MISÉRIA E OPRESSÃO
Ações violentas da PM espalham medo na periferia da Baixada, mas não inibem o tráfico
Renan Porto e William Cardoso
10/05/2024 2h00
Barracos nas encostas de morros, vila ao redor de um lixão e a maior favela sobre palafitas do Brasil. Por trás das belas praias que atraem milhares de turistas ao longo do ano, a Baixada Santista esconde uma dura realidade em comunidades pobres, onde, para muitos moradores, a presença do Estado só é sentida nas rápidas — e violentas — passagens da polícia.
Foi assim nas duas grandes operações deflagradas na região desde julho do ano passado, em resposta a assassinatos de policiais militares. A maior delas, a Operação Verão, deixou 66 mortos — três agentes também morreram —, e tornou-se a ação mais letal da PM paulista desde maio de 2006, na reação aos atentados promovidos pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Santos, com 26 mortes, São Vicente (18) e Guarujá (14) lideram o ranking de óbitos dessa operação. Nos últimos 10 anos, segundo dados do IBGE, esses três municípios perderam habitantes, embora a população total da Baixada, formada por nove cidades, tenha crescido 8,5% no período, chegando a 1,8 milhão de pessoas. Cerca de 30% estão cadastradas em programas sociais destinados a famílias de baixa renda ou em situação de extrema pobreza.
Parte da periferia de Santos vive em casas de improvisadas, que muitas vezes são construídas perto do mangue
Neste terceiro e último capítulo da série “Baixada Sangrenta”, o Metrópoles retrata a situação de completo abandono das áreas que foram alvo das incursões policiais. Em duas delas, o Jardim Rio Branco, em São Vicente, e a Vila dos Criadores, que surgiu na década de 1970 no entorno do Lixão da Alemoa, próximo ao Porto de Santos, o cenário foi de chacina. Das 66 vítimas fatais, 78% foram identificadas como pretas ou pardas pelos policiais.
69 mortes
52Civis
9Não contabilizadas pela operação
A LINHA DO TEMPO DAS MORTES NA BAIXADA SANTISTA
Clique na linha do tempo abaixo para saber a ordem das mortes
A reportagem esteve em seis localidades da Baixada em março, no curso da operação encerrada em 1º de abril, e constatou que as ações policiais realizadas com o pretenso objetivo de asfixiar o crime organizado e combater o tráfico de entorpecentes não surtiram efeito, a despeito da coleção de cadáveres e das mais de mil pessoas presas.
Boa parte da droga que chega ao Brasil para ser exportada pelo Porto de Santos passa pela periferia da Baixada Santista
As “biqueiras” ou “lojinhas”, como são chamados os pontos de venda de drogas, continuavam funcionando a pleno vapor, à luz do dia, a poucos metros de onde pessoas foram mortas na “guerra” contra o tráfico. No Morro José Menino, em Santos, uma moradora contou que se sentia oprimida tanto pelos policiais quanto pelos traficantes e que, por isso, queria deixar o lugar.
DOMÍNIO DO PCC
A presença do Porto de Santos, o maior do país, fez da Baixada Santista uma região com forte e crescente atuação do PCC, a partir dos anos 2000. É por meio dele que a facção criminosa despacha aproximadamente 60% de toda a cocaína que sai do Brasil com destino à Europa e à África, o que rende um faturamento anual de R$ 10 bilhões à organização, segundo estimativa do Ministério Público de São Paulo (MPSP).
Esse modelo de exportação foi fortalecido na última década por meio de parcerias feitas com importantes máfias europeias, como a ‘Ndrangheta, da Itália. O mercado bilionário provocou até uma guerra interna por causa de dinheiro. Em 2018, Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, foram assassinados a mando de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, acusados de desvio das receitas obtidas via porto.
Enquanto o PCC ampliava seu alcance internacional, a Baixada Santista passou a funcionar como um “entreposto comercial” do tráfico, recebendo toda a droga destinada ao exterior escondida em navios cargueiros. Apenas uma pequena parte dela é retida nas cidades do litoral sul e alimenta o comércio de entorpecentes local, que é terceirizado pela facção a pequenos traficantes.
O comércio do Porto de Santos movimenta as comunidades do litoral paulista
“Quando você faz uma asfixia em um local, você tem uma reação. Isso significa que a operação está gerando incômodo, que está prejudicando o ‘business’. Nós não queremos o combate, mas também não vamos nos curvar ao crime”.
Tarcísio de Freitas, em agosto do ano passado, justificando a primeira incursão, batizada de Operação Escudo, que deixou 28 mortos
Parte dos moradores diz que polícia e tráfico dificultam passagem para subir o morro
O “DURO GOLPE”
Diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno afirma que quem vai às comunidades da Baixada Santista sabe que, além daquelas pessoas que não têm envolvimento com o crime, estão sendo mortos aqueles que, no máximo, trabalhavam no varejo da droga e que são substituídos no dia seguinte, como notou a própria reportagem do Metrópoles.
“Que liderança do PCC mora em favela de palafitas no meio do mangue? Chega a ser ridículo as autoridades de São Paulo tentarem nos convencer de que essas operações e essas mortes foram um duro golpe contra o crime organizado.”
Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
Os moradores da Baixada Santista reclamam da ação policial e da atuação do tráfico na região
Segundo o ouvidor das polícias, Claudio Silva, a ação desencadeada pelo governo estadual não tem efeito prático no combate ao crime organizado. “Esse tipo de operação não tem qualquer tipo de efetividade no enfrentamento ao crime organizado, ao crime que atua naquele local, e isso fica demonstrado pela constatação feita por vocês. De fato, é isso. Não tem crime sendo atacado, combatido, uma vez que a dinâmica continua a mesma.”
NEGÓCIO BILIONÁRIO, VIOLÊNCIA GRATUITA
O método adotado pela PM para “combater o tráfico de drogas” nas comunidades pobres da Baixada destoa, e muito, das ações de inteligência da Polícia Civil voltadas a prender os líderes da organização, que costumam morar nos mesmos condomínios de luxo do litoral onde políticos, artistas e jogadores de futebol ostentam suas mansões.
Um exemplo é o médico Alexandre Pedroso Ribeiro, de 56 anos, que foi condenado na semana passada a 8 anos e 9 meses de prisão por tráfico de drogas e organização criminosa. Ele foi preso em 2022, após a polícia encontrar 63 kg de cocaína do PCC na casa dele no Jardim Acapulco, condomínio de alto padrão na Praia de Pernambuco, no Guarujá.
Irmão do agente Wagner Ribeiro, conhecido como o “empresário das estrelas” no futebol, como Neymar e Robinho, Alexandre alegou à Justiça que a cocaína apreendida, avaliada em R$ 7,5 milhões, era para consumo próprio. Segundo o MPSP, contudo, a carga era “suficiente para abastecer os pontos de tráfico de toda a região metropolitana da Baixada Santista”.
Embora o juiz tenha assinalado na sentença que Alexandre “recebia integrantes do PCC no condomínio em que morava”, hospedando-os na sua própria casa, a ação da Polícia Civil para prendê-lo não gastou uma bala sequer. O cenário é bem diferente do que ocorreu nas favelas que receberam tropas da PM durante a Operação Verão, segundo moradores. Os relatos são de agressões deliberadas promovidas pelos policiais.
Também no Morro José Menino, em Santos, um morador foi morto por engano por PMs no dia 8 de março, segundo pessoas que vivem no local.
Na Vila dos Criadores, que fica mais próxima da região portuária, uma mulher que perdeu o filho em uma ação policial diz que PMs são truculentos, atuam de forma arrogante e com ignorância. Ela mesma foi baleada na perna durante uma incursão dos policiais.
A Vila dos Criadores foi justamente um dos locais onde mais pessoas apareceram mortas na Operação Verão — oito pessoas, ao todo. O bairro pobre nos fundos da Alemoa, na região do Porto de Santos, nem sempre foi violento, segundo uma moradora.
Na região do Saboó, em Santos, a população também sofre com as condições precárias. Durante a Operação Verão, o temor atingiu até mesmo as crianças.
Na última semana, o governador Tarcísio de Freitas esteve em Santos e anunciou um investimento de R$ 27 milhões em um projeto-piloto que prevê a construção de 60 moradias sustentáveis no Dique da Vila Gilda, onde fica a maior favela sobre palafitas do país.
COMPLETO ABANDONO
Outro impacto drástico do abandono observado nas comunidades alvos da operação é que o próprio Estado se omitiu em voltar à maioria das cenas dos crimes, alegando riscos. Isso impediu a realização de um trabalho de perícia independente para ajudar a esclarecer como as ocorrências realmente se deram.
Segundo os boletins de ocorrência analisados pelo Metrópoles, pelo menos quatro a cada cinco vítimas (81%) foram retiradas do local do crime e encaminhadas a unidades de saúde, mesmo após tomarem vários tiros de fuzil. Do total, 66% tiveram o óbito constatado logo após chegarem às unidades de saúde. A remoção das vítimas dificulta o esclarecimento de como se deu o suposto confronto e, consequentemente, a responsabilização dos culpados.
A polícia se recusou a investigar algumas mortes alegando que a região é perigosa
Desde a primeira grande incursão da PM na Baixada Santista, em 2023, apenas quatro policiais militares foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público paulista, sob a acusação de terem participado de execuções, todas referentes à Operação Escudo, que durou 40 dias entre julho e setembro do ano passado. Com relação à Operação Verão, o MPSP diz que as oitivas estão em curso. No âmbito administrativo, os PMs que participaram das operações no litoral seguem, em sua maioria, trabalhando normalmente nas ruas.
Em março, durante audiência pública na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), a respeito dos excessos cometidos pela PM nas operações da Baixada, a promotora Daniela Fávaro, do Centro de Apoio Operacional Criminal, sinalizou que as investigações sobre as mortes no litoral devem levar muito tempo. Ela disse que um caso de homicídio no Brasil, leva, em média, 600 dias para ser apurado, e citou o caso da ex-vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, como exemplo de como os desfechos podem ser ainda mais demorados.
“Não é simples de se fazer [as investigações]. No caso da Marielle, foram seis anos de investigações”, disse a promotora. Ainda assim, o assassinato de Marielle, ocorrido em março de 2018, ganhou repercussão internacional e recebeu holofotes dos órgãos de investigação. Já nas operações da Baixada Santista, foram quase 100 pessoas anônimas para a sociedade.
Por meio de nota, a gestão do secretário Guilherme Derrite afirmou que as forças de segurança paulistas “operam estritamente dentro de seu dever constitucional” e que “as mortes decorrentes da reação violenta de bandidos a ações de combate ao crime organizado são rigorosamente investigadas”.
Leia a íntegra da nota oficial:
“As forças de segurança do Estado de São Paulo são instituições legalistas e operam estritamente dentro de seu dever constitucional, seguindo protocolos operacionais rigorosos. Não são tolerados excessos, indisciplina ou desvios de conduta. É importante ressaltar que a Corregedoria da Polícia Militar está à disposição para receber e apurar denúncias sobre a atuação de seus agentes.
As mortes no âmbito da Operação Verão, decorrentes da reação violenta de bandidos a ações de combate ao crime organizado, são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Em todas as ocorrências, as armas utilizadas por criminosos, incluindo fuzis de uso restrito, foram apreendidas.
O trabalho da perícia é parte fundamental da investigação. Na Operação Verão, todas as ocorrências tiveram algum tipo de exame pericial, seja nos locais dos eventos ou de corpo de delito, residuográfico e balística. As perícias locais são solicitadas pelas polícias ou pelo Ministério Público, mas podem ser suspensas ou canceladas devido a situações excepcionais, como alto risco de novos confrontos. Em uma das ocorrências da Operação Verão, por exemplo, houve disparos contra a equipe que tentava fazer a perícia no local.
As ações de combate ao crime organizado na Baixada Santista, entre 28 de julho e 5 de setembro de 2023 e a partir de 3 de fevereiro deste ano, resultaram na prisão de importantes lideranças do tráfico de drogas na região. Além disso, mais de 2 mil criminosos foram presos, dos quais 876 eram procurados pela Justiça. Também foram retiradas das ruas 238 armas de fogo ilegais e 3,5 toneladas de drogas, gerando prejuízos significativos ao crime organizado”.
Lilian Tahan
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