Quatro palavras ditas por uma adolescente pegaram a atriz Maria Gladys, 81 anos, de surpresa: “Quem é Leila Diniz?”. “Falei: pergunta para o seu pai que ele vai poder te explicar. A menina ficou me olhando com uma cara de boboca”, relata, bem-humorada, uma das personalidades mais importantes do Cinema Novo e do Cinema Marginal.

Reviver a memória de Leila Diniz para uma geração que, felizmente, já não se choca com uma mulher grávida de biquíni na praia é uma das propostas do filme Já Que Ninguém Me Tira Para Dançar, da diretora e produtora Ana Maria Magalhães, que estreia neste mês como parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O título também ficará disponível pelo serviço de streaming do Itaú Cultural, apoiador do projeto.

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A primeira versão do filme é de 1982 — quando a morte de Leila Diniz completou 10 anos. Permanece inédita até hoje, agora retrabalhada após anos guardada na Cinemateca Brasileira. A trilha sonora de Fernando Moura também é novidade. “Cerca de 40% das imagens que usamos são novas e 60%, reaproveitadas”, relata Ana Maria Magalhães.

A nova obra é coproduzida pelo portal Metrópoles. “Fazendo um documentário sobre o Festival de Cinema de Brasília comentei com um entrevistado sobre minha admiração pela Leila Diniz. Afinal, conversávamos na beira da piscina do Hotel Nacional, que Leila fez tão famosa. Ele ligou para a Ana Maria na mesma hora e nos apresentou. Mantivemos contato e depois nos conhecemos no Rio de Janeiro. Participar de um projeto sobre este ícone é um sonho para mim, ainda mais com uma diretora pioneira no cinema brasileiro”, relata o coprodutor Lino Meireles.

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Como muita gente, ele conheceu Leila Diniz ao assistir Todas as Mulheres do Mundo, filme de 1967 que inspirou a série homônima lançada em 2020. “Todo mundo se apaixona pela personagem Maria Alice. Só que, obviamente, trata-se de uma ficção. A Leila real é muito mais fascinante; politicamente engajada, feminista, libertária. Ela promovia a essência da arte, que é a liberdade”, afirma.

“Leila Diniz significa muito para a cultura brasileira e deve ser relembrada não só pelo que fez em vida, mas pelo que ainda poderia ter feito”

Lino Meireles,
coprodutor

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As cenas de Já Que Ninguém Me Tira Para Dançar reúnem registros da cultura carioca dos anos de 1960 e mostram a influência de Leila Diniz na sociedade brasileira para muito além da icônica foto de biquíni com a barriga gestante banhada de sol. Exibem a faceta política da atriz, durante a ditadura, seus afetos e sua autenticidade — que já foi alvo de críticas tanto à direita quanto à esquerda, já naquela época.

“Leila era generosa e solidária de uma maneira muito real, não tem nada a ver com essa noção de sororidade que alguns vendem hoje em dia e que, para mim, soa hipócrita. Quero trazer a Leila para falar de novo. Muito do pensamento dela continua relevante”

Ana Maria Magalhães,
diretora

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O filme reconstrói a trajetória da atriz também por meio de encenações e depoimentos, entre eles os de Maria Gladys, Marieta Severo, Domingos Oliveira e Paulo José, todos filmados ainda na década de 1980. Já Que Ninguém Me Tira Para Dançar faz uma conexão entre o passado, o presente e o que supera os limites do tempo. É um diálogo entre épocas, uma conversa profunda entre amigas.

Se estivesse viva, Leila Diniz teria 76 anos. “É muito difícil trabalhar com o ‘e se’, mas arrisco dizer que ela não seria uma feminista burguesa, careta, ortodoxa. Acho que ela ia tirar muito sarro dessa sociedade, por outro lado, estaria muito revoltada com todos esses feminicídios. Penso que teria um canal no YouTube, não estaria fazendo novela”, diz a diretora.

No filme, enquanto são exibidas imagens atuais do Rio de Janeiro, a voz de Ana Maria Magalhães narra: “Leila, você ia ter milhões de seguidores”. “Leila lamentava que a TV não fosse a cores, e agora pode ser vista em todos os seus tons por uma audiência que talvez não saiba, mas segue seus passos”, afirma Ana Maria.

Passos esses que circularam por Ipanema, Copacabana, pela Tijuca, por Santa Teresa e pelo mundo, até serem parados por um acidente de avião. Aos 27 anos, Leila voltava da Austrália, onde participou de um festival, quando o voo 471 da Japan Airlines com destino ao Brasil caiu.

Leiluska e Gladuska

As pessoas que esperavam por Leila naquele 14 de junho de 1972 ainda hoje guardam a memória da expectativa de um encontro que nunca aconteceu.

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“Na época daquela maldita ditadura, eu fui para Paris e Leila ficou no Brasil. A gente tinha combinado de ela ir me ver quando voltasse do maldito festival. Eu estava em um restaurante quando um amigo me contou: um avião caiu e Leila Diniz estava nele. Passei a noite andando pelas ruas desnorteada, sozinha, querendo alguém para falar sobre aquilo e ninguém ali sabia quem era Leila Diniz”, lembra Maria Gladys.

As duas ficaram amigas após terem se conhecido em um bar no Posto 6. “Leila era bem novinha e me chamou a atenção por ser garota solta que nem eu. Ela usava uma saia branca, blusa preta e meias pretas naquela noite. A primeira coisa que ouvi foi ela contando que era amiga de um porteiro que deixava ela dormir na escada de um prédio da zona sul até o dia clarear, para depois voltar para casa, em Santa Teresa”, lembra Gladys.

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Elas se chamavam pelos apelidos carinhosos de Gladuska e Leiluska, inspirados em personagens de Fiódor Dostoiévski. Gostavam de ir à praia com “os pentelhos ao léu”. “Essa era a frase da Leila, não tinha essa de depilar as pernas, a virilha, para ir à praia. Agora tem uns jovens muito caretas.” A amiga também lembra que Leila fazia piada com as outras meninas do grupo que “só gostavam de intelectual”.

“Ela dizia que a gente era muito chata e só queria saber de homem cabeça. Leila namorava um galã de novela e uns caras que não tinham nada com isso. Ela nunca seria uma mulher careta, de jeito nenhum, estava na frente de tudo isso. O que aconteceu com ela foi uma coisa terrível, uma merda muito grande”, diz.

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Gladys conta que Leila não era a primeira opção para protagonizar o filme Mãos Vazias, de Luiz Carlos Lacerda, que a levou à Austrália e, consequentemente, a embarcar no avião que caiu.

“Era para eu ter feito aquele papel, mas recusei porque estava muito apaixonada por uma figura, que não vou dizer quem é, e ele ficou botando pilha para eu não aceitar porque pagava pouco. Eu teria ido ao festival, mas nunca teria entrado naquele avião para o Brasil, eu era dura, sou até hoje, mas queria ficar por aí no mundo.”

Gladys e Leila foram amigas durante toda a vida, mesmo quando tomaram rumos diferentes. “Eu comecei a fumar maconha, tomar ácido, mudei tudo na minha vida: deixei de usar maquiagem, parei de querer ter cabelo liso. Foi uma revolução na minha vida. A Leila não era disso, não tava desbundada fumando maconha não. Ela tava em outra, tinha uma loja com a Vera, teve uma filha.”

“A morte para o jovem é muito forte, quando morre alguém assim é uma porrada. Nem gosto de lembrar disso. Jovem não pode morrer”

Maria Gladys

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Leiloca e Verinha

A amiga Vera Barreto também fazia parte da turma que se encontrava no Posto 6. Com uma extensa carreira no cinema, também é atriz do Teatro Oficina e foi modelo de marcas como Chanel, nos anos de 1950 e 1960. “Leila tinha feito um dinheirinho e a gente ia gastar em Londres, onde eu estava, mas o encontro nunca aconteceu. Leila está sempre comigo, a memória dela, seu pensamento, nunca nos abandonou”, relata Vera.

A atriz compartilha algumas de suas memórias favoritas ao lado de Leiloca, como a chamava. “Ela afrontava como uma feminista feroz. Quando tinha muita gente em volta insistindo em ser fã, Leiloca tirava o seio para fora e fazia como se estivesse espirrando leite na cara das pessoas. Ela desarmava as pessoas completamente e aquilo virava uma grande ofensa ou uma grande gargalhada. Saíamos andando sem olhar para trás.”

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Em outra ocasião, já grávida, Leila Diniz chegou ao aeroporto, ao lado de Vera, para embarcar vestida em uma minibata, e todos os olhares se voltaram para ela. “O aeroporto cheio de milicos com suas filhas e esposas matronas. Leila seminua, eu e minha mãe ficamos geladas. Leila disse: sem essa. Cantava ‘o tico-tico lá, o tico-tico cá’ e foi atravessando o saguão dançando até chegar no ponto de embarque. Todos abriam alas e aplaudiam Leila. Foi uma coisa mágica”, lembra Vera.

Leila é “tudo o que há de mais para frente ainda hoje”, define Vera. “Ao mesmo tempo que era uma estrela global, ela acolhia na casa dela, um apartamento minúsculo, vários perseguidos pela ditadura. Leila é o imprevisível. Ainda não sei como poderia compará-la a uma jovem de hoje. Leila é coragem, ousadia, beleza, grandeza, generosidade e paixão.”

Trechos de edição histórica do Pasquim de 1972 em homenagem a Leila Diniz:

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Leila por Leila

Leia abaixo trechos da entrevista histórica que Leila concedeu ao Pasquim e foi alvo de censura durante a ditadura. Ela teve de assinar no Departamento de Ordem Política e Social um documento redigido pelos militares que a proibia de voltar a falar palavrão em público.

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Leila por Leilane

À procura de Leila Diniz

Adoraria poder dizer que conheci Leila Diniz na fila do banheiro de um bar. É fato que nos desencontramos por um detalhe: Leila morreu em 1972, e eu nasci em 1987. Talvez essa conexão tenha surgido durante um almoço de família, aqueles com a TV ligada como barulho de fundo, cheia de imagens de gente famosa – viva ou morta – em um carrossel. Quem sabe alguma tia tenha usado a expressão “Como diz Leila Diniz…” durante a minha infância como Gladys fez na anedota que ilustra a abertura deste texto.

Diferentemente da menina que não conhecia Leila, para mim o nome soa familiar. Quinze anos separam o meu nascimento da morte de Leila. Revisitá-la me faz pensar sobre como preservamos a memória de quem pavimentou nossos caminhos. Por que seria relevante, em dias tão cheios de influencers e opiniões, “trazer de volta” alguém como Leila Diniz?

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Livros, reportagens, áudios, vídeos e tantas outras formas de tesouros mantêm viva a narrativa dos corpos que inevitavelmente se desfazem. A entrevista de Leila Diniz ao Pasquim é um dos relatos mais citados quando se tenta conhecê-la.

Na foto, há uma Leila de cabelos cobertos por uma toalha branca, sem maquiagem, num bate-papo entre amigos. Os entrevistadores são três homens. Um deles, o célebre cartunista Jaguar, pergunta: “Foi seu psicanalista que mandou você dizer palavrão?”. Leila argumenta que uma mulher é capaz de tomar as próprias decisões. Ela acha gostoso dizer palavrão, afirma que aprendeu a se desinibir dançando e nadando no mar. Emenda falas conscientes e vulneráveis sobre a importância de cuidar da saúde mental.

Outro entrevistador, Sérgio Cabral, só quer saber: “Você deu para o seu analista?”. E Tarso de Castro acha relevante destacar: “Mas você não se apaixonou pelo seu psicanalista?”. Se aquela entrevista tornou-se célebre, e ainda hoje exerce algum fascínio, foi pela capacidade que Leila Diniz tinha de responder a questionamentos machistas com uma certa superioridade intelectual natural.

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Em outro momento da conversa, Leila destaca sua criação burguesa, seus privilégios, sua limitação, a falta de intenção de se tornar símbolo de uma transformação social. Na entrevista, há passagens que seriam motivo de cancelamento atualmente – como quando Leila fala sobre lésbicas ou homens negros. Leila foi recriminada por conservadores e progressistas à época, inclusive sob acusação de “estar a serviço dos homens”.

A entrevista ao Pasquim é um marco na história brasileira sobre a liberdade de expressão. Dois meses após a publicação do texto – que tinha asteriscos no lugar dos palavrões -, o regime militar brasileiro baixou o Decreto 1.077. Esse, popularmente conhecido como “Decreto Leila Diniz”, passou a permitir a censura prévia à imprensa.

Leila Diniz foi Leila Diniz por ser uma mulher branca de classe média no Brasil dos anos 1950/1960 – mulheres negras não eram reconhecidas como “quebradoras de tabus”, pois estavam ocupadas demais tentando sobreviver. Leila é a namoradinha que o Brasil queria editar e maquiar antes de apresentar à família na ceia de Natal, mas diante da qual o país não conseguia esconder seu fascínio.

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Leila Diniz fez uma sociedade careta tentar entender que uma mulher grávida talvez gostasse de sexo e poderia desejar ir à praia com os pelos da virilha à mostra, só para curtir um banho de sol sobre a sua barriga cheia de vida.

Exigir de uma mulher que ela esteja completamente à frente do próprio tempo soa como mais um padrão inalcançável. Em 2021, temos agora a oportunidade de – num ritmo solto, livre e imperfeito – convidar Leila Diniz para dançar.

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