Chacina de Campinas: O maior feminicídio em massa da história recente do Brasil
Os tiros de Sidnei queriam silenciar mulheres que ousaram ter voz. O assassinato de três gerações de uma mesma família engatilhado pelo ódio ao sexo feminino é um sinal de que ainda hoje vivemos sob o manto de uma sociedade machista
Kelly Almeida & Michael Melo (Enviados especiais) Leilane Menezes & Rafaela Lima (De Brasília) 08/01 5:30
Maria da Penha não viveu para ver o maior feminicídio em massa da história recente do Brasil. Tampouco imaginou ter sua filha, irmã e sobrinhas como personagens desse enredo marcado pelo ódio às mulheres. Ela carregava um nome simbólico, era homônima daquela que se tornou um marco da luta pelo fim da violência doméstica no Brasil e virou sinônimo de lei.
Maria da Penha Filier era a mãe de Isamara Filier, 41 anos, assassinada pelo ex-marido, o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, na noite de réveillon. Ele pulou o muro da casa onde a família celebrava o ano-novo e invadiu a festa atirando. Matou o próprio filho, João Victor Filier de Araújo, 8 anos, e outras 10 pessoas – 9 mulheres no total – que compartilhavam laços de sangue.
A ex-sogra de Sidnei faleceu 10 meses antes da chacina de Campinas. Também estava na lista dos que seriam vitimados por ele, que planejava o massacre havia muito tempo. Precisou morrer primeiro para escapar.
Sidnei registrou sua raiva pelas mulheres da família Filier em uma carta e em áudios. Referia-se às vítimas como “vadias” e “vagabundas”. Dedicou trechos especialmente odiosos à Maria da Penha, a ex-sogra, a quem chamava de “vadia da Penha”. O assassino escreveu que gostaria de ser enterrado de cabeça para baixo para “ir pro inferno buscar a velha vadia.”
Querendo atingir a
ex-mulher, ele matou mais de uma dezena de pessoas. Em termos quantitativos, é um crime sem precedentes.Lourdes Maria Bandeirasocióloga, professora da UnB e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher.
O assassino ressentia-se do apoio dado a Isamara pela família dela durante o processo judicial em que os dois disputavam a guarda de João Victor. A mãe, tias e primas de Isamara formaram ao redor dela uma rede de proteção diante dos abusos de Sidnei, que não aceitava a separação.
A ex-mulher chegou a registrar cinco boletins de ocorrência por ameaça, violência doméstica e agressão. As parentes testemunharam a favor de Isamara quando ela acusou o ex-marido de abusar sexualmente do filho. Na sentença do caso, o juiz afirmou não ter provas cabais do abuso, mas determinou visitas monitoradas do pai a João Victor a cada 15 dias. Sidnei demonstrou inconformismo com a situação no bilhete que deixou.
Quando atirou na direção das mulheres da família Filier, o assassino quis exterminar a ligação entre elas. Entrou na casa da prima de Isamara, Liliane Ferreira Donato, onde o grupo estava reunido, na Vila Proost de Souza, e caçou um a um de seus alvos. Abriu fogo contra elas e só não executou Aparecida Maria de Oliveira, tia de Isamara, que estava com a neta bebê no colo. Disse que Aparecida “era de boa”, mas não poupou a filha dela e mãe da criança, Carolina de Oliveira Batista, 26 anos.
O caso destruiu famílias, deixou órfãs gerações diferentes e chocou o país. No bairro de classe média, considerado calmo, vizinhos agora trancam-se no silêncio. A casa onde o assassinato em massa ocorreu tem fachada de tijolinho marrom e também um banco branco tipo de praça no quintal, convite ao aconchego. Na entrada, a única árvore da rua, símbolo de vida, plantada na porta. Ali, conhecidos e gente que jamais havia visto as vítimas deixaram flores brancas e velas como forma de homenageá-las.
O muro da casa tem cerca de dois metros de altura. Nem sempre foi assim. Ele era menor, mas a família o reformou. Queria sentir-se segura no espaço mais inviolável de todos, o lar. Apenas precaução, afinal, até então não havia motivos para se preocuparem com a insegurança. Não há queixas de violência por ali. A maioria dos moradores são pessoas mais velhas que estão naquele lugar desde muito tempo. Elas se conhecem pelo nome e andam pela rua cumprimentando-se.
Antes daquela noite, o endereço da família Filier havia sido palco de encontros felizes, como relatam vizinhos. Há 19 anos, Antônia Costa Lopes, 76 anos, divide muro com a residência onde a tragédia ocorreu. Na noite de réveillon, ela estava em outro bairro com parentes. Só ficou sabendo da chacina quando voltou, já na manhã do dia 1º: “Não consigo entender isso. Era uma família tão boa. As mulheres eram muito unidas. Estavam sempre juntas. Agora, acabou tudo.”
Muitos conheciam Sidnei dali mesmo. A família dele teve um bar por muitos anos a duas casas de onde ocorreu a chacina. Eles separavam o terreno entre o comércio e a residência. Deixaram o lugar depois que uma construtora comprou o espaço. Hoje, o lote onde Sidnei e a família viveram se transformou em uma área verde de convivência para os moradores de um grande edifício.
Quem mora perto evita falar sobre a noite em que todos confundiram tiros de uma pistola 9 milímetros com fogos de artifício para comemorar a virada de ano. Os que aceitam conversar com a imprensa pedem reserva sobre suas identidades. Apesar do autor da chacina ter se matado, eles continuam com medo, mas nem sabem do quê. Ali na Rua Pompílio Morandi, onde fica a casa que virou cenário da chacina, os moradores aprendem a conviver com uma nova vizinha: a certeza de que a vida é frágil e o ser humano pode ser cruel.
No Brasil, ser mulher é fatal
O caso recente de feminicídio em Campinas choca pelo número de vítimas simultâneas. A cultura machista, implacável, não dá trégua um dia sequer. A cada hora e meia uma mulher morre pelas mãos de um homem no Brasil. É o que mostram levantamentos da organização Agência Patrícia Galvão, uma das maiores referências no país sobre pesquisa e políticas do universo feminino, incluindo empoderamento, violência doméstica e feminicídio. A taxa coloca o país como o 5º com maior índice de assassinatos de mulheres no mundo.
Para especialistas, todos os casos de feminicídio partem de uma mesma condição: a misoginia, ou o ódio às mulheres tendo como única justificativa a questão de gênero. Mesmo quando a relação entre vítima e assassino não é amorosa. Como em Campinas. Sidnei não só matou a ex-mulher, como estendeu o crime a várias outras familiares dela, com quem não tinha qualquer tipo de relacionamento afetivo. Ali, ao que tudo indica, a motivação não era ciúmes, desejo, amor ou uma paixão não correspondida. Era um ódio incontrolável. O ódio de ela exercer seu poder de escolha e de lutar por suas convicções e direitos na Justiça.
A misoginia não necessariamente é sinônimo de feminicídio, mas fundamenta a atitude. É importante abstrair um pouco a relação do casal, que indica algo violento e representa um quadro específico, e pensar em algo mais amplo, na categoria do ódio. Jacqueline Pitanguycoordenadora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia)
No caso de Isamara e Sidnei, o ódio do assassino teve como gatilho a independência da ex-mulher e o recomeço de uma vida sem ele. A “perda” de uma relação amorosa e a exclusão da vida familiar foram, nesse caso, o combustível que alimentou a raiva do criminoso.
“A outra questão é a separação do filho homem. Talvez, se fosse uma menina, ele não teria tido essa mesma atitude. Mas como é uma criança do sexo masculino, é um similar, é um igual”, complementa Lourdes Maria Bandeira, professora da Universidade de Brasília e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem). Em seus depoimentos gravados, o assassino vomita desprezo pelo gênero feminino. Embora tente fazer algumas exclusões, como a atual namorada, fica claro seu comportamento machista.
Como acabar com esse tipo de crime? Para Marisa Sanematsu, diretora de conteúdos do Instituto Patrícia Galvão, na maioria dos casos de feminicídio as mortes poderiam ter sido evitadas, pois a violência doméstica não é só física. “Não espere chegar até a agressão, procure buscar ajuda ainda na fase do assédio moral e psicológico”, sugere a especialista.
Marisa ainda destaca que a responsabilidade não é da mulher. “Como muitas relutam em prosseguir com a denúncia, temos que cobrar políticas públicas e serviços de qualidade no país inteiro para que se elas sintam seguras e protegidas”, conclui.
Outro ponto-chave destacado pelas estudiosas é a educação escolar: o machismo deveria ser combatido nas instituições de ensino desde o maternal. “Essa cultura se perpetua porque vivemos numa sociedade conservadora para a qual violência doméstica, por exemplo, ainda é um assunto tratado no ambiente privado”, analisa Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora na área de Direitos Humanos e Gênero. Para as especialistas, só se quebra o ciclo da violência se esses temas forem trabalhados massiva e periodicamente, do mesmo jeito que se ensina a ler, a escrever e a contar.
Esse assassino não é doido, ele é produto de uma ordem patriarcal que considera as mulheres propriedades particulares Débora Dinizprofessora da Universidade de Brasília e pesquisadora na área de Direitos Humanos e Gênero
Antes da chacina em São Paulo, outros casos de feminicídio alertaram para o fato de que o Brasil precisa proteger as mulheres. Um estupro coletivo ocorrido no município de Castelo do Piauí, perto de Teresina, em 27 de maio de 2015, envolveu quatro adolescentes com idades entre 15 e 17 anos.
Elas foram estupradas, espancadas e jogadas de um penhasco com mais de 10 metros de altura. Uma das meninas morreu na hora. Das que sobreviveram, uma teve traumatismo craniano, perdeu parte da orelha e teve hemorragia; outra sofreu afundamento do rosto e a terceira apresentou inúmeras lesões na cabeça. A Justiça condenou no ano passado três adolescentes por participação nos crimes. A medida socioeducativa que eles vão cumprir dura três anos.
Em Goiânia, 15 mulheres perderam a vida pelas mãos do serial killer Tiago Henrique Gomes da Rocha, durante vários meses. A primeira vítima dele foi uma adolescente de 15 anos executada em dezembro de 2013. Em cima de uma moto, ele continuou matando mulheres jovens com tiros na cabeça. A fúria de Tiago, porém, não se dirigia exclusivamente ao sexo feminino.
Além delas, Tiago assassinou moradores de rua e homossexuais. No total, foram 39 execuções. Ele terminou preso em outubro de 2014 e teria praticado os homicídios “por prazer”, segundo investigadores do caso. O júri popular de Goiânia julga os episódios individualmente.
Apesar dos casos de feminicídio serem recorrentes no país, na história recente do país nenhum crime até então registrado havia vitimado tantas mulheres de uma só vez como na chacina de Campinas. O caso é assim emblemático não apenas pela quantidade de vítimas, mas também pelo fato de quase ter dizimado uma família inteira.
Ao mesmo tempo que chocou o Brasil, o feminicídio em massa de Campinas também despertou reações sombrias na internet. No papel de justiceiros, homens e mulheres encheram as caixas de comentários da internet de perguntas e julgamentos. De repente, a injustiça pesava não apenas sobre Isamara Filier, ex-mulher de Araújo, o filho do casal, de 8 anos, e as outras 11 pessoas assassinadas na tragédia. Na justiça da internet, o atirador passou de algoz a vítima.
“Ele não era louco, não era bandido. Era um cara que se sentiu injustiçado”, defendeu um deles. “O cara foi macho!”, endossou outro. Os comentários vão daí para pior. “A internet permite que as pessoas digam coisas que elas nunca diriam ao vivo. Abrindo espaço para práticas espantosas de masculinidade”, avaliou Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora na área de Direitos Humanos e Gênero.
Ao Metrópoles, Débora Diniz e Iara Lobo, coordenadora de Brasília da Casa da Mulher Brasileira, avaliaram o teor de alguns comentários.
É muito triste ver esses comentários. Há uma onda de desinformação e intolerância no país. A sociedade não consegue enxergar o feminicídio. Na carta deixada pelo homem e nos muitos comentários feitos pelos leitores nas matérias sobre o caso são evidentes os traços de ódio contra a mulher. Cada vez mais, precisamos aprofundar esse debate, conversar com os nossos filhos e lutar contra os monstros que estão dentro da gente. Iara Lobocoordenadora do Governo de Brasília da Casa da Mulher Brasileira
Os comentários de mulheres com esse teor provam que nós, sozinhas, não somos capazes de mudar essas práticas machistas. A desigualdade de gênero nos leva sempre a perguntar o que a vítima fez e não questionar a atitude do agressor ou assassino. Débora Dinizantropóloga, professora da UnB e pesquisadora de gênero
Uma tomada dessa discussão é a de que tudo que acontece há mais de uma versão. É a lógica policial aplicada na esfera pública. Essa pergunta, de ‘por que ele fez’, sequer merece ser feita, porque o que ele fez foi tão abominável que não interessa o motivo. Essa lógica é a que leva as pessoas a se comportarem como policiais, em busca da verdade. Essa família tem sobreviventes. A pergunta a ser feita é: como eu vou respeitar o luto deles? Débora Dinizantropóloga, professora da UnB e pesquisadora de gênero
sonhos interrompidos
As mulheres da família Filier viviam fases diferentes da vida. A ação de Sidnei interrompeu recomeços, planos e antecipou finais. Aos 85 anos, Luiza Maia Ferreira escrevia um último capítulo sereno da sua história. A idosa estava na sala quando o assassino invadiu a casa da neta disparando. Ela chegou a ser socorrida, mas no hospital não resistiu. Com Luzia, morreu o legado de uma matriarca.
Reprodução/FacebookIsamara Filier e João Victor
Mãe de uma família de seis filhos, a mulher viu os netos crescerem e paparicava os bisnetos, entre eles João Victor, assassinado pelo pai na chacina. Outros dois, Thiago e Gabriel, estão vivos porque conseguiram fugir da mira de Sidnei ao se esconderem nos banheiros da casa.
A matriarca era avó de Isamara, a vítima central desta chacina. Recentemente, a moça havia largado o emprego para investir em gastronomia. Seu plano era trabalhar com salgados, bolos e doces.
Isamara perdeu a mãe Maria da Penha em fevereiro do ano passado. Desde então, contava com o apoio das mulheres de sua família para enfrentar as dificuldades do dia a dia e o processo judicial que travava na Justiça pela guarda do filho. Era ela quem acompanhava as visitas monitoradas que o ex-marido fazia a João Victor a cada 15 dias.
Sidnei não aceitava o apoio que Isamara recebia de Ana Luiza Ferreira, 52 anos. Demonstrou em cartas e áudios a indignação que sentia pela tia da ex-mulher, por ela ter prestado depoimentos contra ele na Justiça.
Ao matá-la, encerrou o momento mais feliz que a mulher vivia. Ana Luiza tratava-se de vários problemas de saúde. Fez uma ponte de safena no coração, era paciente de hemodiálise três vezes na semana e recebeu um rim por transplante. Sobreviveu bravamente. E recuperava-se ao lado do marido, com quem fazia planos para viver uma rotina longe dos hospitais. Mas não escapou da fúria de Sidnei.
A filha de Ana Luiza também teve os sonhos interrompidos com a chacina. Larissa Ferreira de Almeida, 24 anos, havia se formado recentemente no curso técnico de Gestão da Qualidade. Pegaria o diploma no fim do mês e não tinha pretensão de parar por aí. Apaixonada por cachorros, não faltava às aulas de jiu-jitsu e fazia questão de estar com a família. Tinha a meta de um dia tornar-se policial. Com a conclusão do curso, planejava dedicar-se aos estudos.
Reprodução/FacebookLarissa Ferreira de Almeida
Liliane Ferreira Donato, 44 anos, era a dona da casa onde o crime ocorreu. Fez questão de reunir a família para celebrar o ano-novo. Morreu na fase em que comemorava a formatura do filho no ensino médio. O garoto, Thiago Régis, escapou da morte ao se esconder no banheiro. Pelas redes sociais, escreveu uma mensagem emocionante para a mãe, lembrando dela em vida “feliz, orgulhosa, forte, prestativa, maravilhosa”. O adolescente contou no texto que, no dia do crime, entregou uma rosa à mãe, para que eles relembrassem os melhores momentos da vida.
Estávamos em um dos momentos mais mágicos da nossa vida, você orgulhosa de ter me formado, de me ver na faculdade, estávamos com inúmeros planos, e infelizmente você não vai estar comigo de corpo e vida pra ver eu realizar tudo que planejávamos. Agora é mais que isso, você vai realizar junto comigo no meu coração, fazendo de tudo aí de onde você está pra eu conseguir tudo o que planejamos. thiago regisFilho de Liliane Ferreira Donato e sobrevivente da chacina
Os disparos de Sidnei também abreviaram a história de Alessandra Ferreira de Freitas, 40 anos. Irmã de Liliane, ela morreu no local, assim como a mãe delas, Antônia Dalva Ferreira de Freitas, 62. O marido de Alessandra, Admilson Veríssimo de Moura, levou um tiro que atravessou da cintura até sair na perna, mas se recupera bem. O filho, Gabriel Ferreira, sobreviveu ao se esconder de Sidnei.
Mãe de uma bebê de poucos três meses, Carolina de Oliveira Batista, 26 anos, morreu ainda na casa. A mãe dela, Maria Aparecida de Oliveira, e a neném, foram as únicas mulheres da família que sobreviveram. Assim que Aparecida conseguiu fugir, pediu ajuda em uma igreja do outro lado da rua.
Testemunhas contam que ela corria de um lado para o outro com a netinha recém-nascida, desesperada, falando sobre o que havia acabado de ocorrer. Ficou em choque. A bebê só se acalmou quando uma vizinha, que tem filho pequeno, deu de mamar e a menina dormiu.
Neste momento, segundo testemunhas, Maria Aparecida direcionou todo o desespero para a perda da filha, do marido e dos outros parentes. A chacina tirou a vida ainda do casal Paulo de Almeida, 61, e Abadia Ferreira, 56 anos. Antônia Ferreira, 52, também morreu. Ela era a mãe da anfitriã Liliane e irmã de Abadia.
Reprodução/FacebookAbadia Ferreira e Paulo de Almeida
A mãe de coração partido
Sidnei assassinou 12 pessoas, se matou e partiu o coração de sua mãe, que ainda convalescia de uma cirurgia cardíaca realizada poucos dias antes da chacina. Maria dos Anjos Moreira Araújo foi informada da tragédia sob cuidados médicos.
Parentes tiveram de levá-la a um hospital para dar a notícia. Contaram aos poucos. Maria não acreditou. Chorou. Foi medicada. Ao voltar para casa, disse a vizinhos que sofre por uma perda, mas sabe que, do lado de lá, da família Filier, são 12 vidas por quem familiares e amigos lamentam.
Com hábitos simples, os pais de Sidnei deixaram Campinas para morar em uma casa na beira do rio Camanducaia, em Jaguariúna, município de São Paulo com cerca de 55 mil habitantes. Construíram a casa suspensa para não perderem o legado da família, já que toda vez que a chuva chega o rio sobe e inunda parte da área rural do município. Lá, Maria dos Anjos e seu marido, Arnaldo Antônio de Araújo, criam galinhas, convivem com vizinhos e procuram viver em paz.
Eles não conseguem entender, nem explicar o que houve com o primogênito. Os vizinhos também se chocaram com o ataque de fúria. Aparentemente, tinham a impressão de que Sidnei era um cidadão pacato. Foi sepultado discretamente, na presença de pouquíssimas pessoas da família. Desde o episódio, Maria dos Anjos e Arnaldo Antônio têm ficado aos cuidados do filho mais novo. Em entrevistas à imprensa durante o enterro de Sidnei, Arnaldo disse que o filho era tímido, retraído, não bebia, não fumava e nunca havia se envolvido em crimes.
Antes da chacina
Os últimos dias de Sidnei Ramis de Araújo foram de interação com amigos do condomínio onde morava e no bar onde passava diariamente para comer churrasquinho e tomar cerveja. Ele sempre pedia uma Brahma sem álcool. Na quinta-feira que antecedeu a chacina, dia 29 de dezembro de 2016, ele andou de bicicleta entre os prédios do residencial localizado no Jardim Miranda, um bairro de classe média de Campinas.
No dia seguinte, ficou na piscina lendo e brincando com filhos dos vizinhos durante todo o dia. Já no sábado, quando assassinou 12 pessoas e se matou, ele passou em um bar perto de casa onde frequentava havia cerca de cinco anos. Conversou normalmente com os donos do local, se mostrou tranquilo e não deu qualquer sinal de que cometeria a chacina mais tarde. Foi embora por volta das 21h30 dizendo que ficaria em casa.
Cerca de duas horas depois, vizinhos ouviram o assassino batendo a porta de casa e saindo, deixando tudo destrancado. Ele se despediu dos funcionários do condomínio e disse que iria a uma festa. Só na manhã seguinte todos descobriram que ele protagonizou um dos crimes mais chocantes de Campinas.
Parentes e amigos do técnico de laboratório de pesquisa dizem nunca ter desconfiado que ele pudesse cometer o crime. Vizinho de porta de Sidnei, Bruno Henrique Franco, 22 anos, não percebeu comportamento estranho do assassino. “Ele era inteligente, simpático e calmo até demais”, resume.
A última vez que os dois se viram foi no dia de Natal. Antes disso, Bruno foi à casa de Sidnei ajudá-lo a baixar músicas em um pen-drive e percebeu a raiva contra a ex-mulher. “Ele ia dar um som para o filho e o menino tinha pedido umas músicas. Fui ajudar e vi uma pasta com o nome de ‘vadia e vagabunda’. Achei que eu tivesse baixado algo errado, aí ele falou que não era para eu apagar porque eram as gravações que ele fazia sobre a ex-mulher. Mas não continuou o assunto”, lembra o rapaz.
Sidnei não recebia visitas em casa. Segundo os vizinhos, o filho só foi visto no residencial quando pequeno, época em que os pais eram casados e moravam juntos no condomínio.
Apenas a namorada de Sidnei era vista por lá. Mas, recentemente, nem ela estava frequentando o apartamento. Na segunda-feira (2/1), uma equipe com cerca de sete policiais civis foi até a casa do técnico de laboratório e recolheu computador, documentos, mídias e papéis. Os agentes estavam acompanhados de uma prima dele. O material será periciado e analisado pela Polícia Civil de São Paulo. A casa e os bens, Sidnei deixou gravado que gostaria de deixar para a família.
A comoção
Os três dias de luto decretados pela prefeitura de Campinas em decorrência da chacina não foram suficientes para a população se recuperar daquela que eles chamam a “maior tragédia vivida por aqui”. A casa onde Sidnei Ramis matou a ex-mulher, o filho de 8 anos e outras 10 pessoas e se matou em seguida permanece trancada.
Os poucos familiares restantes estiveram na residência em 1º de janeiro, dia seguinte à chacina, para lavar o imóvel. Os policiais que participam das investigações explicaram que se o sangue permanecesse no local, o cheiro forte impediria que qualquer pessoa entrasse de volta na residência.
Alguns vizinhos ajudaram a lavar os cômodos. “Dei apoio com tudo o que eles precisaram e darei sempre daqui em diante, mas não consegui entrar lá. Daqui de fora, víamos a água vermelha de sangue escorrendo na calçada. Jamais esquecerei o que vivemos e o que presenciamos naquele dia”, contou um dos moradores, que ajudou os sobreviventes da tragédia familiar, mas prefere não ter o nome divulgado.
Apesar de estar vazia, a casa 149 da Rua Pompílio Morandi na Vila Prost de Souza atrai a curiosidade dos moradores. Sob a amoreira da calçada, foram colocadas rosas brancas. As pessoas também deixaram lá suas orações.
O clima de luto em bairros ao redor é o mesmo. Não há quem não saiba ou não se comova com a dor do próximo. “A gente imagina o sofrimento de toda a família. Ele tirou a vida de 13, mas matou muitas outras pessoas com a dor que estão sentindo e vão sentir daqui para frente”, comentou um motorista ao passar pelo local.
De Maria para Maria
Em sua ira, Sidnei Ramis de Araújo ofendeu o maior símbolo nacional de luta contra a violência doméstica, Maria da Penha Fernandes. Ele sentia-se injustiçado pela lei que leva o nome da militante dos direitos femininos.
Ao se rebelar contra o marido torturador, a farmacêutica bioquímica Maria da Penha, nascida no Ceará, motivou a criação da regra que pune especialmente quem agride a mulher, companheira ou namorada.
Em uma noite de 1983, ela dormia quando levou um tiro do então marido, Marco Antônio Heredia Viveros. Maria da Penha ficou paraplégica e escreveu um livro de repercussão internacional para contar sua história. O Brasil, então, foi pressionado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos a elaborar a legislação que protege as mulheres.
Atualmente, mais de 10 anos após a criação da Lei Federal nº 11.340 de 2006, a Lei Maria da Penha, outras tantas mulheres ainda sofrem com agressões e feminicídios.
A memória de outra Maria da Penha, a Filier, foi violada pelas palavras e ações do homem que odiava mulheres. Ele não a poupou em sua fúria e quis matá-la pela segunda vez, mas Maria da Penha viverá em atos de resistência daquelas que desafiam a sociedade ao não se calar.
Maria da Penha Fernandes continua dando voz a mulheres oprimidas. Selecionamos declarações da ativista, no vídeo abaixo interpretada pela atriz Gabriela Correia, para contrapor-se às duras palavras gravadas por Sidnei, que ferem pessoalmente cada mulher.