Os rincões do Brasil, onde o ensino pede socorro
Ter a média mais baixa entre os colégios que prestaram o Enem é um grito por ajuda. O Metrópoles percorreu três estados para entender a que ponto de abandono precisa chegar uma escola para ser taxada como "a pior do Brasil". Resgatar essas instituições desafia gestores, educadores e Poder Público
Como se cumprisse uma penitência, Vitória Cássia, 7 anos, caminha descalça pela lama do povoado rural de Belo Jardim, em Rio Branco (Acre). Os pés sangram ao tocar as pedras afiadas: são as chagas do descaso com a educação. Em sua via-crúcis rumo à escola, a menina paga por pecados que não cometeu.
Ela é aluna do ensino fundamental no Colégio Estadual Augusto Monteiro, local de difícil acesso, cuja estrada de terra que leva à instituição vira rio ao chover. Quando chegar a hora, Vitória, que não tem dinheiro para comprar calçados novos e vai à sala de aula de barriga vazia, passará a frequentar o ensino médio nesse mesmo endereço.
Crianças a caminho do Colégio Estadual Augusto Monteiro: lamaçal na estrada
Da mesma forma que os vizinhos – quase todos agricultores –, ela tem, nessa escola, a única esperança de se preparar para o ensino superior e conquistar uma vida melhor, com sapatos adequados e comida farta. Ali, estudam crianças, jovens e adultos da comunidade. Se nada mudar, o futuro de cada um deles está comprometido.
Em 2013, o Colégio Augusto Monteiro ficou em uma posição temida por todas as unidades de ensino médio brasileiras: obteve a nota mais baixa na prova objetiva do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Logo, apareceu em jornais do Brasil inteiro como “a pior escola do país”.
No ano seguinte, 2014, foi a vez do Colégio Aluísio Azevedo – anexo de Cachimbos, área rural no Maranhão, ocupar o posto ingrato. Na edição de 2015 – quando houve a divulgação do último resultado do Enem por Escola – o Colégio Quilombola 27 de Maio, em Porto da Folha, Sergipe, levou o título.
Ao aparecer no pé de uma lista com mais de 14 mil instituições públicas e particulares, com o desempenho mais fraco de todo o país, um centro de ensino dá sinais da necessidade de receber socorro imediato. Nem sempre, porém, há ouvidos para acolher o grito por ajuda.
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Pior avaliação em 2013
Colégio Aluísio Azevedo
Cidade: Jatobá – MA
Média: 397,0
Pior avaliação em 2014
Escola Doutor Augusto Monteiro
Cidade: Rio Branco – AC
Média: 408,47
Pior avaliação em 2015
C. E. Quilombola 27 de Maio
Cidade: Porto da Folha – SE
Média: 413,16
A divulgação desses dados só é útil se orientar a formulação de políticas que reduzam a desigualdade social. De outra maneira, é mero desperdício de dinheiro público.
Pilar Lacerda, ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação e atual diretora da Fundação SM Brasil, entidade sem fins lucrativos
O Metrópoles percorreu quase 8 mil quilômetros para conhecer esses três colégios. Encontramos escolas esquecidas no tempo, onde não chegam cartas, não há internet nem telefone fixo. A falta de infraestrutura é um ponto que une todas elas, assim como os exemplos de alunos cheios de potencial e de professores que acreditam neles.
A reportagem foi ao Acre, ao Maranhão e a Sergipe em busca de respostas: o que muda nas “piores escolas do país” depois que amargam esse posto? O que está sendo feito para que Vitória e milhares de estudantes como ela encontrem pelo caminho um ensino que lhes ofereça uma real possibilidade de quebrar o ciclo da pobreza em que vivem?
Capítulo I“Obrando milagres” no Acre
Todos os dias, ao levantar da cama, Rosangela Souza vai até a janela e olha para o céu. Quando o tempo está limpo, ela agradece a Deus: é sinal de que, naquela manhã, seus alunos conseguirão chegar à escola. Se chove, as estradas de terra que rodeiam o colégio Augusto Monteiro, onde ela é a diretora, se transformam em “rios” pelos quais é necessário um barco para navegar. A época de alagações pode ir de novembro a maio.
Mas não pense que todos os problemas dos que frequentam o local – que teve a menor média objetiva do Enem em 2013 – se resolvem com a ajuda de São Pedro. Se o excesso de água não é bom, a falta dela tampouco facilita a vida.
Há três semanas sem água – à época da visita da reportagem, em 6 de novembro – a diretora, a merendeira, uma ajudante de faxina e alunos se revezavam para buscar latas d’água na chácara vizinha a fim de limpar banheiros e preparar almoço e lanche das 100 crianças e jovens ali matriculados.
“A bomba d’água quebrou e estamos obrando milagres aqui. Não podemos dispensar os estudantes, pois eles precisam aprender e temos um calendário a cumprir”, afirma Rosangela.
Desde 2014 – quando saíram os resultados do Enem 2013 e o colégio teve baixo desempenho –, a diretora tenta reconstruir a autoestima dos alunos. “Aquilo lá acabou com a gente, maninha. Como eu vou falar de Enem com esses jovens se eles não conseguem nem chegar à escola?”, desabafa.
Escola Doutor Augusto Monteiro
Estado: Acre
Localização: Rural
Ensino: infantil, fundamental e médio
Infraestrutura: básica
Nota na escala de infraestrutura: 54,3
A ponte que é o principal acesso ao centro de ensino está interditada. Esse problema aumenta em cerca de 8km o caminho até o Augusto Monteiro. Para quem caminha descalço pela lama, o trajeto parece uma eternidade. Os alunos – e a própria diretora – preferem tirar os sapatos para enfrentar o percurso, pois fica mais fácil caminhar sem chinelo, já que a maioria não tem tênis e ninguém possui galocha.
Estudantes arriscam a vida para ganhar tempo. Passam pela ponte de madeira bamba e com buracos enormes para chegar ao outro lado, onde o conhecimento os espera.
Quando finalmente estão na escola, eles não podem contar com uma biblioteca organizada (há uma sala com livros amontoados) e nunca tiveram quadra de esportes. Em 2015, um temporal alagou tudo e estragou os velhos computadores. Também não há internet ou telefone para se comunicar com o mundo fora da porteira. Se precisam acessar a web, pegam um barco até o município vizinho, mas para isso é necessário ter dinheiro.
O repasse mensal à escola estadual é, em média, de R$ 4 mil. Até recentemente, o colégio recebia renda extra vinda do programa Mais Educação – criado pelo governo federal para dar suporte a unidades de ensino que precisam de um aporte maior – e um valor especial, também da União, por estar em área rural.
Rio Branco (Acre)
Só 47,17% das escolas tinham internet em 2010
Em 2014, esse índice passou para 62,41%
Essa verba do Mais Educação, porém, deixou de ser fornecida. A diretora não sabe explicar o motivo nem o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) justificou, diante pedido da reportagem. “Gostaria de dizer que as coisas ficaram mais fáceis, mas não seria verdade”, diz a gestora. O colégio acaba de passar por sua primeira reforma desde a inauguração, em 2001 – essa, aliás, foi a única vez em que um governador do Estado pisou ali.
Quando recebeu o rótulo de “pior escola do país”, o Augusto Monteiro teve palestras motivacionais e programas de reforço escolar da Secretaria de Educação, mas as práticas logo foram deixadas de lado. Atualmente, um único professor dá aulas de matemática, física, química e biologia. Outro leciona geografia, história e língua portuguesa.
A falta de investimentos se reflete no desânimo dos alunos na hora de fazer a prova do Enem. Em 2017, somente o filho da diretora, que estuda na unidade, concluiu o exame. Estudantes como Rodrigo Lucas, 17 anos, do 3º ano, veem seus sonhos ficarem cada vez mais distantes.
O jovem é filho de lavrador e ajuda o pai no plantio de macaxeira. A venda da goma para fazer tapioca sustenta a família. No futuro, porém, ele gostaria de ser engenheiro civil, pois tem “sede de construção”. “Para dar uma vida melhor ao meu pai e a mim mesmo. Também espero melhorar a reputação do meu colégio”, diz.
Neste ano, Rodrigo esqueceu o documento de identificação e não pôde fazer o Enem, depois de viajar durante três horas de moto com o pai até o local de prova. “Não sabia que precisava levar”, justificou. A falta de informação é uma constante para quem vive isolado.
Nágila Ferreira, 16 anos, também perdeu o teste, mas devido a um problema familiar. Um tio da garota desapareceu na mata enquanto caçava e todos tiveram de procurá-lo noite adentro. A menina não dormiu e, por isso, desistiu de fazer o exame.
Antes, ela havia prestado vestibular para fisioterapia em uma faculdade particular da região. Passou em segundo lugar, mas não tinha dinheiro para bancar os estudos. Mais uma vez, assistiu uma oportunidade se despedir.
A jovem cursou o ensino fundamental no Colégio Doutor Augusto Monteiro – única instituição de ensino com a qual teve contato e onde escreveu sua trajetória. Quando olha para as crianças que hoje estão ali, ela tem um déjà-vu. Os pés de Vitória Cássia, a menina que caminha descalça no fim do dia, trilham a mesma estrada já percorrida por Nágila.
“Quero ser fisioterapeuta para consertar o joelho do meu pai, que ele esculhambou trabalhando na roça. Quem sabe assim arrumo outras coisas na minha vida também”
planeja Nágila, que pretende fazer o Enem em 2018
O Governo do Estado do Acre não respondeu os pedidos de entrevista feitos pelo Metrópoles nem informou quando vai consertar a ponte.
Capítulo IIO colégio órfão do Maranhão
A iluminação (interna e externa) da filial do colégio Aluísio Azevedo, que funciona em prédio emprestado, é péssima: estudos na penumbra
“Essa escola é como filho que pai colocou no mundo, mas não cria”. Assim um funcionário da regional de ensino define a situação do colégio Aluísio Azevedo – anexo de Cachimbos, em Jatobá, no Maranhão. A unidade teve a menor média nas provas objetivas do Enem em 2014.
O anexo é uma “filial” da instituição matriz, que fica na região urbana do município. Esse tipo de extensão foi criado no estado nordestino para atender estudantes em áreas rurais. Aparentemente, os responsáveis pela gestão da unidade de Cachimbos têm vergonha do filho negligenciado.
A visita do Metrópoles ao anexo estava agendada para 7 de novembro. A gestora da região, Geralda Alves, concordou em receber a equipe e mostrar o espaço, mas, no dia do encontro, sem avisar, chamou um ônibus e levou todos os alunos da escola para a sede, mais bem cuidada e apresentável aos olhos da imprensa.
Os estudantes, porém, questionaram essa atitude, tomaram posse da chave da filial do Aluísio Azevedo e convidaram a reportagem para pegar o ônibus de volta a Cachimbos. Na escola, mostraram o que o governo estadual – responsável pelo ensino médio – gostaria de esconder: a situação só piorou desde 2014.
“Antes, o colégio ficava em um prédio um pouco melhor. O lugar onde está hoje é emprestado pelo município e tem menos condições ainda que o anterior de abrigar as turmas. Já sugeri que arrumassem um ônibus para levar os meninos para a sede, mas os gestores da região dizem que não é possível”, admite o diretor da unidade, Reijunior Soares.
A unidade não conta com biblioteca: livros ficam empilhados no chão do corredor
Números e palavras esbarram em buracos no quadro-negro desgastado e quase inutilizável. A água que cai do teto molha as folhas dos cadernos e borra as letras escritas com esforço por mãos calejadas. Sem uma biblioteca, os poucos livros didáticos ficam jogados no chão, em um corredor. Como não há salas suficientes, parte das aulas é dada no pátio.
Os alunos do anexo de Cachimbos são agricultores, em maioria. Depois de trabalhar o dia inteiro, eles vão ao colégio à noite para tentar aprender, mas lá não encontram sequer iluminação adequada. Há duas lâmpadas fracas em cada sala e sempre há disputa para sentar debaixo do único ventilador do local, onde a temperatura ultrapassa os 40°C com facilidade.
“A gente se sente humilhado numa situação como essa. Trabalho por boa vontade, com fé na mudança, mas tenho até que reaproveitar giz e apagar o quadro com papel higiênico”, diz Feliciana Lima, professora do anexo.
Não há internet, computador e nem carta chega ao bairro. A limpeza também é um problema: não existe funcionário para desempenhar a função, que fica por conta de uma voluntária da comunidade. Chicletes estão espalhados por todo o piso e os banheiros ficam dias sem ver água.
Mesmo assim, Ronaldo Gomes, 42 anos, considera o lugar um espaço valioso para o aprendizado. Ele trabalha na lavoura desde os 6 anos. “Meu pai teve que afinar o cabo da enxada para ela caber na minha mão”, lembra. Ao lado de seus 10 irmãos, precisou dar duro para colocar comida à mesa. Assim, o sonho de estudar foi ficando para depois.
Aos 40 anos, Ronaldo voltou à sala de aula em busca de diploma do ensino médio. É um dos alunos mais interessados da classe. “Conhecimento é o que alimenta a gente. Quero fazer faculdade, conseguir emprego melhor, ainda tenho esperança nessa vida”, diz.
Colégio Aluísio Azevedo
Estado: Maranhão
Localização: Rural
Ensino: somente ensino médio
Infraestrutura: elementar
Nota na escala de infraestrutura: 45,55
Acreditar em mobilidade social é o que motiva Railine Abreu, 22 anos. Aos 16, ela engravidou, casou-se e deixou os estudos. Logo veio o segundo filho e o abandono do pai das crianças. Ela trabalha como empregada doméstica durante o dia e, à noite, frequenta o anexo do Aluísio Azevedo.
Trabalho como doméstica de dia e aulas à noite: essa é a rotina de Railine
A estudante estava entre os três únicos alunos da instituição que prestaram o Enem em 2017. A falta de acesso à internet para fazer pesquisas e até mesmo a inscrição para a prova foi uma pedra no caminho, mas ela aguarda ansiosa a nota da avaliação.
“Quero que os meus filhos tenham escolhas na vida, que encontrem um colégio adequado, onde possam descobrir o que têm de melhor para oferecer.”
Railine Abreu, aluna do Aluísio Azevedo – anexo de Cachimbos
Maranhão
Só 20% das escolas de Jatobá
tinham internet em
2010
Em 2014 o percentual caiu
para 4,35%
“Comprei livros parcelados, mesmo sem saber como vou pagar, para tentar ficar mais preparada. Me agarro ao Enem como a única chance de realizar meu sonho, que é ser professora. Quero quebrar esse ciclo que se repete na minha família”, relata a jovem, filha de mãe doméstica e pai agricultor.
Aos 17 anos e perto de concluir o ensino médio, Mateus Silva, também aluno do anexo, não parou para pensar qual profissão seguir. Ao contrário dos estudantes de escolas particulares com boa estrutura, que fazem testes vocacionais e se perdem entre tantas opções, ele tem dificuldades em dizer o que gostaria de ser.
Os investimentos no colégio parecem ir na contramão dos esforços individuais de alunos como Railine, Mateus e Ronaldo. A direção sequer soube informar qual é a verba do anexo e quais políticas públicas do governo o beneficiam. O FNDE também não respondeu as perguntas do Metrópoles a respeito desse tema.
“Na comunidade, ninguém cogita ser médico, juiz. O máximo é professor. Meu futuro depende da minha nota no Enem”,
diz Mateus Silva, com resignação
No anexo de Cachimbos, o único sinal da presença do Estado é uma grande foto da prefeita da cidade, Consuelo Lima, pendurada na parede, logo na entrada. Aquele é um semblante que os alunos dizem nunca ter visto pessoalmente.
Capítulo IIIEra uma vez a verba
A conta bancária do Colégio Quilombola 27 de Maio – escola com a menor média da prova objetiva do Enem em 2015 – está zerada. Desde 2010, o centro de ensino do quilombo Mocambo, no alto sertão sergipano, a 170km da capital, Aracaju, enfrenta problemas de má gestão.
Sob suspeita de desvio de verba, a diretora foi exonerada e o coordenador Lucivan Souza assumiu o cargo há cinco meses. Agora, ele tenta colocar a casa em ordem, mas está impedido de receber recursos até que as contas sejam regularizadas.
“Tenho que apresentar notas fiscais de anos anteriores para comprovar gastos da outra gestão, mas ninguém sabe onde elas foram parar. Enquanto isso, estamos vivendo de doações e vaquinhas entre os professores”, afirma o gestor.
A antiga diretora repassou um cheque no valor de R$ 5 mil a uma papelaria com a qual a escola tinha dívida de R$ 1 mil. A Secretaria de Educação de Sergipe abriu sindicância para apurar o destino do restante da verba. Um dinheiro que faz falta. Até 2016, crianças e jovens da comunidade de descendentes de escravos tinham aula debaixo de uma árvore, pois não havia iluminação suficiente nas salas.
O colégio foi exposto em noticiários nacionais como “a pior escola do país”. Mas as reportagens não mostraram os motivos daquele desempenho tão fraco. Ali faltava de tudo: o esgoto corria a céu aberto, não havia computadores nem laboratório de ciências, banheiros viviam sujos e a caixa d’água ameaçava desabar sobre as cabeças dos estudantes.
O quadro de professores estava desfalcado e, ainda hoje, é comum que alunos do 3º ano do ensino médio cheguem ao fim do curso semialfabetizados. “Você pede para um adolescente ler um texto e ele não consegue. Escrever no quadro também é um problema”, relata Lucivan.
Motivar os estudantes a pleitearem vaga no ensino superior é um desafio. “Diante das dificuldades e do histórico familiar, muitos crescem com a noção errada de que ajuda do governo é tudo que eles merecem e precisam ter”, lamenta o diretor.
C. E. Quilombola 27 de Maio
Estado: Sergipe
Localização: Rural
Ensino: infantil, fundamental e médio
Infraestrutura: básica
Nota na escala de infraestrutura: 54,17
A maior parte das famílias do quilombo tem como renda o que recebe do Bolsa Família. Há também quem crie gado e plante, mas a seca na região tornou a agricultura pouco sustentável.
Composta por 114 famílias, Mocambo foi a primeira comunidade quilombola de Sergipe a ser reconhecida oficialmente pela Fundação Cultural Palmares (FCP). Em novembro de 2009, a área, localizada às margens do Rio São Francisco, foi decretada pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, como de interesse público para a consolidação de um território para remanescentes de quilombos.
A partir do decreto presidencial, teve início, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-SE), processo inédito no país: a obtenção de áreas particulares para a criação do futuro território. Ao final de 2013, a autarquia federal concluiu a obtenção dos últimos imóveis inseridos na área delimitada para a fixação de Mocambo.
A história do quilombo, porém, começou muito antes. As Mulheres e os homens negros enfrentavam os brancos, donos das terras, pelo direito de habitá-las. Houve ameaça de morte e muitos conflitos. Até a Pastoral da Terra (da Igreja Católica) precisou intervir. Existir, portanto, já é motivo de orgulho para essa população remanescente, símbolo de resistência.
Sergipe
Em Porto da Folha, 17,24% das escolas tinha internet em 2010
Em 2014, subiu para 30,43%
A escola está ali desde 1949. Passou 67 anos em condições precárias, ocupando terreno na entrada do quilombo. Em 2016, a ONG Neo Missio reconstruiu o prédio num espaço novo. Como contrapartida, o governo do estado deveria instalar ar-condicionado e outros itens menores, que até hoje estão encaixotados.
O cenário no 27 de Maio, nos últimos dois anos, se transformou. Agora, os alunos têm salas adequadas, sete banheiros, quadros em boas condições, iluminação, cantina com refeitório, além das cadeiras e mesas novas. O problema da falta de professores também foi resolvido.
“A gente sabe que infraestrutura não é tudo, mas é um bom começo. A boa educação é a soma de diversos fatores.”
Lucivan Souza, diretor do Colégio Quilombola
Agora, falta chegar internet, ter computadores, biblioteca, laboratório de ciências e quadra de esportes. Professores planejam uma vaquinha para instalar o Wi-Fi – é assim, na base da união, que eles também compram cartucho de impressora e materiais de limpeza.
“Quando ficamos com a pior nota do país no Enem, pensei: ‘Tudo vai desandar de vez ou pode melhorar’. Os olhos dessa ONG [Neo Missio] nos enxergaram e as coisas começam a mudar. Não fomos vistos como fracassados, mas como pessoas que precisam de oportunidade.”
Mailson Acássio, 17 anos, estudante
O jovem está no 2º ano do ensino médio, sonha em ser advogado e é um dos melhores alunos da turma. “Também já quis ser filósofo e historiador”, diz. Cheio de ambições, Mailson já se prepara para o Enem 2018, mas sabe que o caminho não será fácil. Mesmo se tiver boa nota no exame, ele ainda não tem ideia de como se manterá na capital. “Quem é ribeirinho, quilombola, indígena tem que lutar o dobro”, afirma.
O adolescente divide o quarto – e a cama – com quatro irmãos. É filho de um pescador e de uma professora, que foi a primeira pessoa da família a conquistar diploma universitário e escolheu pedagogia. Pais e filhos vivem de favor com um parente, enquanto a casa própria é construída no quilombo. Mailson também trabalha na mercearia da comunidade de manhã, antes de ir ao colégio. “Eu não via perspectiva, mas a reforma da escola renovou a nossa motivação para estudar. Tenho mais fé agora”, diz.
Reação ao mau desempenho
Os dados do Enem orientam a formulação de políticas públicas articuladas entre governo federal, estados e municípios. Uma das respostas às dificuldades enfrentadas por colégios de todo o país foi a criação do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Por meio dele, o Ministério da Educação elaborou diretrizes que facilitam o acesso a financiamentos federais.
Com o PDDE, as unidades de ensino têm verbas para financiar a manutenção do prédio escolar e de suas instalações (hidráulicas, elétricas, sanitárias), além de custear material didático e pedagógico, bem como pequenos investimentos. Os repasses são feitos anualmente, em duas parcelas iguais.
Fonte: Censo Escolar 2017
Existem ainda as “Ações Agregadas ao PDDE”, transferências financeiras para fins específicos classificadas em três grupos: o Novo Mais Educação, que compreende as atividades de educação integral em jornada ampliada; o PDDE Estrutura, constituído pelos projetos Água na Escola, Escola do Campo, Escola Sustentável e Escola Acessível; e o PDDE Qualidade, composto por Atleta na Escola, Ensino Médio Inovador, Mais Cultura nas Escolas e Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE Escola).
De acordo com o Ministério da Educação, as três escolas visitadas pela reportagem tentaram aderir aos programas, mas não estavam aptas. As políticas elaboradas até o momento não alcançaram as “piores escolas” do Brasil.
Raio-X da
infraestrutura
Estudo realizado por pesquisadores das universidades de Brasília (UnB) e Federal de Santa Catarina (UFSC) mostra que a realidade dos três colégios visitados pelo Metrópoles não é exceção. Os especialistas criaram uma escala de avaliação da infraestrutura das unidades de ensino do país a partir das informações do Censo Escolar 2011 relativas a recursos físicos e equipamentos.
Os autores dividiram os resultados em quatro categorias: infraestruturas básica, elementar, adequada e avançada. O Maranhão, onde está o colégio Aluísio Azevedo – anexo de Cachimbos, é a unidade da Federação com infraestrutura escolar mais precária: 80,7% das instituições dispõem apenas de água, sanitários, cozinha, energia elétrica e rede de esgoto. Assim, o estado ganhou a classificação de elementar na escala elaborada pelos pesquisadores: categoria onde se encaixam 44,5% das escolas analisadas no país.
Colégios que têm, além dos itens elementares, salas para diretores, TV, DVD, computadores ou impressoras foram classificados como de estrutura básica. É o caso do Colégio Quilombola 27 de Maio (SE), da escola Doutor Augusto Monteiro (AC) e de 16,2% de todas as instituições pesquisadas.
As instituições “adequadas” – que possuem, além dos itens básicos, sala de professores, biblioteca, laboratório de informática, quadra esportiva, parque infantil e acesso à internet – representam somente 2,96% do universo analisado. Já as “avançadas” – com laboratório de ciências e ambientes adaptados para o atendimento de alunos com necessidades especiais – são apenas 0,11% do total.
Os especialistas da UnB e da UFSC avaliaram, ao todo, 194.932 unidades de ensino públicas e privadas. Os dados dessa escala serão atualizados em breve, com base no Censo Escolar de 2016. Os resultados ainda não foram totalmente compilados, mas uma das pesquisadoras, Elianice Silva Castro, adianta: “Pouco mudou de 2011 para cá. A maioria das escolas continua com infraestrutura elementar e pouquíssimas tornaram-se avançadas. O cenário permanece semelhante”.
“Escolas com avaliações ruins precisam estar no radar do governo para que recebam mais investimento. Elas devem ter prioridade.”
Pilar Lacerda, especialista e ex-secretária de Educação Básica do MEC
O polêmico fim do Enem por Escola
Até 2016, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) – órgão vinculado ao Ministério da Educação e responsável pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em todo o país – divulgava a média das provas objetivas por colégio participante do exame. Somente as unidades educacionais que tinham mais de 10 alunos inscritos na avaliação entravam na lista. Com isso, a imprensa criava uma espécie de ranking dos melhores – e dos piores – centros de ensino.
De acordo com o Inep, o encerramento dessa exposição era sugestão antiga de equipes técnicas responsáveis pelas atividades relativas ao exame, que consideravam inadequada a forma como os dados eram expostos.
“O Inep construiu um consenso interno a respeito da necessidade de descontinuar o cálculo e a divulgação do Enem por Escola e, consequentemente, avançar para os aprimoramentos necessários ao Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Instituído nos anos 1990, o Saeb tem instrumentos mais adequados para a avaliação da qualidade da educação ofertada nos sistemas de educação e nas escolas brasileiras.”
Trecho de nota do instituto
O Saeb é composto por duas avaliações nacionais: a da Educação Básica (Aneb) e a do Rendimento Escolar (Anresc), conhecida como Prova Brasil, criada com o objetivo de avaliar a qualidade do ensino ministrado nas unidades públicas.
“Esse aprimoramento permitirá às escolas de ensino médio acesso a informações adequadas para avaliação da qualidade da educação ofertada”, esclarece a nota. A divulgação do Enem por Escola tornou-se ferramenta de autopromoção dos colégios particulares que selecionam seus melhores alunos para fazer a prova, como ressaltou o ministro da Educação, Mendonça Filho.
O Exame Nacional do Ensino Médio foi criado em 1998 como instrumento de autoavaliação dos estudantes ao final da educação básica. Posteriormente, virou espécie de vestibular adotado em diversas universidades. Em 2010, o Inep, por ordem do Ministério da Educação, começou a divulgar médias por unidade participante.
“O Enem por Escola tornou-se supervalorizado pela mídia e pelas instituições de ensino, sobretudo as da rede particular. Uma primeira incorreção que se disseminou foi a atribuição de uma nota única a cada estudante”, ressalta o Inep.
A proficiência dos que prestam o Enem é computada com base na Teoria de Resposta ao Item, que estabelece uma escala para cada área do conhecimento de forma independente.
“O cálculo de uma única média envolvendo todas as áreas do conhecimento representa grave equívoco metodológico. Apesar de o Inep não divulgar os resultados sob a forma de nota única, o esforço feito no sentido de orientar a sociedade a respeito da incorreção desse cálculo não gerou os resultados almejados”, ressalta o instituto.
Nas duas divulgações mais recentes, houve, por parte do Inep, a tentativa de contextualizar os dados, oferecendo outros indicadores para iluminar as proficiências médias, como os de Nível Socioeconômico, de Permanência na Escola e de Formação Docente da Escola, além das Taxas de Rendimento Escolar do Ensino Médio, que já eram publicizadas pelo instituto.
“O Inep nunca aventou a comparação e a consequente exposição pública de escolas que, uma vez ranqueadas pela imprensa por meio do Enem por Escola, não têm como evitar rótulos que nada contribuem para o aprimoramento pedagógico ou para intervenções que objetivem a melhoria da qualidade do ensino”, diz o instituto, em trecho da nota encaminhada ao Metrópoles. “Diante da responsabilidade do Inep perante a sociedade, a divulgação dos resultados do Enem por Escola foi encerrada a partir da edição de 2016”, conclui.
Humilhação pública
O doutor em políticas de educação básica pela Universidade de Brasília (UnB) Célio da Cunha acredita que o fim dessa divulgação é positivo. Segundo ele, fazer um ranking tornou-se uma forma de “humilhação pública”.
“A função desses números é orientar políticas públicas. Se não cumprem esse papel, o Estado falhou”
Célio da Cunha, doutor em educação
“Um colégio pobre não pode ser comparado a um rico, isso é desonesto. A escola deve se comparar com ela mesma. Diretor e professores precisam se unir para traçar as próprias metas, descobrir o que podem fazer de melhor com os recursos disponíveis. Eles só conseguirão fazer isso com políticas públicas, não depende de um ranking”, aponta o especialista.
A ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação, Pilar Lacerda, concorda: “O Enem não pode servir para ranquear. Sem levar isso em consideração, a gente começa a comparar jovens que não têm sequer acesso a saneamento com outros que vivem em zonas urbanas”.
Há quem discorde dos argumentos para acabar com o Enem por Escola. O ex-presidente do Inep e atual diretor da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave), Reynaldo Fernandes, considera a atitude equivocada. “A lista ajuda as escolas a tomar posição. O Saeb só avalia leitura e matemática. O fato de os alunos usarem o Enem como vestibular aumenta o grau de compromisso e, por consequência, a precisão daqueles dados”, afirma.
O Inep não divulgava os resultados de escolas com menos de 10 alunos participantes. “Ou seja, pode haver colégios em situação ainda pior que a dos posicionados em último lugar. A lista servia também para orientar essa preocupação. Ainda não ficou claro como essa comparação será possível usando o Saeb”, avalia Reynaldo Fernandes.
Rafael Camelo, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, estudou o impacto da divulgação das notas do Enem por Escola. Depois de avaliar a evolução dos resultados obtidos por colégios públicos e privados com base nos dados do Inep, ele percebeu que instituições particulares usavam o desempenho para nortear a qualidade do ensino oferecido.
Nessas unidades, após uma avaliação ruim, Camelo observou uma evolução entre 3 e 15 pontos nos anos seguintes. “A escola pode mudar professores ou currículo em resposta a um resultado insatisfatório dos alunos submetidos a testes padronizados. Isso, porém, foi constatado nas instituições particulares, mas em escala muito menor nas públicas, que tendem a não aumentar as notas após um desempenho ruim”, explica Camelo.
Independentemente da publicação de ranqueamento, as notas do Enem servem e devem orientar políticas públicas. Apontar o problema é o primeiro passo para mudar uma condição. Ouvir o que revelam as estatísticas é a mais fundamental providência para recuperar a qualidade do ensino no país, especialmente quando os dados confirmam a visível circunstância de penúria de certas instituições.