar faria mal às mulheres, podendo causar até esterilidade feminina William Cruz Colunista no portal Vá de Bike
Ainda hoje, enquanto pedala, uma mulher reafirma sua independência diante da sociedade. Em partes do Irã e da faixa de Gaza, no Oriente Médio, elas são proibidas de andar de bicicleta pelas lideranças radicais, que sexualizam essa atividade.
Muitas foram atacadas com ácido por praticar esse esporte. Tudo porque a bike dá a elas a condição de chegar a qualquer lugar sem depender de ninguém — nem mesmo do dinheiro para a passagem. Mesmo assim, elas não desistem e tornaram-se símbolo de resistência.
Do lado de cá do mapa, a bicicleta também ajuda a trazer independência e poder às mulheres. Quando vê meninas em bicicletas, Elza Menezes, 59 anos, moradora de Feira de Santana (BA), lembra do passado. “Cresci com uma família que me levou dos meus pais com promessa de me criar, mas me fez de empregada. É uma realidade muito comum no Nordeste. Tinha uma bicicleta na casa, mas eu não podia nem tocar.”
Há pouco mais de um mês, a filha de Elza, Cynthia, conheceu o projeto Preta, Vem de Bike, pensado pelo coletivo La Frida, de cicloativismo negro em Salvador, para levar mobilidade urbana a mulheres da periferia. Elza teve aulas e já consegue dar algumas voltas sozinhas. “Bicicleta para mim é um sonho. Traz facilidades, como ir para qualquer lugar, e é prazeroso. Também significa não estar aquém das outras pessoas”, afirma.
Transporte custa caro
As famílias brasileiras gastam, em média, 15% da sua renda mensal com transporte público, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Poderia ser bem menos com o uso da bicicleta.
À frente do La Frida, Livia Suarez foi quem deu as primeiras aulas para Elza. Ela explica o que é cicloativismo negro. Ao circular por Salvador e ver uma maioria de mulheres brancas pedalando na orla — no município com a maior população negra do país — ela se perguntou: “Por que as mulheres pretas não estão andando de bike?”
“A bicicleta é ferramenta de empoderamento na sociedade. Se para mulheres brancas é uma forma de se afirmar, para as negras e pobres é uma questão social, o jeito de ir ao mercado, ao shopping, à padaria, de levar os filhos à creche, sem pagar passagem. Já ouvi de muitas mulheres mais velhas que elas não querem morrer sem aprender a pedalar”, diz.
Lívia decidiu levar a bicicleta às periferias da capital baiana, mas a bike vendida no Brasil é uma das mais caras do mundo, 41% do preço é de impostos, segundo a Aliança Bike. Para custear a ação, ela fez uma campanha de financiamento coletivo. Como a arrecadação não foi suficiente, o grupo ainda espera doações para levar os planos adiante.
Mulheres negras são hipersexualizadas, sofrem mais assédio que as brancas também quando pedalam. O abuso com a gente é ainda mais agressivo, porque a negra é marginalizada, tem o estigma de ser forte e aguentar tudo Lívia Suarez Ativista do coletivo La Frida
Assim como nos outros meios de transporte, há pedras no meio do caminho. Expostas em suas bikes, elas ouvem todo tipo de piada: “Queria ser esse banquinho” e “Tá com as pernas abertas, tá pedindo” são apenas alguns exemplos de mau gosto do que mulheres de todo o Brasil escutam diariamente ao tentar se locomover.
Sentir o vento bater no rosto é ser beijada pela liberdade. E há quem se ofenda com a autonomia das mulheres que pedalam — ou se ache no direito de invadir o espaço delas. Muitas vezes, a abordagem ultrapassa o campo verbal.
Contemplar o Eixão, em Brasília, fechado para o lazer em um dia de domingo era um dos maiores prazeres de Luíza Maria Araújo, 25 anos. Ela abria mão de qualquer balada no sábado à noite para acordar bem, no dia seguinte, e levar sua bike para a pista onde o horizonte sempre parece mais vasto.
Até que um homem tirou sua alegria. “Eu estava pedalando em uma subida e ele apareceu do nada e segurou a minha bike. Agarrou os meus peitos e rasgou minha blusa. Tinha gente perto e ninguém fez nada. Depois desse dia, nunca mais pedalei”, relata.
Luíza chamou a polícia, que conseguiu prender o acusado. Registrou ocorrência, abriu um processo e o abusador teve como condenação o pagamento de cestas básicas a uma instituição carente.
Casos assim não são raros na capital do país. Moradora da Asa Sul, Camila Uchoa, 26 anos, solidariza-se com Luíza. Amante da bicicleta, ela trocou de faculdade para poder ir às aulas pedalando e não ter que pegar o metrô, onde sofria assédio e gastava muito com passagens. Mas não escapou dos abusos.
“Não há um dia sem que eu escute uma cantada desagradável, mesmo quando levo meus filhos para a escola na bike. Até penso duas vezes na hora de vestir um short, apesar de saber que a culpa não é minha”, lamenta.
Para enfrentar os problemas, nascem os coletivos de ciclistas femininas espalhados pelo país. Em Fortaleza, a quinta maior cidade do país, o Ciclanas marca encontros para pedalar pela cidade.
“Meninas levam tapa na bunda enquanto pedalam, já fui perseguida mais de uma vez. Fora tudo que já ouvi. A gente só continua pela força das mulheres que se unem”, diz Nina Vital, 22 anos, mais conhecida como Nina Tangerina, autora de um blog que leva seu apelido.
Unidas, as mulheres que formam o Ciclanas escolhem as melhores rotas para pedalar — são sempre as mais iluminadas e menos desertas. O medo de ser estuprada é preocupação cotidiana. Atualmente, Nina planeja um documentário, o “Respeita as Minas”, sobre esse tema. Por meio de uma vaquinha, pretende viajar por cinco estados e colher relatos.
Ralff Alves / Divulgação
Ser mulher e pedalar na rua é remar contra a maré em um mar de carros e ondas de assédio. Nós não estamos sozinhas. Nós somos a revolução e vamos ocupar a faixa. Nós somos várias e exigimos respeito, exigimos educação e pedalando, a gente grita: RESPEITA AS MINA! Nina Tangerina Ativista e blogueira
No Sul do país, o discurso é semelhante. Em Porto Alegre, toda quinta-feira, às 20h, na Rótula das Cuias, de 30 a 50 mulheres se encontram para o Pedal das Gurias. Elas estão lá mesmo quando o termômetro marca 7ºC.
Mais de 2.700 garotas mantêm contato pelas redes sociais. “Um dia desses, uma menina ia ao pedal e teve o pneu furado. Ela nos avisou. Quando cheguei lá para ajudá-la, mais de 20 mulheres do grupo já tinham ido ao encontro dela”, relata uma das idealizadoras, Tássia Furtado.
Já aconteceu também de uma ciclista ser assediada na porta de um restaurante e avisar pelas redes sociais. Em minutos, outras garotas estavam lá para tentar protegê-la.
Pedalo 2 km todo dia para ir ao trabalho. Não teve um dia sem assédio. Acontece sempre. Tássia Furtado Ciclista de Porto Alegre
Capítulo 4 Todo dia, em todo lugar: o mapa do desrespeito
Em 2014, uma pesquisa da Fundação Thomson Reuters e da YouGov apontou os lugares mais perigosos para as mulheres no transporte público no mundo. O Brasil, porém, ficou de fora das 15 metrópoles estudadas.
O questionário respondido pelas entrevistadas tinha perguntas sobre segurança para pegar o transporte público à noite, medo de ser assediada verbalmente por um homem, disponibilidade de meios de locomoção públicos de qualidade, temor em ser violentada de outras maneiras, confiança de que outros passageiros defenderiam uma mulher nessa situação e nas autoridades responsáveis.
A pior capital, segundo o estudo, é Bogotá, na Colômbia. Lá, policiais femininas à paisana patrulham os ônibus para flagrar qualquer ato de assédio sexual e prender os autores. Isso não intimida a ação masculina e mostra que é preciso educar sobre questões de gênero para mudar o comportamento cultural e socialmente construído.
Em seguida, na lista das piores capitais em assédio no transporte, vem Cidade do México, Lima (Peru) e Nova Déli (Índia), onde ocorreu um dos casos de estupro coletivo mais assombrosos do mundo.
Em 16 de dezembro de 2012, seis homens atacaram a estudante de medicina Jyoti Singh, quando ela estava em um ônibus com um amigo, depois de ir ao cinema, em Nova Déli. Os estupradores usaram uma barra de ferro para ferir o intestino da menina.
Alegaram que ela merecia punição por estar às 20h na rua, sem a companhia de um homem da família. O amigo de Jyoti foi espancado e não conseguiu defendê-la. Ela morreu 12 dias após as agressões. Sua história foi contada pela cineasta britânica Leslee Udwin no documentário “Filha da Índia”.
Linha do Tempo
A milhares de quilômetros da Índia, o lugar menos perigoso, ainda de acordo com o levantamento, é Nova York (EUA). Mas não pense que as mulheres da cidade americana escapam do abuso nos ônibus e, principalmente, no metrô.
Um grupo de norte-americanos criou o Guard Angels, no qual mulheres e homens vestem uniformes e fazem uma espécie de policiamento voluntário para evitar assédio no metrô. “Eu penso que isso é simplesmente bonito. Já é tempo de vermos as mulheres como guerreiras. Precisamos de mais Joanas d’Arc na nossa cidade”, disse Veronica Pagan, de 13 anos, a mais jovem do grupo, em entrevista ao New York Post.
A falta de segurança na mobilidade urbana tem sério impacto na vida das mulheres. A ONU Mulheres afirma que “o medo da violência reduz a liberdade de movimento e o acesso à educação, trabalho e lazer”. Segundo a entidade, o assédio em espaços públicos é muitas vezes negligenciado e pode “prejudicar seriamente” a atuação feminina na economia, em geral.
Veja abaixo depoimentos de mulheres sobre assédio no transporte público em 13 países. Elas enviaram seus relatos a pedido do Metrópoles: