Durante duas décadas, ao relembrar a minha morte, eu sempre me senti culpado. Aquela impressão de que não fiz como deveria ter feito, que estraguei tudo no último gesto. E a morte nos filmes de Afonso Brazza, como na vida real, não permite um segundo take.
A ideia foi do próprio Brazza. Eu não era ator. Apenas trabalhava no jornal Correio Braziliense, escrevia sobre música e cinema. Certa feita, tinha ido cobrir uma filmagem na frente do Conjunto Nacional em dia de semana.
Era a emblemática cena de abertura de Tortura Selvagem — A Grade, em que desavisados meliantes plantam um pacote de “pozinho” no carreto do inocente Maicon, desencadeando uma chacina à luz do dia, em espaços públicos da capital federal.
Dias depois daquela filmagem, recebi o convite de Brazza para me juntar ao elenco de seu filme. Eu tinha um bom tipo físico para bandido, ele avaliou. Topei, claro. Já conhecia a obra dele desde Inferno no Gama, e esse tipo de convite não se recusa, não.
(O jornal colocou outro repórter para cobrir as filmagens, meu amigo Klécius Henrique, que também seria prontamente cooptado por Brazza para participar do filme.)
Tive a oportunidade de dividir várias cenas com o lendário Tony Bidu, presença marcante em sete dos oito filmes de Brazza. Bidu, como de hábito, vivia o chefe dos bandidos e tratava todo mundo aos berros. Meu personagem, quero crer, era um sujeito bastante brother de Bidu, ou pelo menos muito convencido de sua posição hierárquica entre a bandidagem.
Meu personagem não tinha nome, atendia simplesmente por “Grandão”. Mas isso não o impedia de falar grosso com os camaradas — agradeço ao profissional de dublagem por me emprestar uma voz amedrontadora —, chegando ao requinte de esganar com as próprias mãos o irmão de Maicon e largá-lo inerte sobre a grama.
E ele ainda matou dois homens pelas costas. O “Grandão” matou.
Numa manhã de sábado, era chegada a minha hora de morrer — o que acontece a quem participa de um filme de Afonso Brazza, salvo a Claudette Joubert — e fiquei sabendo que seria morto com um tiro do “Delegado”, vivido por Ricardo Noronha.
“Poxa”, eu disse para o Brazza, “nada contra o Noronha, mas foi você que me chamou pra filmar, não foi? Então é você quem tem que me matar”.
Brazza gentilmente concordou com meu argumento fajuto. Ele me entregou o revólver e pingou o sangue — feito com pigmento vermelho, cola, pó de café — em minha testa, com cuidado para que não escorresse demais e melecasse meu terno da Casa José Silva.
A cena era graficamente forte, porque Maicon acerta um tiro bem no meio da minha testa. Meu revólver salta longe, meu corpo cai para trás, bate numa árvore e tomba lentamente, enquanto… ainda reúno forças para virar o rosto em direção à câmera!?
Teria sido um gesto espasmódico? Um estertor fisiologicamente improvável, porém dramaticamente potente?
Sempre me senti culpado… Teria sido pouco realista? Estão rindo do Brazza também por minha causa? Não deveríamos ter feito um take dois? Porém, agora, para escrever esta reportagem, voltando aos antigos filmes, encontro um fiapo de diálogo entre mim e meu diretor logo após a cena, registrado no documentário Afonso é uma Brazza, de James Gama e Naji Sidki.
— Foi legal?
— Foi legal para caramba.
— Sério?
— Sério, bateu lá, voltou a cabeça.
Sim. Lembro de tudo agora. No estupor da morte, no último suspiro, eu estava a responder à direção de Afonso Brazza. Ele me mandou virar o rosto para a câmera enquanto eu caía — e ele gostou. Take único.
Já posso morrer tranquilo.