A biblioteca da Pandora: processos na Justiça somam mais de 200 mil folhas de papel
A palavra democracia vem do grego: demo significa povo e kracia, governo. Esse conceito, que traduz o sistema político adotado em centenas de países atualmente, teve profundo impacto no mundo, desde a antiguidade. Embora cada nação apresente suas peculiaridades, há consenso em relação a algumas questões que envolvem o tema.
Um desses pontos em comum é o entendimento de que nenhuma democracia sólida sobrevive sem instituições fortes, como ministérios públicos e órgãos de Justiça. Há outro elemento fundamental nessa equação, que opera como uma espécie de elo entre kracia e demo: a imprensa. Em inúmeras situações, os escândalos só ganham as devidas proporções após a publicação na mídia. Com a Operação Caixa de Pandora, responsável pelo prejuízo de R$ 2,8 bilhões aos cofres públicos do Distrito Federal, não foi diferente.
No fim de 2009, veículos de comunicação mobilizaram dezenas de profissionais quando as falcatruas cometidas no governo de José Roberto Arruda foram descobertas. Um deles é Matheus Leitão, colunista do G1. Na época, ele estava no portal iG e foi o primeiro jornalista a divulgar a história – furo, no jargão jornalístico. Ao Metrópoles, o repórter fez uma confidência e revelou como foi o processo de apuração.
Matheus já tinha ouvido falar dos rumores de gravações que comprometiam figuras importantes da República candanga e tentava conseguir as imagens. Enquanto não encontrava uma cópia, seguia perguntando para as fontes quem mais havia assistido ao vídeo.
“Uma delas, o falecido advogado e ex-presidente da Terracap Eri Varela, me contou dois pontos importantes: quem tinha a cópia do arquivo original em poder da Polícia Federal e o nome de um político que não teria por que mentir sobre os meandros do vídeo”, relembra o repórter. Ainda segundo Matheus, Eri o autorizou a revelar a ajuda ao longo da apuração, mas somente após sua morte, que ocorreu em um acidente de carro em abril deste ano.
Após Matheus Leitão ter acesso a uma cópia das gravações, o iG publicou a reportagem com o vídeo de Arruda recebendo dinheiro das mãos de Durval Barbosa. A bomba mobilizou as redações de Brasília.
A repórter do Metrópoles Manoela Alcântara lembra que 2009 foi um ano atípico para jornalistas que cobriam o cotidiano do Distrito Federal. “Em 29 de agosto, estourava o Crime da 113 Sul. Dois meses depois, os boatos dos vídeos de Durval Barbosa rondavam a Câmara Legislativa.”
“Fiquei com uma parte que pode parecer inglória, mas que rendeu várias capas de jornal: minha missão era ‘dormir’ em frente à Superintendência da Polícia Federal nos dias em que Arruda esteve preso. Dormir não é bem a palavra. Ficávamos no carro do jornal, eu e um fotógrafo. Havia revezamento entre os repórteres, mas o esquema era o mesmo”, ressalta Manoela, que cobriu o caso pelo Correio Braziliense.
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Pelo mesmo veículo, o repórter do Metrópoles Saulo Araújo participou da cobertura. “Num sábado à tarde, entre 16h e 17h, fiz uma das primeiras entrevistas exclusivas da minha carreira. Flávia Arruda, esposa de José Roberto Arruda, até então se mantinha calada. Naquele dia, para a minha surpresa, ela parou o carro e fez um desabafo. Disse que era a fase mais difícil da vida, falou um pouco de como o marido passara todos aqueles dias detido e chorou”, relembra.
Filipe Coutinho, que naquele ano era repórter da Folha de S.Paulo, faz o seguinte balanço da operação: “Olhando para trás, não há dúvidas de que a famosa videoteca da Caixa de Pandora deixou de ser um caso local e entrou na história das grandes operações e coberturas da imprensa. Eram inéditas, até para os padrões brasileiros, as sucessivas imagens de dinheiro vivo”.
“A Caixa de Pandora foi a combinação de uma montanha de documentos de apuração e horas e horas em plantões e acompanhamentos das sucessivas reviravoltas políticas. Era o prenúncio de um modelo que, agora com a Lava Jato, virou o ‘normal’ na imprensa e no país. A crise tornou-se um estado permanente”, acrescenta Coutinho, que hoje tem uma empresa na área de comunicação e estratégia.
Graças à atuação de repórteres, fotógrafos, editores, artistas, diagramadores, especialistas em tecnologia, motoristas e demais profissionais das redações, as investigações policiais e do Ministério Público que descobriram o esquema não ficaram restritas aos trâmites internos. E, 10 anos após o início do escândalo, a Pandora ainda repercute na imprensa, pois nenhum dos personagens envolvidos no caso foi preso e sequer houve um centavo de ressarcimento aos cofres públicos.
“A publicação da reportagem caiu como uma bomba”
Matheus Leitão
O ex-governador José Roberto Arruda era uma fonte leal de vários jornalistas em Brasília quando eu soube da existência do vídeo no qual ele recebia um maço de dinheiro. Respeitado pelos principais veículos, e por seus diretores de sucursais, sentia-se, de certa forma, blindado pelo prestígio político obtido com o trabalho na capital.
Arruda havia renascido de um revés na carreira que lhe custou um mandato de deputado, o que aumentava sua confiança, mas não sabia que, em janeiro de 2009, ex-aliados e inimigos organizavam um ataque fatal às suas ambições presidenciais.
Naquele mês, ao menos dois deles já haviam me descrito em detalhes o conteúdo do vídeo. A minutagem do momento mais importante, como estavam vestidos os personagens dos vídeos, até a cor dos móveis.
Os pormenores alimentavam o sentimento de que era verídica a informação bombástica da existência da gravação. Enquanto não conseguia uma cópia, seguia perguntando para as fontes quem mais havia assistido ao vídeo.
Uma delas, o falecido advogado e ex-presidente da Terracap Eri Varela, me contou dois pontos importantes: quem tinha a cópia do arquivo original em poder da Polícia Federal e o nome de um político que não teria por que mentir sobre os meandros do vídeo.
Eri me autorizou a revelar sua participação, mas somente após sua morte, que ocorreu em um acidente de carro em abril deste ano. A ida ao político indicado pelo ex-presidente da Terracap me convenceu finalmente de que a gravação seria o escândalo do ano.
Sentado numa mesa de um órgão público federal, o político ficou pálido quando o questionei sobre a existência das imagens. Mas não negou. Disse que havia visto e confirmou alguns detalhes que perguntei.
Após essa conversa, resolvi investir em marcar dezenas de encontros com o responsável por manter uma cópia do vídeo. Foram meses até que, numa certa manhã, recebi uma mensagem para aguardar pacientemente em uma lanchonete do Gilberto Salomão, Lago Sul, bairro nobre de Brasília.
Duas horas de espera até que um homem baixo e franzino passou rapidamente pela mesa, largou um CD e sumiu no meio das pessoas que circulavam pelo local.
Como sabia que poderia obter a gravação naquele dia, e tinha detalhes do que acontecia em cada frame, deixei um texto pronto na redação do iG, com o editor Tales Faria.
Minha ideia era assistir ao vídeo, checar se as informações estavam corretas e fazer o upload das imagens na nuvem para a redação em São Paulo publicar o texto e a gravação juntos.
Após conferir a íntegra do arquivo em um laptop dentro do carro, no estacionamento do Gilberto Salomão, e constatar que as fontes estavam corretas, subi as imagens.
Nunca esqueci a rapidez com que o sistema do iG fez o upload, em questão de segundos. Aliás, numa agilidade que ajudou na divulgação da informação, que me lembra o próprio Metrópoles.
A publicação da reportagem caiu como uma bomba na capital da República. Apesar de conhecer a identidade do responsável indireto pelo vídeo ter sido entregue a mim, não soube quem era o jovem franzino que deixou o CD em cima da mesa da lanchonete do centro comercial e gastronômico da cidade.
Quase oito anos mais tarde, fui abordado por esse mesmo rapaz no dia do lançamento do meu livro, Em Nome dos Pais, num shopping de Brasília. Ele me abraçou e revelou a sua identidade ao pé do ouvido.
Leia no último capítulo da série, na quarta-feira (04/12/2019), o legado que a Caixa de Pandora deixa para a política, a Justiça e a população do Distrito Federal.
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