Metrópoles foi ao Pantanal mostrar como vivem as famílias que se locomovem apenas por barco e não têm acesso à saúde e à segurança pública
08/08/2022 às 14:30
Entre as paredes verdes de um antigo cinema, que hoje chama de lar, José Domingos Benites, 55 anos, lê atentamente trechos do Código Civil e da Constituição Brasileira de 1988. As mãos calejadas passam cada página com cuidado. Anotações feitas a lápis disputam espaço com os artigos da legislação. Filho de comerciantes, Benites foi alfabetizado em 2009 e, desde então, se dedica a aprender a melhor forma de reviver o povoado de Porto Esperança (MS), a 80 km de Corumbá, local que, desde a adolescência, decidiu adotar.
A leitura é reforçada por conhecimentos sobre atualidades, adquiridos por meio de programas televisivos e jornais. O estudo e as ações em prol do coletivo fizeram com que o pescador assumisse a associação de moradores do distrito por quase uma década. Com o cargo de liderança, precisou entender quais eram seus direitos e como deveria cobrar melhorias para as autoridades do Estado.
Igo Estrela/Metrópoles
Benites revela que o seu grande sonho é “renovar o cartão postal de Porto Esperança”. Com isso, além dos livros, seu arquivo pessoal conta com fotos em preto e branco. As imagens retratam os tempos áureos do distrito e são mantidas como joias, plastificadas e guardadas cuidadosamente dentro de uma pasta.
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O povoado ganhou vida com a construção da ferrovia Noroeste do Brasil, em 1914. Porto Esperança era o ponto final do trem de transporte de passageiros. Navios com destino ao município de Corumbá também atracavam por lá. Uma placa de madeira com o nome do vilarejo escrito em letras coloridas, fincada às margens do Rio Paraguai, recepcionava todos que chegavam.
O vai e vem de viajantes do Brasil e de países vizinhos, como Bolívia e Paraguai, movimentou a economia local e transformou a região em um oásis em meio ao Pantanal Sul-Mato-Grossense. Pescadores construíram casas e passaram a trabalhar para alimentar funcionários da locomotiva e turistas. O prato principal: peixe frito. A iguaria era vendida pelas mulheres na estação. Café, suco e pão doce caseiro também compunham o cardápio. O rápido crescimento da população impulsionou o governo local a investir na construção de delegacia, agência dos Correios, cartório e posto de saúde.
O caminho de prosperidade e desenvolvimento, entretanto, foi desfeito, em 1995, com a privatização da ferrovia e a extinção dos trens de passageiros da Malha Oeste. As composições passaram a servir apenas para transporte de cargas.
Sem o trem, o único acesso para a cidade mais próxima passou a ser pelo rio. Dessa forma, a comunidade ficou cada vez mais isolada. A decadência do transporte refletiu, ainda, nas sedes de órgãos públicos. As construções foram esvaziadas por servidores e ocupadas por famílias que, há mais de 100 anos, se mobilizam em prol da construção de uma estrada que liga o distrito à BR-262. Muito mais que uma obra, o asfalto, para os ribeirinhos, representa esperança, continuidade da história local, cidadania e progresso.
“Antes, a realidade era outra. Com o trem, o acesso aos municípios era rápido. Podíamos contar com serviços básicos de saúde e segurança. O distrito vivia abarrotado de gente. Só para ter noção, em 1950, a população daqui chegou a 1.174 habitantes. O trem passou trazendo prosperidade e foi embora deixando o descaso”, desabafou José Domingos Benites.
Sobrevivendo da pesca e dos poucos turistas que conseguem chegar ao povoado, os ribeirinhos carecem de assistência. A estação de tratamento de água, por exemplo, só foi implementada no ano passado. O investimento foi considerado, pelos moradores, o maior avanço em qualidade de vida desde a chegada da energia elétrica, em 2000. “Passamos 190 anos sem água tratada. Antes, havia apenas duas opções: comprar água limpa ou tratar a água do rio de forma caseira”, destacou o morador.
Atualmente, o atendimento médico é oferecido no distrito apenas de três em três meses. Já a coleta mensal de lixo só é possível porque os moradores abriram um caminho improvisado em meio à mata até a principal rodovia da região. Quando não chove, época em que o acesso fica completamente intransitável, os caminhões da prefeitura conseguem chegar ao distrito.
“O isolamento tornou a nossa rotina cada vez mais difícil em todos os sentidos. Para ir a Corumbá, precisamos ir de barco até Porto Morrinho e, de lá, pegar um ônibus para o centro urbano. A viagem dura 3 horas pelo rio e 1h30 via estrada. Em caso de emergência de saúde, tem de torcer para dar tempo de chegar ao hospital. Temos muitos casos de grávidas que deram à luz dentro da embarcação. Ninguém arrisca esperar a ambulância. O mesmo acontece com a polícia”, contou Benites.
Vivendo com um salário mínimo, famílias de pescadores também precisam lidar com custo de vida elevado. “As compras mais básicas são feitas na capital. O combustível é caro e nem sempre dá para arcar”, destacou.
A série de dificuldades fez com que viver no local se tornasse um desafio diário. Por isso, muitos moradores deixaram as terras em busca de novas oportunidades. A praça, que antes servia de espaço para centenas de famílias, passou a contar com a circulação de metade delas.
Todavia, a história de Porto Esperança está prestes a mudar. Os caminhões e tratores que, desde setembro do ano passado, circulam pela comunidade indicam um novo tempo. Atestam que a espera centenária chegou ao fim. Após constante pressão dos ribeirinhos, a estrada que liga o povoado à rodovia está, enfim, sendo construída. A duração dos trabalhos é de 365 dias.
Para chegarem ao município mais perto, Corumbá (MS), os moradores de Porto Esperança precisam seguir de barco até Porto Morrinho. A viagem dura três horas pelo rio.
Do distrito vizinho, devem pegar um ônibus para o destino final. A rota via estrada leva, em média, 1h30.
O acesso por estrada disponível hoje não fica aberto o ano inteiro. Quando chove, a rodovia fica completamente intransitável. Moradores já tentaram, inclusive, abrir um caminho improvisado em meio à mata até a principal rodovia da região.
A espera da população de Porto Esperança está chegando ao fim. A abertura da nova rodovia começou em setembro do ano passado, e a duração dos trabalhos é de 365 dias. A nova estrada está localizada entre os quilômetros 700 e 218 da BR 262.
→ A implantação da estrada que liga o distrito de Porto Morrinho à BR-262 foi autorizada em 10 de agosto de 2021.
→ As obras tiveram início em setembro do mesmo ano. A duração dos trabalhos é de 365 dias.
→ A construção do acesso, de 11,2 quilômetros, é realizada ao custo de R$ 20,7 milhões.
→ Os serviços de abertura da estrada com aterro de até 3,5 metros e das redes de drenagem estão 25% executados.
→ A estrada foi projetada distante da margem do Rio Paraguai, levando em consideração as inundações que ocorrem na região, chamadas de Nabileque.
→ O antigo acesso, aberto pelos moradores, margeia o rio, não tem infraestrutura, e torna-se intransitável na cheia e quando chove.
→ O solo é característico do Pantanal: argila saturada (acúmulo de água), que se apresenta úmida mesmo nas condições atuais de seca extrema no bioma.
→ A estrada terá revestimento primário com dois tipos de materiais: camadas de cascalho e resíduos de minério de ferro. O projeto inclui, ainda, duas pontes de concreto e bueiros.
A situação de Porto Esperança é mais comum no Brasil do que se imagina. De acordo com a Pesquisa CNT de Rodovia de 2021, dos mais de 1,7 milhão de km de estradas federais e estaduais espalhadas por todo o Brasil, apenas 213,5 mil km são pavimentados, o equivalente a 12% do total. O 1,3 milhão de km restante é de terra batida ou cascalho.
Isolados, esses povoados que não têm acesso ao asfalto padecem com a precariedade na saúde, segurança e educação. Fernanda Rezende, Gerente Executiva de Gestão e Projetos da CNT, destaca que o investimento em infraestrutura de transporte é muito importante não só para o segmento rodoviário, mas também para toda a sociedade.
“É por meio do transporte rodoviário que os setores da economia brasileira são movimentados. Sem infraestrutura de rodovias adequada, não tem transporte de qualidade que ofereça alimentação, remédio e serviço básico de deslocamento diário de pessoas”, destacou. Mais que investimento econômico, a chegada do asfalto garante cidadania e desenvolvimento.
Malha rodoviária brasileira
Densidade da malha rodoviária por paísValores em km/mil km²
Rodovias federais pavimentadas por região
A realidade dessas comunidades isoladas tem sido representada na novela Pantanal. Os personagens do folhetim só acessam a fazenda do protagonista Zé Leôncio (Marcos Palmeiras) por chalana ou avião. O abastecimento de itens básicos para os moradores da região também só chega por esses meios de transporte. O roteiro original de Benedito Ruy Barbosa (adaptado para 2022 por Bruno Luperi) discute ainda o efeito cultural da chegada do asfalto para esses povoados.
O Metrópoles percorreu 1.457,7 km, de Brasília até o Pantanal sul-mato-grossense, para conhecer de perto a realidade dessas comunidades ribeirinhas que vivem isoladas até hoje. Em meio às dificuldades, permanecer no Pantanal – a maior planície inundável do planeta – é um ato de resistência. As comunidades aprenderam a sobreviver com a natureza. É da mata que sai o remédio; o alimento é cultivado na terra; e a pesca ajuda no sustento do lar. As casas são projetadas para suportar a seca e as enxurradas.
Cada local pulsa história. Nesse contexto, após dois meses de apuração, a reportagem mostra que estradas impactam. As rodovias do país vão além do conceito clássico de acessibilidade. No viés social, também podem colocar em risco a identidade de um povoado e impulsionar a disputa de terras.
Por conta do isolamento social, os moradores de Porto Esperança precisaram, em 2013, lidar com novo problema na região. A comunidade passou a ser vítima de ameaças. As casas, que nunca tiveram muros, foram contornadas de cercas, que confinavam os moradores e impediam o acesso às áreas de convivência.
O Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul chegou a solicitar à Polícia Federal (PF) a instauração de inquérito policial para apurar os abusos. Segundo representação dos ribeirinhos, a empresa ABBS Agropecuária, sob alegação de posse das terras, instalou cercas ao redor das residências, ignorando plantações, e forçou a demarcação da área por meio de seguranças armados, que passaram a intimidar os moradores a não denunciar o caso.
Um representante da empresa chegou a afirmar que a área teria sido concedida a eles pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), o que garantiria a legalidade da medida. Contudo, apurações do MPF desmentiram a versão da ABBS e identificaram fortes indícios de que toda a área em que a empresa estava instalada era de posse da União, utilizada há séculos pela comunidade tradicional, e só poderia ser concedida a particulares por documento específico da SPU.
Para os promotores do caso, a ABBS – sem legitimidade para fazer delimitações, e muito menos ameaças – estaria exercendo arbitrariamente suas razões, o que também é crime. As atividades irregulares da empresa não apenas criaram tensão na região, também geram o risco de extinção da comunidade tradicional.
No fim de 2013, diante do mal-estar instalado entre os ribeirinhos e a empresa, o MPF ajuizou ação cautelar para retirada imediata das cercas.
Apesar da ação civil, o Ministério Público Federal destacou a necessidade de apuração na esfera criminal. Segundo a instituição, há denúncias de violência física e psicológica; relatos da convocação de policiais civis para prestar serviços de segurança no local e intimidar os moradores; além da clara intenção de tomar posse de terreno público. Tais situações configurariam crime de genocídio, formação de milícia armada e invasão de terra pública, respectivamente.
“A comunidade Porto Esperança é composta por grande número de idosos, que vivem no local há anos, e é inconcebível que sejam ameaçados e obrigados a passar por debaixo de cercas para transitar no local que sempre viveram. Além da área de preservação permanente, há fortes indícios que a terra seja toda da União, o que faz com que as medidas tomadas pela empresa sejam ainda mais desarrazoadas”, explicou o MPF, que acompanha a situação da comunidade em inquérito civil público instaurado na Procuradoria em Corumbá.
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Em fevereiro de 2014, a Justiça Federal revogou decisão liminar e declarou a posse da área aos ribeirinhos. A decisão, publicada em 21 de fevereiro, acatou integralmente os pedidos realizados pelo Ministério Público Federal.
Na decisão inédita, o Judiciário reconheceu a titularidade pública dos terrenos marginais e a posse consolidada de uma comunidade tradicional.
“Essa é a primeira vez que o direito territorial de populações tradicionais ribeirinhas é reconhecido no estado. Trata-se de um importante precedente para a defesa das comunidades pantaneiras”, destacou o MPF.
Com a decisão, a empresa ABBS Agropecuária foi obrigada a retirar as cercas irregularmente instaladas.
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Entre as casas de palafita que ainda resistem às margens do Rio Paraguai, é possível identificar uma construção distante das outras. A edificação, erguida em estacas de madeira, é rodeada por árvores. O barulho que se escuta ao se aproximar do imóvel vem do canto dos pássaros e das conversas acaloradas na beira do fogão.
Ao subir as escadas, o visitante se depara com um pôster, em tamanho real, pendurado na parede da sala. O cartaz mostra a imagem de uma senhora alta, cabelos brancos, esbelta e sorridente. O número 100 foi acrescentado na imagem e indica que a casa pertence aquela que é a história viva de Porto Esperança, a simpática dona Firmosina da Silva.
A senhora – disposta, alegre e com uma memória invejável – completou 100 anos em 29 de maio deste ano e se tornou a moradora mais antiga do distrito. A história do povoado se confunde com a sua própria vida. Entre uma lembrança e outra, Firmosina se orgulha de tudo o que fez naquelas terras.
“Sou filha de militar; cheguei aqui com 33 anos e dois filhos, em 5 de agosto de 1955. Tinha muita gente, funcionários do trem, policiais civis, servidores do cartório e até médicos. Todo mundo tinha o seu ranchinho e sua vaquinha de leite. Depois foi fracassando. Criei minha família aqui. Tive mais cinco filhos e trabalhei no campo, na roça, no engenho, na casa de farinha e no garimpo. Já morei em outros lugares, mas aqui é o meu lar, é onde quero ser enterrada”, disse.
Os vizinhos da idosa foram deixando as casas, mas Firmosina nunca pensou em sair e sempre acreditou que o local voltaria a ser como antes. Contudo, a estrada, para ela, vai além do desenvolvimento, significa afeto.
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“Vai ficar mais fácil para ir ver os meus filhos. Nossa família é muito unida, e agradeço por poder contar com eles. Tenho alguns irmãos que perdi completamente o contato, mas se um dia nos encontrarmos, poderão chegar até aqui, conhecer a minha casinha, o meu barco”, sorriu.
Além de dona Firmosinha, outras mulheres não abrem mão da esperança em dias melhores. Aos 60 anos, a aposentada Eliete da Cunha Vera é uma das filhas orgulhosas do distrito.
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“Nasci aqui. Tive meus filhos, netos e bisnetos. Registrei meus meninos quando ainda tínhamos cartório”, contou. A ribeirinha, acostumada com as cheias do pantanal, confidencia que tem pavor do rio.
“Evito ao máximo ficar saindo de barco, porque tenho medo do rio. No tempo de cheia, até para ir de uma casa a outra, precisamos de barco. É por isso que as nossas casas são construídas lá no alto, com pernas”, brincou. “A gente tem que se virar nos 30, como pode. Se ficar doente, tem que fazer remédio caseiro. Sei que as coisas em breve irão mudar, vai facilitar muito a nossa vida”, completou.
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Dona da pousada Arca de Noé, a empresária Jorgina de Almeida, 70 anos, já sofreu dois AVCs e precisou seguir de barco para chegar ao hospital mais próximo.
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“Mesmo com todos os problemas, é muito difícil sair daqui. São nossas raízes. Aprendemos a sobreviver com a natureza e sabemos a época de plantar e de colher”, explicou.
Como sair do distrito não é opção, Jorgina e o marido, Sérgio Matos, escolheram empreender. Montaram uma pousada na beira do rio. Contam com 20 quartos, ar-condicionado e uma boa comida caseira. Com a chegada da estrada e a possibilidade de aquecer o turismo, o casal já pensa em expandir o imóvel.
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Além dos negócios, a moradora pondera que não basta apenas concluir as obras: “É importante que, além da estrada, também tenhamos segurança. Hoje, conseguimos conservar a natureza e coibir o vandalismo. Aumentando a circulação de pessoas, o risco também aumenta”, alertou.
ficha técnica de porto esperança
Jorgina tem razão. Ao se falar em estradas e projetos desenvolvimentistas, é necessário avaliar os impactos que a construção terá na comunidade. Meire Cabral, doutora em ciências sociais e pesquisadora no campo social da infraestrutura e do transporte, alerta que, do ponto de vista de quem constrói, é dada uma resposta positiva, uma vez que elementos de interligação são sinônimos de acessibilidade.
Porém, os reflexos, a longo prazo, podem afetar completamente a rotina e a cultura de um povoado. Por isso, para a estudiosa, é crucial uma conversa franca com os moradores, para que eles entendam todas as consequências e avaliem até que ponto a implementação de vias é necessária.
“Quando essas pessoas percebem que a estrada vai passar, elas visualizam que vão chegar mais rápido a hospitais; poderão fazer compras de forma mais célere, acessar escolas melhores. No entanto, quando se pensa na construção de uma estrada do ponto de vista governamental, está se pensando em ampliar o potencial agrícola, turístico e imobiliário. Ao tratar com a comunidade, é importante jogar limpo, porque as estradas impactam”, destacou.
A especialista explica que há dois efeitos quando o processo de expansão é implementado: os biofísicos e os sociais. O primeiro é examinado assim que se pensa no projeto. É composto por estudos geotécnicos, análise das regiões e por onde o asfalto irá passar. Os sociais, por outro lado, não se averiguam no momento da construção, eles antecedem ao projeto, porque se cria expectativa com a obra; configuram-se no momento da construção e se prolongam no tempo, no que vai acontecer após.
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“As pessoas tendem a ver a chegada de estradas como um favor, anseiam tanto por aquilo, visualizam apenas a mobilidade, quando, na verdade, vai alterar o dia a dia. Terá efeitos ambientais, poluição sonora, ruídos, ocupação de fronteira agrícola, surgimento de indústrias. Essa consciência se faz necessária no momento de estabelecer padrões de negociação, medidas compensatórias e mitigatórias”, alertou.
As mudanças são perceptíveis em coisas simples. Se antes não tinha cerca, agora tem. Se antes não tinha faixa de domínio – espaço físico onde não se pode construir às margens da rodovia –, hoje tem. A maneira de se locomover com crianças, sem a preocupação com acidentes, também muda.
“Muito mais que técnicas de engenharia, você tem um campo social que passa a existir a partir daquela obra. Acessibilidade é cidadania, mas quais são os limites? Como aquele posto de combustível vai ser instalado? No meu ponto de vista, o principal viés que deve ser considerado quando se pensa em infraestrutura de transporte são as pessoas”, concluiu.
A pescadora Cecília Soares Mendes, 42 anos, ainda se lembra do dia em que chegou energia elétrica ao distrito de Albuquerque, embrião da cidade de Corumbá. Os moradores se reuniram em uma das casas e ligaram uma velha televisão em tubo pela primeira vez.
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A conquista da comunidade, em 2000, foi motivo para uma grande festa, que se estendeu para a praça central; e os lampiões, enfim, foram guardados de vez no armário. Com pouca estrutura e isolados no pantanal, os vizinhos precisaram se unir para suportar a espera pelo tão aguardado progresso.
“Costumo dizer que a música Casa de Cabloco, do Rick e Renner, ajuda a descrever a nossa história. Tem um trecho em que eles falam que o progresso passou e esqueceu da gente. É exatamente esse o sentimento – o abandono. Se algo acontece, temos que contar com ajuda do próximo. A estrada que temos é de barro. Se chove, atola. Na época de seca, a poeira toma conta. Não tem ambulância, e a polícia custa a vir. Esperamos o asfalto há 242 anos; meus pais morreram e não viram. Não sei se agora vai sair, mas se eu morrer, as minhas filhas continuarão lutando por ela”, contou.
Enquanto a estrada não vem, Cecília, que nasceu em Albuquerque, tenta manter as raízes e as tradições da família. “Minha família é pioneira. Eu vivo da pesca, sou pescadora assim como os meus antepassados. É um trabalho muito difícil, mas tenho orgulho”.
A pescadora lamenta a ausência das duas filhas. Ambas mudaram para estudar na cidade. “Elas vão criar raízes em outros lugares, e a minha história, a dos meus avós, vai ficando esquecida. Quem não quer ter a sua história lembrada, mantida, contada? Temos uma cultura muito rica, de luta, de fé, de festa, e até de assombração. Em noite de lua cheia, o pessoal mais velho ainda evita passar no bocaiuva, com medo de ver a mulher de branco. Os antigos mantêm isso; e essa pureza é o que me emociona. Quando vejo essa história morrendo, vejo uma pessoa sem sua identidade, sem o seu RG, sem ter a prova da sua existência”, destacou.
A agente comunitária de saúde Rosalina Garcia da Silva, 61 anos, é uma das protagonistas da história de Albuquerque. Moradora do distrito há 38 anos, ela fez dezenas de partos na região, e, até hoje, é procurada para receitar remédios caseiros e benzer enfermos. “Muitos não acreditam. Em alguns casos, a cura não está no remédio”, alertou.
Dona Rosinha, como é conhecida, lembra dos primeiros anos no novo lar. Relata que casou cedo e teve de se mudar para morar perto dos sogros. “Aprendi a gostar das pessoas. Todo mundo me chama de tia, avó. É benção pra cá, benção pra lá. Não consigo ficar longe daqui”, disse.
Ela não esconde, porém, a precariedade da região. Sem água encanada até 2017, os moradores precisavam recorrer ao rio. Depois, fizeram uma única torneira. As famílias acordavam cedo para encher os reservatórios. “A roupa era lavada na beira do rio. As mulheres levavam a matula, faziam uma comida, e quem tinha filho o amarrava na cintura. Voltávamos só no fim da tarde. As coisas aqui nunca foram fáceis. Agora, pelo menos já temos água limpa e energia’’, lembrou.
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Com a saúde precária, outro problema assolou Albuquerque: a mortalidade infantil. Sem o acompanhamento adequado, com a visita de médicos apenas uma vez ao ano, muitas crianças nasciam sem vida ou morriam logo após o parto. Para ir até a cidade, os familiares precisavam pegar carona em um carro leiteiro. “Se não tivesse vaga, tinha que esperar Deus ajudar; ou melhorava ou morria”, contou.
Apesar de ser uma demanda da comunidade, dona Rosinha confessa que nunca teve vontade de ser agente de saúde. Achava que não era serviço para ela. Um dia, entretanto, o governo promoveu cursos de especialização, e as turmas estavam vazias, com poucos alunos. “Uma amiga me chamou para fazer volume. Acabei indo, passei na seleção; e ela não. Depois disso, dediquei-me a essa função por 15 anos. Fiz muitos partos. Hoje, meus bebês são homens, pais e mães de família. Continuo na batalha do dia a dia até onde Deus permitir”, falou orgulhosa.
Com pouca assistência, a outra mãe que a comunidade escolheu foi a empresária Odila Maria Silveira Gonçalves, 64 anos. Ela é a presidente da associação de moradores. Odila tem um hotel nas proximidades e percorre as ruas de Albuquerque diariamente para ajudar nas demandas locais. Conta que pegou o desafio de lutar por um futuro melhor, e leva como um compromisso social.
“Temos dificuldade na escola, na saúde; não temos ambulância, dependemos de Corumbá. São 65 km de distância. Às vezes, chega gente mordida de piranha, mas até chegar um socorro, já viu. Vamos aguardar que uma hora o progresso vai chegar”, relatou.
O incentivo para continuar lutando vem da própria comunidade. A empresária ressalta que a união e a força feminina na região são cruciais para resistir às adversidades. “Uma agarra no braço da outra e vai levando. Protegemos-nos e nos ajudamos. Não temos sequer uma creche. Quem trabalha precisa encontrar alguém para cuidar das crianças ou levar os filhos. As catadoras de iscas chegam a passar dias na mata com a família inteira”, reclamou. “A vida do pantaneiro é complicada, tem que ter muita força e garra para sobreviver. Agora, a nossa luta é pela estrada, mas não só isso, precisamos que ela venha acompanhada de saúde, segurança e educação”, completou.
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Odila também lamenta o esvaziamento da população local. Ela entende que a falta de investimento reflete na história da região, e teme que a cultura seja esquecida.
“O distrito aqui é muito católico, mas está acabando a tradição. As crianças crescem e vão pra cidade estudar. As festas típicas estão esvaziando. Seria melhor se tivesse uma boa escola, um hospital, ao menos uma ambulância. Segurança pública nós não temos. Tarde da noite acontece alguma coisa, até chegar um policial… quando chega. Estamos precisando muito de socorro. Aqui é tão pequeno, qualquer coisa satisfaz o pantaneiro, porque nunca tivemos nada”, finalizou
Em 2012, o Diário Oficial do Estado de Mato Grosso do Sul divulgou o resultado da proposta para elaboração do projeto de implantação e pavimentação das rodovias MS-432 e MS-433, no Distrito de Albuquerque até o entroncamento com a BR-262, em Corumbá.
A empresa vencedora foi a Oliveira, RAE & Cia Engenharia LTDA, que terá prazo de 120 dias para conclusão do projeto. A pavimentação do trecho irá colocar fim a uma espera de 242 anos da comunidade, que foi precursora da fundação de Corumbá e com papel fundamental na história de Mato Grosso do Sul. As obras ainda não começaram, mas a família do agente comunitário de saúde Clemilson Sousa Mendes, 47 anos, comemora.
“Agora eu acho que vai. Vimos que fizeram as marcações. Estamos na expectativa. Quando as pessoas precisam de ajuda, temos que nos virar para levar até a cidade. O Samu mesmo é difícil de vir, sem contar que quebra muito carro. As equipes, quando vêm, furam pneu, estraga-se peça do carro, porque a estrada é ruim”, disse.
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A sua companheira, Jéssica Fonseca da Silva, 29, está grávida de cinco meses e também lamenta o difícil acesso. “Em uma emergência de parto, vai na sorte. Se der tempo de chegar, bem; se não, nasce na estrada”, reclamou.
O acesso dos moradores de Albuquerque (MS) até o município de Corumbá se dá por meio de uma estrada de terra, que tem cerca de 8 km, até a BR-262.
Em abril de 2021, o governo do Estado prometeu licitar a pavimentação da estrada que liga a BR-262 ao distrito de Albuquerque
Também em 2021, os moradores recebem serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto
O distrito é marcado por forte manifestação cultural e religiosa, que se expressa pela fé em Nossa Senhora da Conceição e na tradicional Festa do Divino, que acontece sempre 50 dias após o domingo de Páscoa
O rio é fonte de renda da comunidade, que sobrevive da pesca e do turismo
O “navio da esperança”, como foi batizado pelos ribeirinhos, percorre as águas do Rio Paraguai, anualmente, em missões que chegam a durar 130 dias. A embarcação pertence à Marinha do Brasil e leva assistência médica e odontológica aos povoados isolados.
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Antes de ser adquirido pela Marinha do Brasil em parceria com o Ministério da Saúde, por R$ 1,1 milhão, em 2008, o Navio de Assistência Hospitalar Tenente Maximiano desempenhava atividades de turismo e de pesca amadora.
O veículo passou por uma reforma estrutural, com a construção de centro cirúrgico, enfermaria, sala de esterilização, sala de expurgo, farmácia, laboratório, consultório médico, consultórios odontológicos e de compartimento equipado com aparelho de raio-X.
De acordo com o capitão-tenente Vinicius Rodrigues Travassos Alves, o navio tem uma identidade que o ribeirinho já conhece.
“Quando o pescador está descendo ou subindo o rio e se depara com o navegação, ele sabe que tem um ponto de apoio. Já fomos abordados por grávidas, pessoas com princípio de infarto, entre outras emergências médicas. De tanto fazer esse trajeto, passamos a conhecer os moradores pelo nome”, explicou.
Igo Estrela/Metrópoles
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Na época da pandemia, o navio foi um dos responsáveis por testar e vacinar a população. “Além disso, estamos sempre atentos às campanhas do Ministério da Saúde, como outubro rosa e novembro azul”, acrescentou o militar.
“O lema do veículo é partilhar a vida. Cada militar que está aqui embarcado tem isso no dia a dia dele. Temos família, então passar quase um terço do ano longe do convívio dos parentes para levar saúde e cidadania a essa população é gratificante. A gente partilha a nossa vida para levar saúde ao próximo”, concluiu.
Além dos reflexos sociais, manter uma boa infraestrutura de transporte também tem sido um desafio para os governantes. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), a exemplo de anos anteriores, o baixo investimento do governo federal sofreu uma nova queda e passou de R$ 8,69 bilhões, em 2021, para R$ 8,58 bilhões, em 2022. A quantia representa apenas 20% dos R$ 42,90 bilhões autorizados pela União em 2012, ano com a maior cifra em duas décadas.
Evolução Rodoviária do Brasil
A análise faz parte do Radar da CNT sobre o Orçamento Federal, divulgado em fevereiro deste ano. Na avaliação do investimento autorizado em transporte como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) entre 2001 e 2020, percebeu-se um patamar baixo ao longo dos anos. Mesmo considerando o pico da série (0,52%), em 2012, esse percentual, para os analistas, é significativamente inferior ao realizado, por exemplo, em meados da década de 1970 – quando o recurso federal para o transporte era próximo a 2% do PIB.
avaliação de condições das rodovias
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