Em 10 de março de 2019, Cevilha Moreira foi encontrada morta em um quarto de fundos localizado no Conjunto F da Quadra 5 de Sobradinho. Imediatamente, o principal suspeito pelo crime passou a ser
o então namorado, Macsuel Santos, 34 anos,
com quem ela mantinha um relacionamento recente e havia se mudado para o endereço um dia antes.

O fim, apesar de violento, não despertou comoção. Fora a mãe e os cinco filhos de Cevilha, poucos lamentaram a morte da cearense de 45 anos.

As reportagens que noticiaram o feminicídio vieram acompanhadas de informações sobre um outro crime, em que a mulher figurava como autora e
pelo qual já havia cumprido pena. A vítima era “a sequestradora do Conic”, alcunha adquirida

dois anos antes, ao raptar uma bebê de apenas 3 meses dos braços da mãe
.

Quando a notícia do assassinato foi divulgada, houve quem comemorasse a morte de Cevilha. Na página dela no Facebook, apareceram mensagens de “agradecimento” ao suspeito. “Deem uma medalha a esse cara”, dizia uma das publicações.

O segundo filho de Cevilha, em rápida troca de mensagens com o Metrópoles, responsabilizou a cobertura da imprensa pelas reações de ódio à mãe. Preferiu não ser entrevistado e, por isso, seu nome e os de seus irmãos não serão divulgados nesta reportagem.

“Ela se chamava Cevilha, e não ‘a mulher que sequestrou o bebê no Conic’”, afirmou. Aqui será contada a história de uma vítima que morreu com uma faca cravada no peito, em mais um feminicídio cometido no Distrito Federal.

Macsuel Santos, apontado pela polícia como o autor, está foragido desde o dia do crime.

De Juazeiro para a capital do país

O nome da cearense foi escolhido pelo pai, Cícero José dos Santos, sargento da Polícia Militar já falecido. No México, ele conheceu uma exímia dançarina chamada Cevilha e decidiu que assim batizaria a filha. “Ela nasceu em dia de Corpus Christi. Eu queria que o nome fosse Cristiana, mas ele já tinha escolhido muitos anos antes”, lembra Maria de Fátima Moreira dos Santos, 64, mãe de Cevilha.

Aos 18 anos, quando morava com os pais, ainda em Juazeiro do Norte (CE), Cevilha ficou grávida pela primeira vez. O relacionamento com o pai da criança foi breve e, para sustentar a filha, ela buscou emprego em uma fábrica de castanhas-de-caju.

Pouco depois, uma conhecida da família a convidou para vir a Brasília e trabalhar como empregada doméstica. Fátima não queria a mudança, mas o pai a encorajou: “Vá, minha filha, mas saiba que, se não der certo, você tem alguém que pode te buscar”. Cevilha deixou a bebê, de 1 ano, com os avós.

Quando chegou ao Distrito Federal, aos 19 anos, no início dos anos 1990, a moeda ainda era o Cruzeiro. Mais da metade do salário, ela mandava de volta para o Ceará. Fátima conta que a filha trabalhava dia e noite. “Às vezes, depois do expediente, pedia para lavar carros nas garagens dos prédios do Plano Piloto.”

A vida financeira de Cevilha não foi estável, a sentimental tampouco. Ao longo de seus 45 anos, ela colecionou desencontros. E agressões. De acordo com a mãe, Macsuel não foi o único homem violento com o qual a filha se relacionou.

No fim dos anos 2000, a vida conjugal com o então marido – pai de seus três filhos mais novos – estava tão deteriorada que a mãe dela precisou vir ao DF para buscar os netos. Segundo Fátima, ele batia na filha com frequência, e em uma das brigas Cevilha teria se defendido espetando uma faca de mesa no companheiro. “Ele deu um murro muito forte nela. O olho ficou preto, quase estufou para fora”, lembra.

Na audiência de custódia, Cevilha não negou a agressão ao parceiro, mas mostrou para a juíza o olho, o pescoço e as costelas, feridos “de peia”. Foi absolvida, e os três filhos mais novos foram morar com a avó no Ceará, onde viveram por cerca de dois anos até a mãe se restabelecer. Fátima defende: diz que boa parte das brigas conjugais acontecia porque Cevilha tentava proteger os filhos. “Ela era amorosa, dava a vida por eles. Criar quatro crianças em Brasília, uma selva de pedras, era duro.”

Rapto de Valentina

Em 2017, quando raptou Valentina, de apenas 3 meses, a cearense vivia com um homem chamado Neilson.

À polícia, nos depoimentos iniciais, disse que enganou Arlete, a mãe da criança, porque queria satisfazer o então companheiro, que não tinha filhos.
Na delegacia, afirmou que havia sofrido um aborto espontâneo e não tinha contado para ele. Estava mentindo, pois já havia feito cirurgia de laqueadura.

O advogado que a defendeu no episódio, Gilson dos Santos, lembra que os relatos de Cevilha eram desconexos. Por vezes, afirmava ter planejado o rapto da criança, atraindo a mãe da bebê com uma falsa promessa de emprego. Em outros momentos delirava, acreditava que a menina raptada era dela. Durante o processo, o exame psiquiátrico realizado não comprovou transtorno.

“A gente achava que Cevilha tinha um distúrbio, porque vivia aquilo como se fosse real. Subtraiu a criança, mas pensava que era dela, que precisava cuidar. Tanto que, depois do rapto, levou a bebê ao hospital.”

Gilson dos Santos, advogado de Cevilha

À defesa, Cevilha justificava ter roubado a menina porque Arlete era pobre e não teria condições de criá-la. Projetava, de certa maneira, as vivências de desamparo pelas quais passou durante a criação dos próprios filhos.

Pelo rapto de Valentina, Cevilha foi condenada a 2 anos e 6 meses de prisão. O crime não foi tratado como sequestro, mas sim subtração de incapaz, pois ela não manteve a criança em cárcere nem exigiu resgate. A cearense saiu da cadeia em abril de 2018, após cumprir um sexto da pena e ter apresentado bom comportamento.

O rapto de Valentina

Posto de saúde Sobradinho II

Em 26 de junho de 2017, Cevilha conhece Arlete em um posto de saúde e identifica-se como assistente social. A cearense diz que tem roupas para doar à bebê, pega o contato da mãe da criança e promete um emprego a ela.

Conic

Três dias depois, Cevilha acompanha Arlete para fazer exames admissionais em uma clínica no Conic, com a falsa promessa de uma vaga de emprego. Ao entrar na sala para a consulta, Arlete deixa a bebê com Cevilha, que foge do local por volta de 10h50.

Asa sul

Cevilha vai até a Estação de Metrô da 114 Sul. A cearense pede a um taxista que a leve para um hospital em Planaltina de Goiás.

Planaltina de Goiás

Depois de sair do centro de saúde, Cevilha pega outro táxi, para Planaltina (DF).

Entre Planaltinas

A polícia recebe a informação de que ela estaria com a bebê em Planaltina de Goiás, e inicia buscas na cidade. A PM liga para o motorista que estava com Cevilha e pede para ele retornar ao ponto de táxi. Quando o taxista tenta mudar o caminho, Cevilha ameaça machucar a criança caso a viagem seja interrompida.

Prisão

Por volta das 17h, o táxi é localizado, a polícia para o veículo, e Cevilha é presa.

Ciops em Planaltina

No início da noite, Arlete é levada até o Centro Integrado de Operações de Segurança (Ciops) em Planaltina, onde reencontra Valentina.

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Sonho romântico, realidade de agressões

Ao deixar a prisão, Cevilha queria recomeçar a vida. Fátima, que se comunicava via WhatsApp com a filha, lembra que ela enviava fotos para mostrar sua nova aparência, mais bem-cuidada e jovem do que parecia na época da prisão. Estava orgulhosa: “Olha, mãe, como o meu cabelo está bonito”, dizia.

O relacionamento com Macsuel começou logo depois que ela saiu da cadeia. Ele trabalhava como padeiro e não possuía antecedentes criminais. A dependência financeira de Cevilha em relação ao companheiro era grande. Os filhos dela desaprovavam a relação e não viviam com os dois. Para Fátima, ela contou que o novo namorado a espancava, e chegou a mandar fotos das marcas das agressões sofridas. “Eu gosto dele, mas ele não gosta de mim, mãe”, disse.

Se na intimidade as agressões eram recorrentes, nas redes sociais Cevilha mostrava uma versão cor-de-rosa do relacionamento. Publicava fotos em que aparecia sorridente ao lado do parceiro e fazia declarações de amor. Em 17 de janeiro de 2019, cerca de dois meses antes de ser assassinada, escreveu em uma imagem na qual aparecem juntos: “Nada nem ninguém separa aquilo que Deus uniu. Nós nos amamos”.

Crédito: Arquivo Pessoal
Nas redes sociais, Cevilha apresentava uma versão cor-de-rosa do relacionamento. Para a mãe, mandava fotos de marcas de agressões sofridas

Trágico Carnaval

Dois dias antes de ser assassinada, Cevilha enviou para a mãe uma das fotos felizes ao lado de Macsuel. Ambos estão sorridentes e ela segura uma lata de cerveja na mão. Logo depois, em outra mensagem, disse que a aparente felicidade era “tudo mentira”. Enquanto parte dos brasilienses curtia os blocos de rua, ela sofria abusos dentro de casa. “Agora, no Carnaval, levei uma surra, não estou conseguindo trabalhar”, contou.

A morte chegou em um domingo, 10 de março de 2019. Cevilha foi encontrada pela polícia com uma perfuração de faca na região do peito. Havia sangue saindo da boca e das narinas. Macsuel já tinha fugido. Encerrava-se ali a trajetória da mulher que tinha nome de bailarina, veio para Brasília em busca de uma vida melhor, pariu cinco filhos e ganhou fama pelo rapto de uma criança.

Crédito: Eric Zambon/Especial para o Metrópoles
Macsuel Santos matou Cevilha em um quarto de fundos de Sobradinho, ela havia se mudado para o endereço um dia antes

A cearense morreu sem realizar um plano que gestava com carinho: queria ir a Juazeiro do Norte, rever a família e conhecer o neto, de 10 anos, filho de sua primogênita

A mãe, Fátima, não pôde participar do enterro e agora passa dias e noites atormentada com perguntas que não terão respostas:

“Por que não fui buscá-la?”,

“Será que ela teria vindo?”,

“Teria sido diferente?”.

Amanda Cieglinski

Jornalista graduada pela Universidade de Brasília (UnB), passou pelas redações do Correio Braziliense, Agência Brasil e TV Brasil. Foi editora-chefe da Agência Brasil e coordenadora do portal da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). É jornalista Amiga da Criança, honraria concedida pela ANDI, e vencedora do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Direitos Humanos. Também venceu os prêmios de jornalismo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) por coberturas especiais na área de educação e cidadania. Colaborou com as revistas Educação, Ensino Superior e Escola Pública. É membro do Comitê Editorial da Associação dos Jornalistas de Educação (Jeduca).

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia um
projeto editorial
para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (17/05/2019), 5.623 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatarem abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 11 feminicídios. Segundo a polícia, apenas uma pequena parte das mulheres que vivem situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano,
o tema da violência contra a mulher
para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

Diretora-Executiva
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