Amava-se muito e casava-se pouco no Sertão goiano do século 19. Os homens se recusavam à união civil/religiosa com negras e índias, e, naqueles tempos de garimpo de ouro, escravidão e ocupação de terras indígenas, eram poucas as mulheres brancas. Mesmo os casados mantinham as amantes sob o mesmo teto. Era o reino da poligamia. Até os padres desobedeciam abertamente ao celibato.
Esse é o panorama do amor e dos costumes descrito pelo francês Auguste de Saint-Hilaire (1779–1873) em Viagem à Província de Goiás, há exatos 200 anos. Nas passagens pelas cidades de Vila Boa (atual Cidade de Goiás) e Santa Luzia (hoje Luziânia), o viajante se dedica a observar e relatar o modo de vida das mulheres, dos homens e das famílias.
Há uma certa ironia amarga no olhar do francês. Trinta anos depois, ao recuperar as memórias da viagem, Saint-Hilaire recorre a relato do cônego Luis da Gama da Silva e Sousa, que contou haver na cidade de Goiás, em 1832, 24 armazéns e 100 cabarés. Ao que o europeu comenta: “Contando 42.584 habitantes, a cidade de Orleans [na França] possuía, em 1847, apenas 104 cabarés. Consequentemente, nesse particular Vila Boa é 10 vezes mais bem aquinhoada. Abstenho-me de fazer uma comparação semelhante com referência à instrução pública”.
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Há também preconceito, um certo olhar europeu, para a mestiçagem brasileira, que mistura luxúria com desprezo pela cultura que desconhecem: “Os olhos negros e brilhantes das mulheres de Goiás traem as paixões que as dominam, mas seus traços não têm nenhuma delicadeza, seus gestos são desgraciosos e sua voz não tem doçura. Como não têm educação, sua conversa é inteiramente desprovida de encanto. São inibidas e estúpidas, e se acham reduzidas praticamente ao papel de fêmeas para os homens.”
No começo do século 20, nos confins de Goiás, as mulheres tinham de seguir a rigorosa cartilha da castidade até o casamento e de obediência severa ao marido. Não eram raros os casos de abuso sexual de crianças. Num deles, em 1930, uma menina de 9 anos foi estuprada em Santa Luzia, hoje Luziânia, e o promotor que investigava o caso, Francisco de Paula Meirelles, assassinado na praça principal da cidade – como conta José Dilermando Meireles em A Morte Trágica de Americano do Brasil (DF Letras,1992).
A quieta Planaltina se alvoroçava com os movimentos de uma família inusitada, que hoje ressurge com o nome de poliamor. Um planaltinense casado levou para casa uma e depois outra amante. Os quatro passam a viver juntos, até que, incomodados com o tratamento que a cidade lhes dava, mudaram-se para “dentro do cipó”, no meio do mato, conta dona Eça de Castro, 84 anos, cuja família vive na região há mais de dois séculos. Viveram décadas nessa incomum união familiar até irem morrendo, um a um.
Escândalos e tragédias movidas pelo amor aconteciam nesse Sertão de meu Deus. Uma das histórias mais românticas e corajosas tem como personagem principal a mais importante poeta goiana e uma das mais festejadas no Brasil, Cora Coralina. A história desse amor, que estremeceu até os paralelepípedos da cidade de Goiás, será contada adiante.
Há tragédias, como a do historiador Americano do Brasil, que, na década de 1930, foi assassinado num enredo que mistura paixão, suspeita de abuso sexual, disputa profissional, política e espertezas entre promotores e advogados. E tem histórias de gente comum que viveu e amou quieta, paciente e demoradamente, como o casal Viriato e Maria de Castro: conheceram-se quando ela tinha 3 e ele, 8 anos. Ou a de dona Tertulina, 94, casada durante 68 anos, viúva desde os 82, que nunca teve tempo de conhecer a alegria.
Agradecimento ao historiador Mário de Castro por me apresentar alguns personagens destas histórias.
O amor fugitivo de Cora Coralina e Cantídio
Ela ainda não se chamava Cora Coralina, embora usasse eventualmente o pseudônimo quando publicava poemas em jornaizinhos goianos. Desde que nasceu, Anna Lins dos Guimarães Peixoto morava na Velha Casa da Ponte, colada no Rio Vermelho, em Vila Boa, então capital de Goiás. Era filha do desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto e de dona Jacyntha Luiza do Couto Brandão.
Estava com 22 anos, idade que, à época, já anunciava o risco de não encontrar casamento. Até que o novo chefe de polícia chegou em Vila Boa de Goiaz, vindo de São Paulo, e aqueceu o coração da jovem poetisa. Cantídio de Tolentino de Figueiredo Brêtas tinha 44 anos e um passado desconhecido.
Os dois já namoravam quando um confidente de Cantídio levou a fofoca à mãe de Aninha: o pretendente era separado da mulher, a quem havia deixado em São Paulo com três filhos. E mais, tinha sido amante de uma mestiça dos índios Guajajaras com quem tivera um filho.
Proibida pela família de continuar o namoro e até mesmo de ver Cândido novamente, a moça apaixonada saiu de casa às escondidas, escorregou pelas ruas estreitas e vazias da cidade e bateu à porta do seu amado. Naquele tempo e lugar, uma moça de respeito jamais iria sozinha à casa de um homem solteiro, menos ainda se fosse seu namorado e, ainda pior, um namorado adúltero.
— É tudo verdade, Aninha. Não queria que você soubesse dessa forma. Eu mesmo ensaiei para te contar, mas fui covarde. Tinha medo de sua reação, tinha medo de te perder.
Calada, a jovem poeta continuou ouvindo o amor de sua vida como quem busca ou espera uma saída.
— Não posso lhe propor casamento. Seria correto que você viesse morar comigo, enfrentando toda a sociedade, a sua família? Para os homens, você sabe, as coisas são mais fáceis. Um homem como eu, com meu cargo, continuaria a ser respeitado e recebido por todos. E você? Se bem conheço as pessoas e esta cidade, você seria considerada uma mulher sem princípios morais…
— Estive disposta a aceitar o conselho de minha mãe, pondo um basta, um ponto final nesse relacionamento. Mas sou fraca e gosto muito de você. Não sei o que fazer…
— Não faça nada de que possa se arrepender. Esperemos esse momento passar. Depois de alguns dias, amadurecido o fato que hoje parece assustador, principalmente para você, conversaremos novamente, adulto que somos. Concorda?
Aninha aceita o fio de sensatez que o amado lhe oferece, se despede e volta para casa antes que o jantar seja servido e alguém pergunte por ela.
Os encontros escondidos, sempre à tarde, se repetiram, tentando achar uma saída, até que Aninha perguntou à irmã mais velha, casada, como é que uma mulher descobre que está grávida.
— É quando a regra não vem. Também dá enjoo, mas não é sempre.
Estava grávida a poetisa que um dia Carlos Drummond de Andrade chamou de “patrimônio de todos nós que nascemos no Brasil e amamos a poesia”.
O casal decide fugir de Vila Boa, mas Aninha não resiste e conta à mãe a gravidez.
— Filha minha não pode ficar grávida sem estar casada. Minha vontade é expulsá-la desta casa!
Dona Jacyntha manda chamar o causador da desonra.
— Pois então o doutor desonrou minha filha?! Que pretende agora, pode-se saber?
Quando Cantídio diz que está disposto a assumir o filho e morar com Aninha, Jacyntha parte para cima:
— Viverem maritalmente aqui? Será uma afronta à nossa sociedade, aos nossos amigos, à família. O melhor para todos é que o senhor vá embora, deixe a cidade, o estado e nunca mais apareça e nem dê notícia!
Em vão, o chefe de polícia tenta acalmar a sogra, mas Jacyntha já decidiu o que fazer: Aninha se esconderá na fazenda até o nascimento do bebê. Depois, voltará para Vila Boa, e a avó decidirá o destino da criança.
E assim fica decidido.
Chega o Dia de Finados e, antes de Aninha ir para a fazenda, vai com a família visitar os mortos. Trancada dentro de casa desde a descoberta da gravidez, sabe que esta será a única chance de tentar manter contato com Cantídio. Escreve um bilhete e o põe no corpete. Com sorte, encontrará no cemitério um mensageiro de confiança.
E lá está ela. Maria Grampinho, uma negra doidinha que prendia os cabelos com muitos grampos e usava roupas umas em cima das outras, cheias de badulaques. Falava pouco, vagava com uma trouxa de panos na cabeça e se enfeitava com o que de colorido e bonito encontrasse na rua – botões, tampinhas de garrafa, argolas, pedaços de louça e pedaços de plástico. Era um Antônio Bispo do Rosário goiano.
A grávida apaixonada entrega o bilhete a Maria Grampinho e pede que o leve a Cantídio. A mãe vigilante de nada desconfia. Anna é uma das poucas pessoas na cidade que parariam para conversar com a negra Grampinho.
“Estou angustiada, meu querido, mas fortalecida no amor que lhe dedico. Tenho certeza de que só serei feliz com você e estou disposta a fugir. Marque o dia e a hora. De sua Aninha”.
Seguem-se dias de muita aflição. Maria Grampinho some. E a moça grávida não pode sair de casa. Até que um dia a negra de roupas superpostas aparece no começo da rua e acena para Aninha, que está na janela. Entrega-lhe um bilhete.
“Tudo certo para nossa partida na madrugada do dia 25. Esteja pronta, com pouca bagagem. Seu Cantídio.”
Na véspera da fuga, novo bilhete:
“Às quatro da manhã estarei pronto, no beco no fundo da sua casa. Espero-a. Beijo-a, Cantídio.”
Chove em Vila Boa na madrugada de 25 de novembro de 1911. Aninha aparece carregando um pequeno baú de couro. Cantídio a espera com quatro burros e uma capa de chuva, a qual se apressa em colocar sobre a amada. Amarra o baú a um dos burros, e a pequena tropa de amantes fugitivos deixa Vila Boa.
Para ficar com Aninha, Cantídio abandonou o cargo de chefe de polícia. O casal recomeça a vida em Jaboticabal (SP). Tiveram mais cinco filhos, e Aninha ainda criou a filha de Cantídio com a índia Guajajara. Algum tempo depois, morre a primeira mulher de Cantídio, e eles finalmente puderam se casar no papel.
Passados 45 anos da fuga apaixonada, Aninha volta a Vila Boa, que agora se chama Cidade de Goiás. (Uma nova capital, planejada, foi construída, Goiânia). A Casa Velha da Ponte a esperava. Está com 66 anos, viúva, e havia tempos assumira por completo o Cora Coralina, que quer dizer coração vermelho.
(Essa história foi recontada a partir dos fatos relatados em Cora Coragem, Cora Poesia, de Vicência Brêtas Tahan, Global Editora, edições de 1989 e 2002. Vicência é filha caçula da poeta.)
Americano do Brasil
Considerado um dos mais importantes historiadores de Goiás, Americano do Brasil foi assassinado pelo homem com quem disputava a mesma mulher. A história envolve paixão, suspeita de abuso sexual, disputa profissional, conluios entre promotor e advogado, tudo com um fundo político. Ingredientes mais do que suficientes para estremecer a esquecida cidade de Santa Luzia, a atual Luziânia.
Homem bonito, separado da mulher, ex-deputado federal, médico, advogado, historiador, poeta, Americano do Brasil tem um lugar na história de Brasília. Foi dele o projeto aprovado pela Câmara Federal que determinou a fixação da pedra fundamental da nova capital do Brasil no Morro da Capelinha, em Planaltina, em 1922. Uma vitória dos mudancistas goianos.
Na manhã de 20 de abril de 1932, Americano do Brasil, 40 anos, recebe em casa o engenheiro agrônomo Aldovrando Gonçalves, 26, (o nome aparece grafado de três formas diferentes nas fontes consultadas: Aldovrando, Aldrovando e Aldovandro). Armado e transtornado, Aldo diz alguma coisa e dispara um tiro à queima-roupa. Americano ainda tenta se proteger e cai dentro do quarto. Aldo segue-o e dispara mais quatro balas. Aciona o gatilho pela última vez, mas a munição ficou travada no tambor.
Cada morador de Santa Luzia deve ter tido uma versão para o crime, tantas eram as implicações, os boatos, as teias que ligavam vítima e réu. Sabiam todos que os dois estavam apaixonados pela mesma moça, Nila Chaves, “a mais bela e fascinante de todas as jovens que compunham a sociedade de Santa Luzia”, conforme descreve José Dilermando Meireles em A Morte Trágica de Americano do Brasil.
Aluna da Escola Normal, da qual Americano tinha sido fundador e era diretor, Nila passou a ser também secretária do colégio, a convite do ex-deputado federal. “Dessa proximidade e desse convívio, nasceu, pelo menos da parte de Americano, uma grande paixão pela aluna e secretária”, escreve Meireles, que servia como uma espécie de revisor dos textos do historiador apaixonado. (Há quem considere Americano do Brasil um dos fundadores da historiografia goiana).
O engenheiro-agrônomo Aldovrando Gonçalves era parente distante de Nila e também por ela apaixonado. E os dois, Aldo e Americano, eram até então grandes amigos. Conta-se que a disputa entre eles era tão forte e evidente que, numa das vezes em que Americano foi a uma palestra acompanhado da moça, Aldo o interpelou com rispidez.
Havia também outros campos de tensão entre os dois homens, que se expandiam em círculos superpostos. Americano do Brasil acusava publicamente o promotor Américo Mota Gonçalves de manter uma indevida sociedade com o advogado Abdias de Araújo, na qual os dois participavam da defesa de um mesmo cliente. Ao mesmo tempo, Americano era acusado de criar subterfúgios para, com a ajuda de outro advogado, atuar em processo de desquite – na defesa tanto da mulher quanto do marido. E todos, incluindo o agrônomo, participavam do mesmo grupo de amigos.
Dias antes do crime, eclodiu um escândalo sexual. Uma menina que teria entre 14 e 15 anos, Castolina de Lima, a Castu, morava na Pensão Mineira, sob a tutela da dona do estabelecimento, Rita Flores. Castu namorava o padeiro. Um dia, pediu a uma funcionária da hospedagem para contar ao padeiro que ela, Castu, havia sido deflorada por um dos hóspedes, Aldrovrando Gonçalves – que, naqueles dias, não estava em Santa Luzia.
Estava armado o barraco. A dona da pensão ficou sabendo do suposto abuso sexual, e logo a suspeita chegou ao conhecimento do promotor Mota Gonçalves, que morava na pensão. O médico Pedro Daross, também hóspede, fez o exame ginecológico e assegurou que Castu era virgem. Mas o tio da adolescente não se conformou com o diagnóstico e acusou o médico de estar protegendo o filho de um fazendeiro rico.
Logo, o prefeito Públio de Souza fica sabendo da suspeita de defloramento de uma menor de idade e mandou abrir inquérito policial contra o suposto autor do delito, Aldo. E nomeia o médico Americano do Brasil para fazer exame de corpo de delito.
Sem saber de nada, Aldovrando Gonçalves chega à Pensão Mineira. Cumprimenta dona Rita Flores e pergunta o que há de novo pelo comércio. “Muito enjoo e muita contrariedade”, responde a hospedeira. Desconfiado, Aldo vai para o quarto e, pouco depois, volta para o jantar. Quer saber, afinal, o que dona Rita estava querendo dizer. Era o que ela esperava. Conta-lhe as acusações que pesam sobre ele.
Aldo manda chamar Castu e pergunta, diante de todos, o que havia acontecido.
— Você me abraçou e me beijou, e não fez mais nada porque eu corri.
Voltando-se para a dona da pensão, o hóspede completou:
— Abracei e beijei, e o que a senhora tem com isso? E não fiz mais porque eu não quis, porque chances eu tive, e muitas!
— Para um homem que não tem brio, qualquer tempo é ocasião – retruca dona Rita.
Irritado, Aldo vai à casa do delegado de polícia, Alípio Ribeiro, para descobrir o que afinal havia contra ele, e fica sabendo que a coisa era pior do que podia imaginar. Geralda, a empregada da pensão, havia declarado que Aldo lhe oferecera 10 mil réis para que ela levasse Castu ao quarto dele. E 100 mil réis à menina.
Já é tarde da noite. Aldo volta à pensão e encontra o quarto todo revirado. Hóspede e hospedeira discutem. “Eu disse a ele tudo o que um homem pode ouvir de mau a seu respeito”, contou dona Rita ao delegado, durante a investigação do crime. Disse também que o agrônomo por duas vezes colocou a mão ao cinto, ameaçando tirar o revólver. (Usava-se arma como quem usa relógio, naquele Goiás).
Em seguida, Aldo procura o promotor e o advogado com os quais Americano do Brasil tinha divergências. Discutem os interesses do historiador em prejudicar os três, incluindo o promotor, que havia pedido a anulação do inquérito de defloramento da menina.
Naquele madrugada, nenhuma pensão recebe o agrônomo acusado. Na manhã seguinte, ele mata Americano do Brasil.
Preso em flagrante, declara: “Toda a história que rematou com o epílogo que se conhece é muito longa. Não vale a pena ser contada. Além do mais, existem aí no meio coisas íntimas para cuja revelação seria necessário que o doutor Americano ainda existisse”.
Viriato e Maria
Viriato de Castro, 82 anos, é neto de Viriato de Castro. O avô Viriato teve 32 filhos, de três mulheres, mas ele ficou na história de Brasília por ter sido guia da Missão Cruls, em fins do século 19. Viriato, o neto, é casado há 60 anos com Maria Clemente de Castro, 77. Moram na mesma casa, na zona rural de Planaltina, desde o casamento.
Quando perguntada sobre o amor, Maria respondeu:
— Naquele tempo, não tinha essa melosidade.
Viriato e Maria se conhecem desde que ele tinha 8 e ela, 3 anos. Viviam em fazendas a léguas de distância uma da outra, mas se viam nos fins de semana e nas festas religiosas. A primeira lembrança que ele tem da menina de seus encantos é de eles dois correndo atrás de um sapato dela que tinha ficado para trás durante um jogo de bola. “Ela ia buscar leite no curral de Joaquim Mineiro, e eu ia atrás, sempre gostando dela.”
Cresceram conversando ao pé de uma barriguda de raízes acima da terra. Adolescente, Viriato namorava Maria e mais umas três. “O nome da gente corria. Eu era bom rapaz, trabalhador. Ninguém trabalhava mais do que eu. Podia trabalhar igual, mas mais duvido. As moças me davam lugar, mas para casar era Maria. Eu saía para as festas e voltava com o dia amanhecendo.”
Foi preciso esperar até que a moça fizesse 16 anos, para que pudessem se casar. No dia de ir resolver os papéis, na igreja da cidade, Viriato pôs Maria na garupa do cavalo e saíram no rumo de Planaltina. Um fazendeiro viu e foi na casa do pai da moça: “Como é que você entrega Maria para Viriato levar sozinho?”. Ao que o futuro sogro respondeu: “Se eu não tenho confiança de ele carregar ela sozinha, vou ter confiança de ele casar com ela?”.
Casaram-se na igrejinha de São Sebastião e de lá seguiram a pé até o cartório, na prefeitura. Montaram no cavalo e voltaram para a fazenda. Alguns vizinhos foram chegando, juntaram-se em volta da mesa e jogaram truco até de madrugada. Depois que os amigos foram embora, Viriato e Maria ficaram sozinhos num quarto pela primeira vez. Sobre esse assunto, eles não falam. Fazem de conta que não entenderam a pergunta, por mais cuidadosa que tenha sido.
Tertulina
O andar vagaroso, a voz mansa, os olhinhos claros e miúdos e os 94 anos escondem uma mulher que trabalha desde que se entende por gente. Criada na roça, Tertulina de Barros Nogueira começou a cozinhar tão logo deu conta de subir no caixote e alcançar as panelas no fogão a lenha. A lida começava com o clarear do dia. “Não tinha prazo de pentear o cabelo, botava o tuntum, e só no domingo é que dava para lavar e pentear o cabelo e cortar as unhas.” (Tuntum era o pano com o qual as meninas cobriam a cabeça para que ninguém as visse despenteadas).
O que diferenciava a lida das meninas da dos meninos é que elas não capinavam. Mas o historiador Mário de Castro diz que essa era uma singularidade da família de dona Tertulina, porque, no Sertão goiano dos séculos passados, meninas e meninos trabalhavam em igualdade de condições. “Fazia queijo, farinha, rapadura, fazia tear, puxava água de cisterna, cuidava da casa. Era de manhã até a hora de ir dormir. Eu não tive formatura de nada, só aprendi a assinar o nome”, conta ela.
Casou-se aos 14 anos com Antônio Cardoso de Oliveira, o Tião Alfaiate. Mudaram-se para a cidade de Planaltina e a lida continuou a mesma. O marido a ensinou a costurar, e os dois varavam os dias e aproveitavam o pouco de luz elétrica que havia à noite para fazerem as camisas, as calças e os paletós dos homens da cidade.
A menina Tertulina se assustou quando ficou menstruada (“Fiquei apavorada, naquele tempo não tinha o acolhimento que tem hoje”). Também se assustou quando soube o que acontecia na noite do casamento. Obedecia ao marido do mesmo modo que obedecia ao pai (“Ele era muito sistemático. O que ele falasse, eu tinha que fazer”).
A bela Tertulina não podia sair de casa. “Não podia ir na padaria, nem na casa da vizinha. Só ia ao Muquém. Ficava na barraca e até para ir ao banheiro ia escoltada.” O marido acompanhava a mulher nas idas ao banheiro. O Muquém é uma romaria para Nossa Senhora d’Ábadia que existe em Niquelândia desde o século 18.
Quando a televisão chegou a Planaltina, Tertulina também não podia se distrair no descanso da noite. Porque o casal continuava na máquina de costura e porque ele dizia que a mulher queria ver tevê para namorar o Antônio Fagundes.
Teve cinco filhos, aos quais servia a comida no prato, como servia a do marido e lhe dava a toalha na mão para o banho diário. Cuidava da horta, lavava na mão a roupa da família, torrava café, fazia sabão.
— Não tive prazo para ter alegria.
Tião Alfaiate morreu em 2007, quando Tertulina já estava com 82 anos.