Em 2 de setembro de 2016, uma batida policial no edifício sede do Palácio do Buriti expôs publicamente a investigação que apurava esquema de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e extorsão envolvendo funcionários com trânsito no primeiro escalão do GDF. Àquela altura, o alvo era um personagem do submundo da política candanga com participação coadjuvante em escândalos distritais. No mesmo dia em que os agentes levaram pilhas de documentos e equipamentos da Casa Militar, vizinha ao gabinete de onde despacha o governador, eles também conduziram João Dias Ferreira para depor na Polícia Civil.
Sete meses depois, os investigadores têm convicção de que naquele 2 de setembro haviam puxado apenas o fio de uma meada que leva a personagens graúdos do cenário político local. O ex-governador Agnelo Queiroz (PT) e o ex-secretário de Saúde Rafael Barbosa também são objeto da operação batizada de Palácio Real.
Confira imagens da operação realizada em setembro:
A Polícia apura se os petistas teriam usado recursos públicos e de empresas contratadas pelo GDF para comprar o silêncio de João Dias, descrito nas investigações como um chantagista. PM reformado, ele guarda informações desde que vieram a público, em 2010, denúncias de desvio de dinheiro do programa Segundo Tempo, vinculado ao Ministério do Esporte. À época, João Dias presidia uma federação de Kung-Fu no DF que era beneficiária do projeto gerido pelo ministério. Agnelo Queiroz comandou a pasta entre 2003 e 2006.
Durante as buscas da Palácio Real, foram apreendidas anotações que supostamente apontavam pagamentos de propina de pessoas ligadas ao ex-governador para João Dias. Na diligência feita na mansão do militar, em Sobradinho, também foram recolhidos dois calhamaços robustos de cheques já preenchidos, vários celulares e pen drives com gravações de áudios e vídeos que mostram encontros entre o PM e integrantes do alto escalão do então governo de Agnelo.
Um dos personagens que aparecem nas mídias é Cirlândio Martins. Coronel da Polícia Militar reformado, ele ocupava o cargo de subsecretário de Programas Comunitários da Secretaria de Segurança Pública na administração petista. Permaneceu no governo durante a gestão de Rollemberg como chefe de gabinete da Casa Militar até sua exoneração em 24 de agosto de 2016.
Em uma das gravações, Cirlândio revela detalhes sobre o suposto esquema agora alvo de investigação. Os nomes de Agnelo Queiroz e Rafael Barbosa são citados várias vezes. João Dias tinha o costume de registrar conversas com seus interlocutores. Todo o material foi encaminhado à 7ª Vara Criminal de Brasília, responsável por expedir eventuais mandados de prisão, busca e apreensão, além de condução coercitiva.
O conteúdo do inquérito policial, que é sigiloso, também está em posse do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Atualmente, Cirlândio dedica-se a sua empresa de investigação particular, que funciona em duas salas do Bloco E do complexo Brasil 21. Além da firma de espionagem, o coronel considerado o principal elo entre João Dias e Agnelo Queiroz dedica-se a recrutar parceiros para atuar em empresa no estilo das pirâmides.
Recentemente, ele enviou em suas redes de relacionamento o seguinte convite: “Aposentei da PM e agora estou trabalhando com uma empresa multinacional que é a maior do mundo no seu ramo. Ela está dando a oportunidade para que nós sejamos parceiros. Fatura bilhões por ano e você pode fazer parte desta parceria, vamos ganhar dinheiro juntos e dar uma revirada na sua vida financeira?”.
Mas não é só. O multifacetado coronel reformado alvo da Palácio Real também compõe música sertaneja. O novo sucesso, já disponível no YouTube, é “Hoje eu vou pegar você”, interpretado pelo cantor Marcos Vinicius.
O depoimento de Márcia
Os investigadores à frente da operação Palácio Real ouviram, em janeiro deste ano, a então secretária de Segurança Pública e da Paz Social, Márcia de Alencar. Eles queriam entender a atuação de Cirlândio no governo, já que ele ocupara cargos de destaque em áreas tangentes à pasta que Márcia comandava. Qualquer envolvimento dela no suposto esquema de corrupção investigado, entretanto, foi descartado.
Dinheiro na mesa
O episódio que desencadeou a investigação da Palácio Real ocorreu em 2011, quando João Dias invadiu o gabinete do então secretário de Governo e atual conselheiro do Tribunal de Contas do DF (TCDF) Paulo Tadeu. Àquela época, Paulo Tadeu era o segundo homem no organograma do GDF, considerado tão influente quanto o próprio governador. Na ocasião, o policial militar, em meio a bravatas, jogou R$ 159 mil em cima da mesa de uma secretária de Paulo Tadeu.
Ao explicar sua atitude prosaica durante depoimento na 5ª Delegacia de Polícia, João Dias disse que o dinheiro esparramado na mesa da secretária de Paulo Tadeu viera de recursos públicos. Ele foi solto após pagar fiança de R$ 2 mil, mas acabou autuado por agressão e injúria porque teria atacado funcionários do gabinete com ofensas de cunho racista.
Amizade antiga
As relações entre João Dias, Agnelo e Rafael Barbosa são de longa data. O PM chegou a ser preso na Operação Shaolin, deflagrada em 2010 para desmontar um esquema de corrupção no Ministério do Esporte. O episódio resultou na demissão do ex-ministro Orlando Silva e expôs Agnelo Queiroz, pois João Dias afirmou publicamente à época que os desvios de verbas no programa Segundo Tempo teriam começado quando o petista comandava a pasta. O ex-governador sempre negou qualquer envolvimento no caso e nunca foi alvo de ação judicial referente ao episódio.
Segundo as investigações da Polícia Federal feitas na ocasião, a origem das irregularidades seria o repasse de R$ 2,9 milhões para as federações Brasiliense de Kung Fu (Febrak) e Associação João Dias de Kung Fu. As entidades teriam de desenvolver atividades desportivas com 10 mil alunos da rede pública de ensino enquanto não estavam em sala de aula.
Segundo a polícia, no entanto, as associações presididas por João Dias receberam quase a totalidade do dinheiro dos convênios sem prestar os serviços combinados. A investigação sustenta que as ONGs de Dias forjavam a compra de materiais que seriam usados durante as atividades com as crianças. As associações teriam atuado em conluio com empresas que forneciam notas fiscais frias para driblar a fiscalização do ministério. O objetivo das investigações era descobrir se o dinheiro desviado teria sido usado para financiar campanhas políticas. ´
Expulsão
Em dezembro de 2016, o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (CGU) expulsou sete servidores do Ministério do Esporte envolvidos em fraudes na execução do Programa Segundo Tempo. Entre os atingidos, estava o ex-secretário de Saúde do DF Rafael Barbosa, um dos nomes mais próximos de Agnelo. A punição ocorreu cinco anos depois das denúncias, quando Barbosa já não trabalhava mais na pasta. Com a medida, no entanto, ele e os outros seis servidores que responderam pela prática de atos de improbidade administrativa e utilização do cargo para obtenção de vantagem pessoal ou para terceiros ficaram impedidos de retornar ao serviço público federal.
Barbosa era secretário-geral do Ministério do Esporte no período em que virou objeto de investigação da PF, ao lado do secretário executivo da pasta, Wadson Ribeiro. Os dois foram responsabilizados por liberar os recursos para as instituições de João Dias.
Mais encrenca
Como ex-secretário de Saúde do DF, Rafael Barbosa também é investigado pela Polícia e pelo MPDFT por suposta prática de improbidade administrativa e de lesão ao patrimônio público.
São apuradas irregularidades na contratação do Instituto de Doenças Renais (IDR) e do Instituto de Doenças Renais de Ceilândia (IDRC) pelo GDF. A ex-mulher de Barbosa, Andrea de Paula Bertolacini, foi sócia das duas empresas, que teriam recebido R$ 28,4 milhões do governo local.
A ação civil pública proposta pela Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e Social (Prodep) aponta que os institutos teriam sido administrados de forma fraudulenta com o intuito de lesar os cofres públicos e repassar verbas ilícitas ao então secretário.
“Cumpre registrar que o primeiro requerido, Rafael de Aguiar Barbosa, nunca se afastou das decisões administrativas da clínica, demonstrando que enquanto atuava como secretário de Saúde do Distrito Federal, também defendia os interesses do Instituto de Doenças Renais relativos ao Contrato 22/2010, garantindo suas prorrogações e acelerando os procedimentos de deferimento de reajustamento dos valores, mesmo sabendo da ilegalidade do contrato, ante a existência de sócios servidores no quadro social”, apontam os promotores na ação.
Relatórios anexados à peça processual também informam uma típica conduta de lavagem de dinheiro praticada pelos denunciados. Segundo os promotores que assinam a ação, “os sócios antecipavam o pagamento de despesas do Instituto de Doenças Renais com dinheiro sem origem lícita, provavelmente decorrente de crimes contra a administração pública, ou seja, propinas”. A ação de improbidade descreve, em detalhes, o mecanismo de lavagem. Até hoje a ação está em fase de defesa prévia no Ministério Público e ainda não foi aceita pela Justiça.
O Metrópoles ligou e enviou mensagens para Agnelo Queiroz, Rafael Barbosa, Cirlândio Martins e João Dias. Mas, até a última atualização desta reportagem, nenhum dos citados retornou os contatos.