Passava das 21h e, como em toda quinta-feira, a missa da libertação na Paróquia do Divino Espírito Santo – em Nova Colina, Sobradinho, se encaminhava para o fim. O encontro religioso daquela noite (25/04/2019) foi interrompido abruptamente pela notícia de uma tragédia. Cacinha, uma das integrantes da comunidade católica, havia sido atacada dentro de casa. O agressor, seu ex-marido, jogou ácido sulfúrico no rosto dela.

Amigos de Cácia Regina, que pouco antes rezavam para amenizar as agruras cotidianas, correram até um um bar ali perto, onde ela aguardava por socorro. Uma das vizinhas chegou a tempo de ver o rosto de Cacinha se desfazendo, deixando à mostra os ossos da face. Tufos de cabelo se desprendiam do couro cabeludo. Em pouco tempo, uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) a levou para o Hospital Regional da Asa Norte (Hran), referência no atendimento a vítimas de queimaduras no DF.

Quatorze dias após a tentativa de feminicídio (09/05/2019), Cácia Regina Pereira da Silva faleceu, no hospital, vítima de infecção generalizada. Aos 47 anos, deixou duas filhas: uma de 28 e outra de 14. O agressor, Júlio César dos Santos Villa Nova, 55, seu ex-marido, era pai de sua menina caçula. Ele se matou ainda na quinta-feira do ataque, depois de invadir a casa de Cácia, jogar ácido sulfúrico nela e tentar alvejá-la com quatro tiros. Naquela noite de terror, Villa Nova sentenciou: “Se você não for minha, não será de mais ninguém”.

A consultora de vendas e o vigilante foram casados por 15 anos e estavam separados havia 10. Aos olhos de familiares e conhecidos, pareciam ter construído uma relação baseada em respeito e harmonia, sempre zelando pelos cuidados com a filha que tiveram juntos. Apenas depois do crime, durante o período em que esteve internada no Hran, Cácia revelou à polícia a face violenta do ex-marido: ele não se conformava com a separação, tinha ciúmes dela e mantinha-se por perto com o intuito de controlá-la.

Divulgação
O Corpo de Bombeiros removeu o resíduo de ácido sulfúrico que ficou na casa da vítima. Também havia pele e cabelo de Cácia pelo chão
O Corpo de Bombeiros removeu o resíduo de ácido sulfúrico que ficou na casa da vítima. Também havia pele e cabelo de Cácia pelo chão

Com 30 anos de experiência no setor de queimados do Hran, o cirurgião plástico José Adorno conta que o caso de Cácia chamou atenção pela quantidade de substância química que o agressor usou para atacá-la. “O ácido não é um material comum de limpeza, que as pessoas lidem habitualmente ou tenham em casa. Muito menos em uma quantidade capaz de queimar 45% do corpo de uma pessoa. O ex-marido queria matá-la, desfigurá-la ou estigmatizá-la”. A equipe clínica faria um transplante de pele no rosto de Cácia, mas não houve tempo de iniciar o tratamento.

Apesar de não existirem estatísticas no Distrito Federal sobre a frequência com que o ácido é usado para atacar mulheres, a substância química está fortemente associada aos crimes de gênero devido ao poder corrosivo e a capacidade de desfigurar. A Acid Survivors Trust International, que luta para aumentar o controle da venda do produto, estima que pelo menos 1,5 mil pessoas sejam vítimas desse tipo de ataque todos os anos. Destas, 80% seriam mulheres e a maior parte teria menos de 25 anos.

Ataque

Após a trágica noite de quinta-feira, surgiram evidências de que a morte de Cácia foi planejada. Com uma cópia da chave, que havia feito escondido, e após ter certeza que a filha não estaria no local, o ex-vigilante entrou pela porta da frente da casa. O ácido sulfúrico que matou a ex-companheira teria sido adquirido especificamente para o ataque.

Ilustração - Metrópoles

Casamento e separação

Nascida em Porto Nacional (TO), Cácia veio para Brasília pequena, com os quatro irmãos mais velhos, o pai e a mãe. A família se instalou em Sobradinho e desde o início assistia à missa na Paróquia Nossa Senhora Imaculada Conceição, na Quadra 13, da região administrativa.

Parentes do assassino frequentavam a mesma igreja. Quando solteiro, Júlio César fez parte do grupo jovem do templo religioso. Ali, conheceu Cácia Regina e trocou votos de amor eterno no altar com ela. Considerados “pessoas de fé”, ao longo dos 15 anos de casamento, os dois sempre foram vistos no local.

Em 2009, a relação chegou ao fim. Ninguém soube dizer o motivo do término do relacionamento. A família da vítima, alegando proteger as filhas dela, preferiu não dar entrevistas. Com o divórcio, Cácia se mudou para uma casa que a mãe tinha em Nova Colina, bairro próximo a Sobradinho e, sem o ex-marido, se empenhou em trabalhar e criar a filha mais nova.

Pertinho do novo lar, estava a Capela do Divino Espírito Santo – uma comunidade ligada à igreja da Imaculada Conceição que foi transformada em paróquia autônoma há três anos. Cácia passou a assistir às missas ali. Após ser convidada pelo amigo Antônio Messias de Almeida Filho começou a fazer parte do grupo de orações. “Era uma pessoa muito boa e ótima colega de trabalho, dedicada e competente. Gostava muito de ajudar as pessoas”, lembra Messias, que a conheceu em uma revendedora de automóveis.

Segundo Messias, o feminicida era visto com frequência nas proximidades da casa de Cacinha, sempre que ia buscar ou deixar a filha do casal. O ex-colega de trabalho recorda ter encontrado o ex-marido de Cácia pelo menos uma vez na residência dela durante um dos encontros do grupo de orações. “Ele parecia uma pessoa tranquila, os dois se davam bem, ele até rezou com a gente”, lembra.

De acordo com a mulher de Messias, a cabeleireira Antônia Cardoso de Almeida, Cácia falava bem do ex-marido e dos parentes dele. “Ela não via maldade nas coisas, nas pessoas. Sempre se referiu a Villa Nova com respeito e até carinho. Do mesmo jeito era em relação à família de Júlio. Fazia questão que a filha tivesse uma boa imagem do pai”, destaca.

Alguns familiares de Cácia sabiam que Júlio César tinha ciúmes da ex-mulher. E também que, passados 10 anos da separação, ele ainda tentava reatar o casamento. No entanto, desconheciam o lado rude, violento e desrespeitoso do vigilante.

Preocupada em manter bom relacionamento com o pai de sua filha, Cácia nunca comentou sobre as ameaças sofridas, tampouco procurou a delegacia de polícia para pedir uma medida protetiva contra o ex-companheiro. O titular da 13ª Delegacia de Polícia (Sobradinho), Hudson Maldonado, afirma que ela jamais formalizou queixas criminais contra Villa Nova.

O policial crê que, por boa-fé, Cácia não percebeu o potencial destrutivo do ex-marido. “Era uma pessoa boa, achava que ele também era, que só a ameaçava da boca para fora. Ficava com pena, pensou no relacionamento dele com a filha e nunca o denunciou”, afirma.

Maldonado reforça que identificar o perigo e romper o silêncio é muito importante em situações de violência doméstica. “Não caiam no ‘cão que ladra não morde’. Morde, sim. São raros os casos em que os acusados não demonstram sentimentos de posse, ciúmes e agressividade antes de cometer o crime”, adverte.

Machismo e tragédias

Cácia Regina era alto-astral, bem-humorada e vaidosa. Além de cuidar dos cabelos, preocupava-se com o corpo e frequentava regularmente a academia. Durante os 10 anos em que esteve separada, não assumiu nenhum relacionamento para a família, mas teve alguns namoros. Ao delegado Hudson Maldonado, alguém afirmou que ela estava “conhecendo uma pessoa”, porém a informação não foi confirmada pela vítima.

O assassinato de Cácia contém os componentes clássicos da violência de gênero: o homem que despersonaliza a mulher, desvaloriza sua vontade, sua individualidade e seus desejos, além de não aceitar o fim do relacionamento, não saber lidar com a frustração provocada pela perda e enxergar a ex-parceira como uma propriedade – sobre a qual acredita ter, inclusive, o domínio de vida e morte.

“Ela era uma pessoa querida, trabalhadora, bonita e vaidosa. Ele, ciumento, agressivo, possessivo e problemático, como são 100% dos feminicidas. Até os parceiros de bola disseram que ele era brigão e arrogante”, afirma o delegado Hudson Maldonado, responsável pelo inquérito que apurou os fatos do crime.

O ato extremo de violência aconteceu pouco depois de o assassino ter sido demitido do emprego que tinha em um shopping center da cidade. “O desligamento do trabalho possivelmente agravou o sentimento de frustração que ele sentia”, acredita o delegado.

Pesquisadora em estudos de gênero e professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), a psicóloga Valeska Zanello enxerga o machismo tóxico como a raiz deste tipo de tragédia. “É angustiante para um homem, imaginar como uma mulher pode desejar algo além dele, seja estar com amigas, admirar um ator, frequentar a academia. Eles questionam: ‘Como eu não sou tudo para você, não sou suficiente?’”, detalha a especialista.

Facebook/Reprodução
Interior da igreja da Imaculada Conceição. A família da consultora de vendas frequenta o templo católico, localizado na Quadra 13 de Sobradinho
Interior da igreja da Imaculada Conceição. A família da consultora de vendas frequenta o templo católico, localizado na Quadra 13 de Sobradinho

Fé até o final

Com o rosto desfigurado pelo ácido e queimaduras de terceiro grau em 45% do corpo, Cácia Regina se apoiou na fé durante os 14 dias de internação no Hran. Manteve a convicção de que deixaria o hospital para retomar à rotina de trabalho e de cuidados com a família. Com a credencial de sobrevivente, pretendia se dedicar a combater a violência de gênero. Agora, essa luta é dos parentes e amigos mais próximos.

Amiga de Cácia, a assistente social Hildete Palmeira recorda a maneira carinhosa com a qual ela tratava a equipe clínica. “Agradecida pelos cuidados que recebia, dizia a médicos e enfermeiros: ‘Vocês são meus anjos’”, afirma Hildete. As consequências da fúria do ex-marido colocavam fim às esperanças e preces de Cácia, amigos e familiares. A filha dos dois ficou órfã de pai e mãe.

Colaborou Luísa Guimarães

Ana Helena Paixão

Ana Helena Paixão

Brasiliense, foi criada em Taguatinga e formou-se em jornalismo em 1998, pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Foi repórter e subeditora de Cidades no Correio Braziliense; secretária-adjunta de Comunicação do GDF; editora na Agência Brasília; subsecretária de Redes Sociais e Projetos Especiais da Coordenadoria de Comunicação para a Copa do Mundo 2014 e editora de Cidades e Política do portal Metrópoles. Como assessora de imprensa, passou pelo Senado Federal, Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa e Ministério da Saúde. Lidou com temas de gênero ao assumir a comunicação da antiga Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (07/06/2019), 12.637 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 25 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

DIRETORA EXECUTIVA
Lilian Tahan
EDITORA EXECUTIVA
Priscilla Borges
EDITORA-CHEFE
Maria Eugênia
COORDENAÇÃO
Olívia Meireles
EDIÇÃO
Érica Montenegro
REPORTAGEM
Ana Helena Paixão
Luísa Guimarães
REVISÃO
Mariana Reino
EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Daniel Ferreira
EDIÇÃO DE ARTE
Gui Prímola
DESIGN E ILUSTRAÇÃO
Stephanie Arcas
TECNOLOGIA
Allan Rabelo
Saulo Marques
André Marques