Pelo direito de ser:

Adolescentes trans travam batalha para viver plenamente

Por Ranyelle Andrade

31/12/2021 5:30

A personalidade introvertida quase não deixa a voz sair, mas as cicatrizes pelo corpo dizem muito sobre o histórico de violação de direitos vividos por G., de 14 anos. Ao buscar orientação médica para lidar com sua disforia de gênero, em 2016, os profissionais do Adolescentro, na 605 Sul, não tiveram dúvida de que o caso merecia atenção especial. Ainda que, na época, tivesse apenas 10 anos – dois a menos do que o público-alvo do local, considerado referência em Brasília no acolhimento a pessoas trans com idades entre 12 e 18 anos –, a garota não encontrou dificuldades para ser atendida.

A infância marcada por episódios de violência, transfobia e automutilação, por causa do desconforto acentuado com o corpo masculino, sensibilizou os médicos. Após consultas, exames e muita conversa, a equipe decidiu, por unanimidade, iniciar seu tratamento com bloqueadores de puberdade.

Em casos como o de G., essa classe de remédios serve para frear o desenvolvimento de características do sexo masculino, pausando a tortura que a avalanche de mudanças físicas e biológicas pode se tornar para uma criança, presa em um corpo oposto à sua identidade de gênero.

Aos 14 anos, G. trava uma batalha no TJDFT para que a Secretária de Saúde do Distrito Federal forneça os bloqueadores de puberdade gratuitamente. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Se por um lado a admissão no Adolescentro trouxe alívio, por outro, a ausência de protocolos para oferta do bloqueador na rede pública de saúde colocou a adolescente e a mãe diante de um novo — e grande — desafio, até mesmo para o Poder Judiciário. Hoje, a menina de 14 anos trava uma batalha no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) para que a Secretária de Saúde do Distrito Federal forneça o medicamento gratuitamente.

O processo, que corre em segredo de justiça, já teve duas sentenças desfavoráveis. Se o entendimento dos magistrados que analisam recurso impetrado pela Defensoria Pública do DF mudar, o caso pode abrir precedente para outras pessoas na mesma situação.

glossário

Transgeneridade

Refere-se à condição na qual a expressão de gênero e/ou identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquelas atribuídas ao gênero designado no nascimento.

Disforia de gênero

Caracteriza-se por identificação forte e persistente com o gênero oposto, associada a ansiedade, depressão e irritabilidade. Frequentemente, pessoas com essa condição acreditam que são vítimas de um acidente biológico e têm medo de permanecerem aprisionadas a um corpo incompatível com sua identidade de gênero subjetiva.

Bloqueador de Puberdade

Os bloqueadores da puberdade são uma classe de medicamentos que pausam os efeitos dos hormônios sexuais produzidos pelo corpo, sendo capazes de retardar a puberdade, seja por pacientes endocrinológicos cisgêneros ou em transgêneros que sentem desconforto com o desenvolvimento de características sexuais indesejáveis.

Hormônios

Diferentemente dos bloqueadores, os hormônios administrados no processo transexualizador — testosterona ou estrogênio —  têm uso vetado na infância. Eles promovem o desenvolvimento de características sexuais diferentes daquelas do sexo que o indivíduo teve designado ao nascer. No Brasil, podem ser usados apenas a partir dos 16 anos, conforme resolução do CFM, que também estabelece acompanhamento obrigatório por especialistas.

Uso off label

A expressão off label refere-se ao uso de medicamentos em condições diversas daquelas que constam na bula do produto. Tais situações incluem faixas etárias, vias de administração, posologias e indicações diferentes das aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A prática não é proibida no Brasil, e os médicos têm liberdade para prescrever o que considerarem mais adequado para o paciente, desde que com consentimento.

Embora a triptorrelina, tipo de bloqueador indicado à garota, seja disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para pacientes cisgêneros com diagnóstico de puberdade precoce, o acesso via SUS para crianças com disforia de gênero depende da formulação de uma política de atenção a esse público, o que ainda não existe.

O uso off-label do bloqueador, ou seja, que não segue as indicações homologadas para aquele fármaco, foi autorizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para a terapia de crianças e adolescentes com disforia por meio da Resolução 2.265, publicada em 2020.

Antes, não havia regulamentação sobre o tema, definido apenas por meio de pareceres específicos. Atualmente, o procedimento pode ser realizado nos primeiros sinais da puberdade, seguindo uma metodologia chamada escala de Tanner, em caráter de pesquisa, por hospitais universitários ou referência para o Sistema Único de Saúde. O consentimento dos pais também é um pré-requisito.

Sem notícias sobre o paradeiro do pai desde os 8 anos de idade, G. mora em uma área periférica de Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal, cursa o ensino fundamental em uma escola pública e depende de programas de transferência de renda para viver. A mãe, Mércia, está desempregada desde 2019. Custear os medicamentos, cujo preço estimado é de R$ 250 e precisam ser administrados a cada 28 dias, nunca foi uma opção para a família. Nem ficar sem eles.

Enquanto aguarda a sentença do TJDFT, G. depende da vaquinha de médicos para ter acesso aos remédios. Mércia tem medo de que a ajuda cesse, e a filha volte a sofrer com a violência e os sintomas da disforia. A condição, que, de acordo com o Manual Diagnóstico, é caracterizada pela identificação forte e persistente com o gênero oposto, associada a ansiedade, depressão e irritabilidade, deixou vários traumas na adolescente e marcas na memória da família.

Desde quando ouviu G. dizer, aos 5 anos de idade, que se sentia uma menina, as duas sofrem episódios de transfobia, incluindo bullying e agressão psicológica de parentes próximos. Em um deles, G. teve o cabelo raspado sem sua autorização. “Trabalhava como cuidadora e precisava dormir no emprego. Ela ficava com meu pai e meu irmão, e eles não aceitavam. Diziam ‘se você nasceu homem, precisa parecer e se comportar como homem’. Um dia, cortaram o cabelo dela, que estava crescendo bonito. Eu só fui ver no dia seguinte”, lembra a mãe da garota.

O contexto de violação de direitos levou a menina a um quadro preocupante. “Ela tinha surtos, subia no telhado das casas e ficava gritando. Eu só vivia no hospital com ela, dormindo no chão. Minha filha chegou a ficar 15 dias internada. O psiquiatra me disse que era sofrimento. Ela estava sofrendo muito.”

Assim que a filha completou 10 anos, Mércia resolveu deixar a casa dos pais, em Brazlândia, encontrar um lugar seguro para morar com a filha e buscar ajuda. Foi quando chegou ao Adolescentro. “Eu estava muito desesperada. A atendente disse que eles só recebiam pessoas com mais de 12 anos, mas ao me ouvir ela teve uma atitude humana, sabe? Abriu uma exceção, falou com os médicos, e estamos lá até hoje”, comentou Mércia, sobre a admissão precoce da filha no centro.

A chegada de G. ao local também foi marcante para a ginecologista Giani Cezimbra, uma das cinco profissionais que acompanham a garota na unidade de saúde. “O atendimento dessa adolescente foi bastante desafiador para a gente, porque ela chegou aqui com uma idade muito precoce, com 10 pra 11 anos, e uma disforia forte. Era uma criança com comportamentos e manifestações de transgeneridade desde muito cedo”, lembra.

“O atendimento dessa adolescente foi bastante desafiador para a gente”, explica a ginecologista Giani Cezimbra. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Giani explica que a condição de transgênero pode vir ou não associada à disforia. Essa, por sua vez, também tem diferentes intensidades. Nos casos mais graves, como o de G., o bloqueador é indispensável para a manutenção da saúde mental. “O que a gente vê nesse caso é que quando ela está fazendo o bloqueio fica mais tranquila, mais satisfeita com o próprio corpo. Quando a gente não consegue aplicar o bloqueador, por fatores sociais, porque ele ainda não é disponibilizado na Secretaria [de Saúde], a gente vê que ela se desestabiliza mais.”

Em um parecer técnico emitido a pedido de magistrados que analisam o caso de G. no TJDFT, o Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário reconheceu o sofrimento da adolescente, destacando que ela apresenta sintomas de ansiedade, medo e dificuldade para dormir, além de tendência ao isolamento e ideação suicida por causa da disforia. O documento admite, ainda, que não há outra tecnologia disponível no SUS capaz de substituir o bloqueio. Porém, sem indicação e aprovação em bula da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a conclusão considerou o pedido como “não justificado”.

O defensor público Ronan Ferreira Figueiredo, que atua no processo, discorda da avaliação. “Não é um medicamento de uso proibido: é aprovado pela Anvisa e está disponível na rede pública de saúde para tratamentos, como puberdade precoce. Ainda que seja considerado off-label, os requisitos definidos por precedentes judiciais estão presentes nesse caso: há prescrição médica, não existe outra alternativa de tratamento, e a adolescente está sendo acompanhada por uma equipe multidisciplinar, em um centro de referência. Além disso, a família já comprovou que não pode arcar com o custo”, salienta.

Segundo Figueiredo, a família da garota entrou com um pedido de liminar, que foi negado. Ao recorrer, chegou a receber o medicamento por cerca de seis meses, até que a sentença negando o provimento interrompesse o tratamento. “Atualmente, o caso aguarda o julgamento da apelação. O movimento mais recente foi um parecer favorável e muito importante do Ministério Público, que atua em 2º grau. O próximo passo é designar uma data para o julgamento. Antes, a defensoria deve apresentar uma memória e fazer a sustentação oral, para falar sobre a importância do caso”, pontua.

A gente está falando de uma criança, agora uma adolescente, que o Estado precisa garantir acesso à saúde

Ronan Ferreira Figueiredo,
defensor público

“Tenho certeza de que essa não é a primeira batalha dessa menina, nem vai ser a última como transexual, mulher e pobre. Mas é um resultado muito importante”, frisa.

Segurança para
a população
trans

Apesar de o bloqueio ser frequentemente associado às terapias hormonais, a resolução do CFM é clara ao proibir o uso de hormônios antes dos 16 anos — já a última norma do Ministério da Saúde sobre o Processo Transexualizador, a Portaria nº 2.803, de 2013, fala em 18 anos e sequer menciona os termos criança e adolescente.

No Distrito Federal, o atendimento ao público T é realizado em dois locais: no Adolescentro e no Ambulatório Trans. Crédito: Gustavo Moreno/Metrópoles

No Distrito Federal, o atendimento ao público T é realizado em dois locais: no Adolescentro, para pessoas de 12 a 18 anos, e no Ambulatório Trans, criado em 2017, para oferecer atendimento psicossocial, avaliação de sofrimento pela identidade de gênero e diagnóstico de transtornos mentais para maiores de idade. Os bloqueadores, contudo, não estão disponíveis – assim como os hormônios para maiores de 18 anos, previstos pelo Ministério da Saúde, mas condicionados à “aprovação do repasse de recursos financeiros e à disponibilidade orçamentária da pasta”.

Assim, crianças com idade inferior a 12 anos ficam, frequentemente, desamparadas. “Como esses dois serviços existem e são reconhecidos, é muito comum chegarem aqui, geralmente mães, sem saber o que fazem com o filho. Às vezes, conseguimos dar um jeito. Mas imagina uma criança de 6 anos que vai precisar ser acompanhada por um longo período. Dependendo do caso, a gente conversa, por telefone, videochamada ou WhatsApp. Mas esse é um grande furo”, avalia o médico da família do Adolescentro Luiz Fernando Marques.

O médico da família Luiz Fernando Marques acredita que a pessoa estar em conformidade com o seu corpo é uma questão de segurança. Crédito: Gustavo Moreno/Metrópoles

Com ampla experiência no atendimento à população trans — atualmente, Fernando também trabalha no Ambulatório Trans —, o profissional acredita que a oferta dos bloqueadores não está relacionada apenas à qualidade de vida dos menores. Sobretudo no caso de G., em que nenhum dos colegas de escola sabe de sua condição. “A pessoa estar em conformidade com o seu corpo é uma questão de segurança. A frase ‘o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTs’ já se tornou conhecida e reflete a realidade. E o segmento T é o que mais sofre”, destaca.

A afirmação do médico é reforçada por dados. Pelo 13º ano consecutivo, o Brasil ficou no primeiro lugar do ranking de países mais perigosos para uma pessoa transsexual viver. Entre outubro de 2020 e setembro de 2021, foram pelo menos 125 assassinatos de travestis, homens e mulheres trans, segundo levantamento do projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), da ONG Transgender Europe (TGEU). De acordo com o estudo, a rejeição familiar, a marginalização econômica e a impunidade de agressores explicam a alta contínua dos números.

pelo 13º ano
consecutivo,
brasil
1º lugar
no ranking de países
mais perigosos para
um transexual viver
entre
outubro DE 2020 e
setembro de 2021
125assassinatos
de pessoas
trans

“O cenário é o pior possível”, analisa Ludymilla Santiago, integrante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). “Estamos em um momento em que o tratamento para crianças trans é estigmatizado, mas o chefe do Executivo pode dizer que questões de orientação sexual, por exemplo, devem ser resolvidas à base de pancada”, critica a ativista, em referência à declaração de Jair Bolsonaro (PL), em 2010. Na ocasião, o mandatário falou: “Se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro e ele muda o comportamento dele”.

Ludymilla frisa que os avanços obtidos pela comunidade LGBTIA+ nos últimos anos são inegáveis, mas pontua que eles foram resultado de muito suor e sangue do grupo. Ainda é preciso aproveitar campanhas, como o Mês da Visibilidade Trans, celebrado em janeiro, a fim de chamar a atenção para as demandas de uma das letras mais invisibilizadas da sigla.

“Nossas conquistas vêm, geralmente, do Supremo Tribunal Federal (STF). Não ocorreram por iniciativa do Executivo, do Legislativo, tampouco por proposição de políticas. Não que o Judiciário não possa fazer. Mas essa situação evidencia a violência institucional a que esse grupo também está sujeito”, esclarece Ludymilla.

Para preservar a segurança, a privacidade e a saúde mental de G. e de outros adolescentes que relataram viver em um ambiente de insegurança, o Metrópoles decidiu não divulgar nomes e detalhes de parte das fontes ouvidas pela reportagem.

“Minha mãe
confiou em mim”

A mais de mil quilômetros de distância de Brasília (DF), no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas (Amtigos), a paulista Heloíza Vieira, de 14 anos, reverbera o empoderamento e o bem-estar que o apoio da família e o acesso a políticas públicas representaram em seu processo de transição. Diferentemente das outras pessoas entrevistadas, a estudante do ensino fundamental fez questão de exibir seu nome social, resultado da luta que travou com a mãe, Dulcilene, para vencer este desafio.

No Amtigos, um dos três únicos do país, Heloíza recebe atendimento integral, com direito a consultas frequentes com psicólogo, psiquiatra e endocrinologista, além de ganhar o bloqueador gratuitamente. “A cada três meses, ela faz os exames de sangue, e uma vez por ano repete uma bateria de exames de acompanhamento, passando com a endocrinologista”, explica Dulcilene.

A acolhida facilitou um processo que, por si só, costuma ser bastante difícil para as famílias. Sem saber sequer o que significava o termo transgênero, Dulcilene e Heloíza passaram anos indagando por que a menina se sentia tão desajustada no próprio corpo. “Eu sabia que me sentia uma mulher, mas desconhecia essa coisa de ser trans. Achava que eu podia ser um gay afeminado. Sofri bastante homofobia na outra escola”, lembra a adolescente.

O estalo veio quando ela começou a assistir à série de TV norte-americana A Vida de Jazz, reality sobre a jornada de Jazz Jennings, garota trans que nas primeiras temporadas tinha a mesma idade da paulista atualmente. “Ela me pedia para assistir, mas eu não deixava. Isso, de ser trans, não passava pela minha cabeça. Um dia, comecei a ver e tive coragem de perguntar se ela seria mais feliz se fosse uma menina. Pra minha surpresa, ela disse: ‘Sim, eu sou uma menina. Gostaria de ser uma menina’”, conta Dulcilene.

Heloíza Vieira, de 14 anos, credita o sucesso do seu processo de transição ao acesso a políticas públicas. Crédito: Fábio Vieira/Metrópoles

A compreensão de que a filha, mulher, negra e transexual teria grandes desafios para superar levou Heloíza a oferecer seu apoio incondicional e buscar ajuda profissional. “Eu disse pra ela: ‘a gente vai enfrentar toda uma sociedade, família e tudo, mas vou estar com você lutando. Vou te ajudar.”

O primeiro passo foi procurar uma escola que reconhecesse o direito da filha de usar o nome social. O segundo, tentar uma vaga no Ambulatório. “Comecei a pesquisar, encontrei o Amtigos e mandei um e-mail explicando a nossa situação. Demorou para chamar, e eu comecei a entrar em desespero, porque a Heloíza passou a se cortar. A angústia dela era muito grande”, rememora Dulcilene.

A mulher fez, então, novo apelo. “Pedi pelo amor de Deus, disse que eu precisava muito, e eles me chamaram. Teve uma desistência de Rondônia e perguntaram se eu não queria levá-la naquele dia. E eu fui”, lembra.

A estudante do ensino fundamental faz questão de exibir seu nome social, resultado da luta que travou com a mãe, Dulcilene, para vencer este desafio. Crédito: Fábio Vieira/Metrópoles

Foi uma virada de chave para a menina: “Antes, eu não podia ser quem realmente era, não podia me abrir pra ninguém. Teve um certo momento que minha mãe confiou em mim. Deixou eu me abrir com ela. Eu me abri, falei o que sentia, e ela procurou o HC. Lá, encontrei pessoas que eram parecidas comigo”.

Moradoras da Freguesia do Ó, bairro localizado na zona norte de São Paulo, as duas não teriam condições de arcar com os custos do acompanhamento oferecido no Amtigos. “É um tratamento caro e longo. Ela deve parar de tomar o bloqueador aos 16. Mas a hormonização vai continuar… então é algo que a gente, hoje, não teria condição. E a gente tem outros gastos. Com a escola, por exemplo, porque eu procuro buscar o melhor pra ter segurança”, pontua Dulcilene.

Depois de receber apoio, Heloíza se sentiu mais forte e segura para enfrentar os comentários de que sempre foi alvo. Em uma ocasião, censurou um colega por causa de falas homofóbicas e, em seguida, tomou uma decisão importante. “Ele falou várias bobagens nas redes sociais. Eu fiquei muito triste, chorei no banheiro. Não tenho sangue de barata, né? Quando voltei à sala, resolvi dizer que eu era trans.”

Pouco acesso

Atualmente, apenas três centros brasileiros estão habilitados a prescrever o medicamento e aplicá-lo em crianças e adolescentes. Uma das unidades está na capital de São Paulo; outra, em Campinas (SP); e a terceira, em Porto Alegre (RS).

Alexandre Saadeh, médico psiquiatra e coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) da Faculdade de Medicina do Hospital das Clínicas de São Paulo, participou de grande parte dos avanços relacionados ao tema e lembra que o texto da Portaria nº 2.803/2013 chegou a incluir crianças e adolescentes, mas foi vetado.

“O ministro da época, Alexandre Padilha, cortou esse público do texto porque havia um debate no Congresso sobre aborto. Ele achou que a portaria ia tumultuar a discussão. O documento chegou a ser publicado e tirado do ar uma hora depois”, pontua o psiquiatra.

Referência em pesquisas sobre o tema, Saadeh participou das discussões que resultaram na portaria do Conselho Federal de Medicina (CFM). O médico defende que o conteúdo foi bastante inovador para a época, encontrando resistência entre conselheiros mais conservadores.

“Foi uma resolução muito pensada, muito discutida, e que no final foi a resolução possível. E a nova formação do Conselho questionou essa aprovação. Então pré-pandemia de Covid-19, no início de 2020, eu e outros membros da comissão responsável por elaborá-la, fomos para Brasília a fim de explicar aos novos conselheiros, mais conservadores, o porquê tínhamos incluído crianças e adolescentes como objeto de pesquisa”, recorda Saadeh.

Ele explica que a ampliação do acesso a bloqueadores depende do interesse do Ministério da Saúde e de pesquisadores. “Se você for ver, a portaria ainda fala da resolução de 2010. Ela não incluiu as atualizações de 2020. A pasta precisaria fazer uma portaria para atualizar o SUS a partir das mudanças que o CFM, em termos médicos, autorizou. Então tem um gap, um intervalo muito grande, entre o que as sociedades profissionais, as representações montam, e o SUS pode absorver. O sistema é grande, funciona, mas a pasta é lenta nas questões relacionadas à população trans. Se não tiver pressão, provavelmente não vai acontecer”, lamenta.

Evolução

AGOSTO DE 2008

Ministério da Saúde elabora portaria para regulamentar o processo transexualizador no SUS

FEVEREIRO DE 2013

CFM elabora parecer com critérios para atendimento a crianças e adolescentes transexuais e travestis

NOVEMBRO DE 2013

Ministério da Saúde redefine e amplia o processo transexualidor do SUS

JANEIRO DE 2020

Resolução do CFM que estabelece critérios para o bloqueio puberal de crianças e adolescentes e reduz idade mínima para hormonização é publicada no DOU

Desigualdade
médica

B., de 16 anos, obtém o medicamento sem receita médica, enquanto aguarda a avaliação da endocrinologista parceira do Adolescentro. Quando conversou com a reportagem, ela já havia feito os exames e passava por avaliação psicossocial, mas não quis esperar a prescrição. Sem o documento, conseguiu comprar o medicamento de tarja vermelha.

Há cerca de sete meses, a própria jovem compra e aplica as ampolas, combinadas com hormônios feminilizantes. “Depois que eu me compreendi, me vi como uma pessoa trans, [a disforia] ficou mais forte”, justifica. “Não conseguia me olhar no espelho. Passava ao lado de um e virava o rosto pra não me ver. Chorava dia e noite. Já tinha até um horário fixo pra isso”, lembra.

Depois de passar a vida questionando sua sexualidade, a jovem afirma ter descoberto, durante a pandemia de Covid-19, que poderia estar lidando com a disforia de gênero.

Tive mais tempo para pensar em mim. Foi um processo difícil, porque a gente sabe como é. A partir do momento que você se reconhece trans, várias portas se fecham pra você. Até afeto te negam.

B., estudante

B., de 16 anos, obtém o medicamento sem receita médica, enquanto aguarda a avaliação da endocrinologista. Crédito: Gustavo Moreno/Metrópoles

Meses antes de chegar ao Adolescentro, ela buscou um posto de saúde próximo de onde mora, no Gama, região administrativa do DF. No entanto, a falta de preparo dos profissionais para lidar com questões de gênero, fez B. voltar para casa sem atendimento.

A decisão de se automedicar foi motivada pela pressa em pausar as mudanças biológicas, que, aos 16 anos, já estavam bem adiantadas, e pelo sentimento de que já perdeu tempo demais. “Vi vídeos no YouTube sobre o assunto e pesquisei os prós e contras”, relata.

Para comprá-los, a jovem gasta mais da metade da bolsa de R$ 400 do estágio profissional. “É horrível passar por isso, né? Mas o tratamento faz bem pra mim. Se eu fico sem, sei que minha disforia vai piorar. Para ficar bem,tenho de abrir mão de outras coisas.”

B. e M. tiveram experiências completamente diferentes nos atendimentos do sistema público de saúde. Crédito: Gustavo Moreno/Metrópoles

M. de 17 anos, morador do Recanto das Emas, teve uma experiência diferente dos casos anteriores ao buscar o inibidor na rede pública. Realizando o tratamento há três meses, ele conseguiu o bloqueador na farmácia da Secretaria de Saúde. A única explicação para a divergência no atendimento ao jovem e a G. parece ser o critério pessoal do servidor.

“Na primeira vez, apresentei a receita e peguei o bloqueador sem problemas. Na segunda, foi mais difícil, mas apelei para o fato de que eu precisava tomar o remédio naquele dia”, conta o jovem, explicando que em uma eventual negativa, terá de recorrer ao pai, com quem não tem uma boa relação.

Para M., nada pode ser tão ruim quanto voltar a sentir os efeitos da disforia. Por causa dela, ele já chegou a ficar semanas sem ir à escola. “Era um inferno viver, uma tortura ter que lidar todos os meses com a menstruação e sofrer. Eu pensava: por que isso está acontecendo comigo? É uma punição?”, recorda. “Minha mente parecia se desmanchar. Eu não conseguia sair de casa. Tinha vontade de explodir, de virar uma pedra. Estar morto seria menos doloroso. É uma sensação horrível”, completa.

O jovem de 17 anos conseguiu o bloqueador na farmácia da Secretaria de Saúde. Crédito: Gustavo Moreno/Metrópoles

O relato do jovem chama a atenção para outra consequência da disforia de gênero e da transfobia institucionalizada. Segundo estudo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), agressões verbais, físicas e todo tipo de violência fazem com que 82% das pessoas trans sejam passíveis de evasão escolar.

No caso de M., um episódio recente de transfobia por parte de uma professora só não o levou a sair da escola porque o mal-estar com o corpo já estava superado. “Pedi pra uma professora colocar máscara porque no auge da pandemia ela chegou cheia de alunos em volta, sem usar. Ela não gostou e, na hora da chamada, riscou meu nome social e me chamou pelo de registro”, diz ele, que, assim como G., ainda não se sente à vontade para falar aos colegas sobre a transição.

A despeito desse episódio, o estudante afirma que hoje lida com a disforia de gênero e a transgeneridade com tranquilidade. Sobretudo pelo acesso gratuito aos bloqueadores. “Caso contrário, meus gastos seriam elevados a mais de R$ 100 por mês. Os bloqueadores indicados pra mim custam em média R$ 50, e os hormônios ficam na faixa de R$ 80”, pontua.

Falta de dados sobre a população trans impede avanços

Em vigor há 30 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê proteção integral e sem discriminação à população de 0 a 18 anos, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam seu nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Esse conjunto de garantias, no entanto, ainda esbarra em obstáculos para se tornar universal. Um deles é a ausência de dados sobre a população LGBTQIA+.

No Censo Demográfico de 2022, por exemplo, os itens “identidade de gênero” e “orientação sexual” foram removidos, o que torna essa população invisível para políticas públicas sociais e de saúde.

Se incluísse a sigla nos estudos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) poderia transformar, em indicadores sociais, os números divulgados pela única pesquisa realizada com intuito de verificar a representatividade da comunidade trans no Brasil, de autoria da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

1,9%dos brasileiros é transgênero ou não binário4 milhões de pessoasFonte: Unesp

Embora os avanços obtidos pela população T sejam inegáveis, incluindo o processo transexualizador do SUS, os médicos ouvidos pela reportagem são unânimes ao afirmar que ainda há muito o que ser feito. Sobretudo para a faixa etária abaixo dos 18 anos de idade.

A ampliação do acesso aos supressores de puberdade, por exemplo, é inviabilizada pela falta de incentivos à pesquisa. “Quando o CFM autoriza que isso seja feito, ele faz algumas observações: uma delas é que o procedimento tem de ser feito em ambiente de pesquisa. E aí começa a dificultar um pouco. Porque a gente não consegue financiamento para os estudos e, sem ele, não consigo comprar medicação para fornecer”, explica a endocrinologista Luciana Mattos Barros Oliveira, fundadora do primeiro Ambulatório Transexualizador da Bahia, localizado em Salvador.

“E aí a gente entra em um ciclo. Porque, se a pesquisa não foi concluída, não consigo comprovar que esse procedimento experimental é seguro. A gente só tem conseguido dar continuidade ao trabalho porque as famílias se viram e compram”, ressalta.

como o corpo muda
durante a puberdade

O hipotálamo é uma estrutura localizada na base do cérebro, acima da hipófise

O hipotálamo libera o hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH) em ritmo de pulso

O GnRH faz com que a hipófise libere o hormônio luteinizante (LH) e o hormônio folículo estimulante (FSH)

O LH e o FSH estimulam a produção de estrogênio nos ovários e testosterona nos testículos

Aparecimento
de acne

Desenvolvimento
de seios

Surgimento de pelos
pubianos e nas axilas

Quadril se alarga e
cintura se afina

Aumento do útero

Primeira
menstruação

Aparecimento
de acne

Desenvolvimento da
musculatura

Surgimento de pelos
pubianos e nas axilas

Aumento do pênis
e da próstata

Primeira
ejaculação

Luciana acrescenta que os hormônios previstos para o processo transexualizador, nos critérios autorizados pelo CFM, também não estão disponíveis, já que a portaria do MS nunca foi atualizada. “Os hormônios feminilizantes que estão no SUS são anticoncepcionais, mas eles são muito ruins para as pessoas trans, porque o etinilestradiol, que está na base de quase todos os contraceptivos, é muito trombogênico. A diferença é que a testosterona é barata, também é possível encontrar algumas opções do hormônio feminizante por um custo menor. Mas para uma pessoa que não tem renda e precisa se questionar se come ou compra um hormônio, aqueles R$ 20 por mês viram uma fortuna”, pondera.

De acordo com Luciana, apesar de haver centros especializados voltados ao acolhimento de pessoas transgêneros em quase todas as unidades da Federação, poucos são habilitados pelo Ministério da Saúde. Sem habilitação, não há recurso para custear as medicações. “Ou seja, entre os 16 e 18 anos de idade já existem critérios. Na farmácia do meu hospital tem a medicação. Mas eu não posso dar porque, para a portaria do Ministério da Saúde, as pessoas só ‘se tornam trans aos 18. O Governo Federal não reconhece que os mais jovens também precisam de atenção”, lamenta Luciana. “A gente concorda que alguns tratamentos não podem ser feitos. Não vamos sair fazendo cirurgia em menor e prescrevendo hormônio. Mas a gente fica com essa pendência em certos casos”, completa.


A médica conta que, há pelo menos quatro anos, não há avanços sobre o tema no âmbito governamental. “É indiscutível que o Ministério da Saúde não está olhando para essa população. Disso eu não tenho a menor dúvida. Em 2016, nós tivemos uma reunião no Ministério da Saúde, inclusive para revisar alguns pontos. Só que mudou o governo e depois disso nada aconteceu. Não tiveram outras reuniões, e aquelas que estavam marcadas não aconteceram”, disse.


“Eu cheguei a imaginar que o Temer [Michel Temer, chefe do Executivo entre 2016 e 2018] estava arrumando a casa para retomar as discussões. Só que dali em diante ficamos no vazio. A população trans realmente está precisando de um olhar. Mas eu não sei, realmente, se vamos conseguir neste governo, com essa transfobia declarada. Não sei se temos força para modificar isso”, frisa Luciana.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que os procedimentos de transexualização disponíveis no SUS são exclusivos para indivíduos com 18 anos ou mais e que o atendimento à população é realizado por estados e municípios.

No que diz respeito à terapia hormonal para a preparação para o processo transexualizador, foram realizados 14.494 atendimentos. A pasta, contudo, não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre quais foram as unidades de saúde em que essas assistências foram prestadas, tampouco a quantidade de recursos orçamentários destinados para esse fim.

Já a Secretaria de Saúde do DF informou que “já elaborou dois protocolos assistenciais para a atenção à saúde desta população, sendo um para adultos e o outro para crianças e adolescentes. Nesses protocolos, consta a orientação para a prescrição da hormonização para adultos e do bloqueio puberal para adolescentes trans, conforme última resolução do CFM”.

O medicamento, contudo, não é fornecido gratuitamente. O comunicado também confirma que não há previsão para que esse procedimento seja feito, em crianças menores de 12 anos, em unidades de saúde.

Benefícios superam riscos

Conhecidos na literatura médica como análogos de GnRH, os bloqueadores imitam a ação de um hormônio estimulador da puberdade que é liberado no cérebro, a gonadotrofina. O composto torna a glândula pituitária menos sensível a esse hormônio e, ao fazer isso, interrompe a puberdade. O processo, segundo os médicos, é reversível. A puberdade começa novamente depois que as drogas são interrompidas.

como funcionam os
bloqueadores
hormonais

Os bloqueadores imitam a ação da gonadotrofina (GnRH)

Enquanto o GnRH do corpo é liberado de forma pulsante, os análogos são bombardeados de forma contínua

Com essa mudança de fluxo e ritmo, a pituitária pára de produzir LH e FSH, interrompendo a puberdade

O procedimento, então, daria mais tempo à criança com disforia de gênero para explorar suas opções, antes de decidir se deve ou como fazer a transição. Além disso, médicos e psicólogos defendem que essa inibição promove melhor resultado da terapia hormonal de afirmação de gênero e reduz a necessidade de procedimentos cirúrgicos futuros. Fora o ganho em saúde mental.

Um estudo publicado pela revista Pediatrics em 2020 associou o acesso a bloqueadores da puberdade com a redução de casos de ideação suicida. De acordo com a análise, 16,9% das pessoas ouvidas pelo US Transgender Survey 2015, envolvendo 20.619 pessoas com idades entre 18 e 36 anos, gostariam de ter tido acesso ao medicamento. Desses, apenas 2,5% receberam a terapia.

Aqueles que se submeteram ao bloqueio tiveram menor chance de ideação suicida ao longo da vida e sofrimento psicológico grave no mês anterior, em comparação com pacientes que desejavam o procedimento, mas não o receberam.

Em contrapartida, críticos apontam a existência de efeitos colaterais de longo prazo — como a queda da densidade óssea e o comprometimento da fertilidade. Apesar disso, o consenso das sociedades de pediatria, endocrinologia e psicologia é o de que os benefícios superam os riscos.

Os especialistas ressaltam, porém, que a ausência de mais estudos sobre o tema e a impossibilidade de obter o bloqueador na rede pública de saúde não impedem o uso por pacientes com disforia. Apenas tornam seu acesso desigual: quem tem dinheiro, compra, inclusive sem receita médica. Já quem não tem, acaba buscando alternativas.

Destransição?

Além de não ser prioridade para um sistema de saúde que sofreu redução orçamentária de R$ 40 bilhões só em 2021 e que enfrenta crise sanitária sem precedentes, o acompanhamento médico especializado de crianças e adolescentes trans no Brasil compete com uma forte onda de críticas. Um dos principais questionamentos é se esses pacientes têm capacidade de discernir, tão jovens, sobre mudanças que podem perdurar por toda a vida.

O debate tem sido acirrado por causa do episódio recente e emblemático da britânica Keira Bell. No início do ano passado, aos 23 anos, ela processou o sistema de saúde público do Reino Unido sob a alegação de que sua decisão de transicionar para o sexo feminino não foi questionada pelos médicos. A garota iniciou o processo de transição aos 16 anos e, atualmente, se identifica com o sexo feminino, o mesmo de seu nascimento.

Aos 23 anos, Keira Bell processou o sistema de saúde público do Reino Unido sob a alegação de que sua decisão de transicionar para o sexo feminino não foi questionada pelos médicos. Crédito: Divulgação

No país insular, cabe ao médico determinar se os menores de 16 anos podem ou não aceitar o bloqueio da puberdade antes de iniciar um processo de transição de gênero. O tratamento também é polêmico em outros locais, como no Arkansas, nos Estados Unidos. Em abril, o estado americano se tornou o primeiro do país a proibir médicos de administrar hormônios ou medicamentos para retardar a puberdade em pessoas trans com menos de 18 anos.

Saadeh explica que casos de “destransição” precisam ser considerados, mas são raríssimos. Para o especialista, esses pacientes não podem servir como exemplo e dificultar que a maior parte dos adolescentes trans passem pelo tratamento seguro com assistência médica especializada.

O SUS é um sistema muito criterioso. As pessoas têm uma boa formação. E elas não vão dar hormônio para quem tem algum risco, não preenche os critérios. Então, não é só a autodeterminação do indivíduo

Alexandre Saadeh, psiquiatra

Desde que o Amtigos passou a admitir crianças e adolescentes, o psiquiatra se lembra de apenas um caso, que não foi bem uma desistência. “Um menino trans que já tinha entrado na puberdade não tomou o bloqueio, começou a hormonização aos 18 e tem aparência masculina. Ele estava pronto para fazer a mastectomia, mas decidiu parar, inclusive com a hormonização. Hoje, ele se reconhece como gênero não binário”, encerra.

“Sei o suficiente para saber que não sou uma menina”

Desde agosto deste ano, Laura Silveira viaja com o filho, Thales, a cada 28 dias, de Vitória, no Espírito Santo, ao Hospital das Clínicas de São Paulo, para ter acesso à terapia. As consultas começaram meses depois de o garoto, na época com 11 anos, dizer seguramente, durante um almoço de família, que é transexual.

Surpresa, Laura questionou o que o filho sabia sobre o assunto e, mais uma vez, ouviu o menino afirmar, com convicção: “‘O suficiente pra saber que não sou uma menina’”.

Apesar da surpresa inicial, a professora universitária não teve dúvidas de que o relato do filho era sincero. “Em retrospectiva, Thales sempre foi uma criança que demonstrava excesso de insegurança, timidez e rejeição ao universo feminino, sem nenhum tipo de agressividade. Não era aquela criança que rasgava o vestido, mas aquela que nunca escolheria um para sair. E isso nunca foi incômodo para a gente. Nunca tivemos essa coisa de comportamento de menino e comportamento de menina”, recorda Laura.

Após o anúncio, veio um pedido de socorro. “Perguntei o motivo pelo qual ele escolheu aquele momento para falar. E o Thales, já chorando, disse que precisava de ajuda. Que o corpo dele estava se modificando muito e ele não queria. E eu disse que, mesmo sem fazer ideia de como, ia ajudá-lo”, conta a docente.

Laura Silveira viaja com o filho, Thales, a cada 28 dias, de Vitória, no Espírito Santo, ao Hospital das Clínicas de São Paulo, para ter acesso à terapia. Crédito: Fábio Vieira/Metrópoles

Por sugestão de conhecidos, ela buscou ajuda no Amtigos, distante 870 quilômetros de casa. Os médicos da unidade sugeriram, então, que o garoto pensasse sobre o início do tratamento com bloqueadores. Antes, explicaram que, assim como toda medicação, haveria possíveis efeitos colaterais. Esses, por sua vez, precisavam ser rigorosamente acompanhados pelos anos em que a medicação fosse administrada. “No caminho de volta, a decisão dele já estava tomada”, pontua Laura.

“Ele tinha certeza de que queria impedir o desenvolvimento dessas características. No momento, ele queria se livrar daquele desconforto. A disforia estava muito significativa. Decidimos, eu e meu marido, apoiar sua decisão”, ressalta.

Até hoje, Thales só tomou três doses do bloqueador, mas a mudança de comportamento já é percebida pelos pais. “É outra pessoa. Está muito mais feliz, falante e à vontade. A contribuição para a autoestima é evidente: ele pintou o cabelo, trocou o guarda roupas e assumiu a identidade masculina. Escolhemos um novo nome juntos, trocamos os documentos, e a escola onde ele frequenta também fez todas as mudanças necessárias rapidamente”, comemora.

Felizmente, Laura pode pagar pela viagem mensal de avião a São Paulo para receber os bloqueadores e submeter o filho a exames que precisam ser feitos em sequência. Dessa forma, os dois conseguem reduzir os prejuízos trazidos pelo deslocamento frequente e perdem apenas um dia de aula e trabalho. Se optassem pelo Tratamento Fora do Domicílio (TFD), concedido pelo SUS, eles perderiam de dois a três dias por mês. Mas esse não foi o único motivo pelo qual a família buscou esse tipo de auxílio.

Pra mim, é uma coisa muito estigmatizante de doença. Thales não tem uma doença. Então teria que passar por uma roupagem, um rótulo.

Além disso, o TFD de Vitória para São Paulo seria dado apenas de ônibus. É uma viagem extremamente cansativa para uma criança e demandaria um tempo maior. Hoje, a gente se programa e compra a passagem com antecedência. É claro que é pesado, ainda mais todo mês, mas aos poucos vamos pensando em alternativas”, reflete.

Mais uma opção seria buscar endocrinologista pelo plano de saúde e bancar os bloqueadores. “Eu poderia levar em um médico em Vitória, não fazer o exame mais caro, de R$ 800 que o plano não cobre, e seguir um tratamento caseiro por R$ 250 reais por mês. Mas eu não vou arriscar a saúde dele”, conclui.

Felizmente, Laura pode pagar pela viagem mensal de avião a São Paulo para receber os bloqueadores e submeter o filho a exames que precisam ser feitos em sequência. Crédito: Fábio Vieira/Metrópoles

O TFD é um benefício que os usuários do Sistema Único de Saúde podem receber para acessar serviços assistenciais em outro município ou ainda, em casos especiais, em outro estado. Trata-se do custeio de transporte, hospedagem e diárias para alimentação, quando indicado.

O problema, como a professora universitária mencionou, é que o deslocamento mensal exige tempo e disponibilidade. Fora a volatilidade na oferta do recurso.

Mércia e G., personagens que abriram a matéria, por exemplo, descobriram sobre a possibilidade do TFD ao serem questionadas pela equipe de reportagem do Metrópoles e estão buscando mais informações a respeito.

Se conseguirem, vão passar a se deslocar mensalmente a um dos três centros habilitados, só para receber o bloqueio, já que o restante do tratamento é feito há anos pelo Adolescentro. Apesar de considerar cansativo, Mércia acredita que valerá a pena. Pelo menos enquanto está desempregada e disponível para acompanhar a filha. “É uma esperança, né?”, conclui.

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