A TRAGÉDIA DE MARIANA (MG) VISTA PELA JANELA DO TREM

O Metrópoles percorreu os 905 km da Estrada de Ferro Vitória a Minas para mostrar como a exploração mineral mudou a paisagem e rotina dos moradores da região

Eumano Silva

Todos os dias, à tarde, os irmãos Guilherme, 11 anos, e Vinícius, 7, sobem a passarela acima dos trilhos para ver o trem passar. Os dois garotos moram em uma casa verde construída ao lado da linha férrea, em Governador Valadares (MG), e se divertem com a gigantesca máquina em movimento sob seus pés. Acompanhados do pai, o motorista Ivair Silva dos Santos, 45, eles observam com atenção o trânsito de vagões carregados de minério de ferro ou de passageiros.

Estudiosos, falantes e cheios de planos, os dois meninos convivem bem com a proximidade da linha férrea. “A vida aqui é um pouco perturbada por causa do barulho, mas gosto de ver os trens para entender como funcionam”, conta o mais velho. “Tenho até vontade de ser maquinista”, diz o caçula, em alusão ao profissional responsável por conduzir os enormes aparatos mecânicos.

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Guilherme e Vinícius, acompanhados do pai, Ivair Silva dos Santos, observam com atenção o trânsito de vagões da EFVM

Como acontece com boa parte dos habitantes da região, a família Santos aprecia os trajetos de trem. De vez em quando, pais e filhos percorrem o trecho até Vitória. “Não gosto muito da comida, mas a viagem é confortável e a gente pode ver a paisagem”, enfatiza Guilherme. “Vale a pena fazer esse passeio por causa da satisfação de olhar pela janela e por também poder andar nos vagões”, acrescenta Ivair.

A Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) está presente no cotidiano da população de Governador Valadares e de dezenas de cidades desenvolvidas ao longo dos trilhos. Construída a partir de 1902 por iniciativa de empresários mineiros e capixabas, teve o primeiro trecho inaugurado dois anos depois. Desde então, os comboios carregam pessoas, bagagens e minérios em um percurso sinuoso – traçado, sobretudo, em função das margens do Rio Doce.

Estrada de Ferro Vitória a Minas

1904

Inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro Vitória a Minas, construída por empresários de Minas Gerais e do Espírito Santo. Traslado entre os dois estados, principalmente de madeira extraída das matas

1906

Inauguração da Estação Colatina

1915-1918

Interrupção da obra em decorrência da Primeira Guerra Mundial

Década de 1920

Inauguração da estação de Ipatinga (MG)

1940

Na Estação Desembargador Drummond, no município de Nova Era (MG), primeiro trem carregado de minério de ferro de Itabira (MG). Exportação de 5.750 toneladas do porto de Vitória para os Estados Unidos

1942

Nacionalização da EFVM pelo governo Getúlio Vargas. Fundação da estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)

1944

Inauguração da Aços Especiais de Itabira (Acesita). Aço produzido na fábrica segue, pela ferrovia, para os portos de Vitória

1950

Troca das locomotivas a vapor pelas movidas a diesel. EFVM compra cinquenta dessas máquinas

1954

Vagões de aço substituem os de madeira

1958

Criação da Usiminas, em Ipatinga (MG)

1968

Inauguração de um estaleiro de soldas em Governador Valadares (MG), para auxiliar na montagem de trilhos

Década de 1970

Duplicação de toda a ferrovia da EFVM e instalação do Controle de Tráfego Centralizado, para supervisionar todas as operações da via férrea

1984

EFVM atinge a marca de 1 bilhão de toneladas transportadas desde a inauguração

1997

Privatização da Companhia Vale do Rio Doce

2007

CVRD passa a se chamar Vale

2014

Aquisição de novos trens, da Romênia, mais seguros e confortáveis

No final de 2018, a EFVM é a única linha ferroviária de passageiros que opera diariamente no Brasil. Todas as manhãs, às 7h, um trem sai de Cariacica, na grande Vitória, com destino a Belo Horizonte. Meia hora depois, um comboio semelhante deixa a capital mineira rumo ao Espírito Santo.

Pelas janelas dos vagões, os viajantes vivem um pouco do ambiente que, no passado, inspirou poetas e compositores. Em 1960, Manuel Bandeira escreveu o poema Trem de Ferro, eternizado na música de Tom Jobim: “Foge, bicho/Foge, povo/Passa ponte/Passa poste/Passa pato/Passa boi/Passa boiada/Passa galho/De ingazeira/Debruçada/Que vontade/De cantar!”.

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A Estrada de Ferro Vitória a Minas faz parte do cotidiano da população mineira

Em outro clássico do século passado, o poeta Ferreira Gullar fez a letra de Trenzinho do Caipira, composição do maestro Heitor Villa-Lobos. “Lá vai o trem com o menino/Lá vai a vida a rodar/Lá vai ciranda e destino/Cidade e noite a girar/Lá vai o trem sem destino/Pro dia novo encontrar/Correndo vai pela terra.”

Cerca de um milhão de pessoas embarcam e desembarcam todos os anos nas 30 estações distribuídas pelos 905 quilômetros da EFVM. Os trens transportam mais de 100 milhões de toneladas de 40 tipos de produtos, com destaque para o minério de ferro extraído e exportado pela Vale S.A., antiga Vale do Rio Doce, ex-estatal, privatizada em 1997.

Mapa

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No mesmo ano, a empresa tornou-se concessionária da Estrada de Ferro Vitória a Minas, contrato válido por três décadas. Na perspectiva da população local, a Vale e os trens proporcionam momentos de alegria para crianças e têm significativa importância no transporte das famílias.

Os vagões carregados de pedra também simbolizam adversidades traumáticas para os moradores das cidades e fazendas ribeirinhas. O rompimento da barragem do Fundão, no município de Mariana (MG), em novembro de 2015, provocou a inundação do Rio Doce com lama de rejeitos de mineração.

A Vale é sócia da Samarco, empresa responsável pela represa rompida. As pedras retiradas das minas produtoras de despejos iguais aos que entupiram mais de 600 km do Rio Doce e chegaram ao Oceano Atlântico são escoadas pela ferrovia como commodities.

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O avanço da atividade mineradora foi ancorado no transporte sobre os trilhos da EFVM

Maior desastre ambiental do país, a tragédia destruiu povoados, matou 19 pessoas e arrastou os detritos das escavações realizadas nas montanhas mineiras até o Oceano Atlântico, mais de 600 km abaixo da obra rompida. Para arrancar milhões de toneladas de pedras transportadas pelo trem Vitória-Minas, as mineradoras têm construído gigantescas represas, como a do Fundão, para despejar rejeitos.

Tragédia de Mariana

1973

Criação da empresa Samarco, sociedade entre a brasileira Samitri, pertencente à Belgo-Mineira, e a norte-americana Marcona Mining Company

1984

Grupo australiano The Broken Hill Proprietary Company Limited (BHP) adquire controle da Marcona

2000

Privatizada, a Companhia Vale do Rio Doce compra a Samitri

2008

Início das obras da barragem do Fundão

5 de novembro de 2015

Estouro da barragem provoca avalanche de lama e rejeitos e invade os primeiros povoados

Novembro de 2015

Nos dias seguintes, indígenas da reserva Krenak, cortada pelos trilhos, fecham a ferrovia no município de Resplendor (MG) e fazem manifestação contra o impacto da sujeira no Rio Doce

21 de novembro de 2015

Pelo leito do Rio Doce, lama da Samarco chega ao Oceano Atlântico

Março de 2016

No município de Belo Oriente (MG), moradores bloqueiam a linha férrea para cobrar ações da Samarco

Maio de 2016

Em Baixo Guandu (ES), habitantes interditam a linha férrea para exigir pagamentos e auxílios da Samarco

Lançado em outubro deste ano, o livro Tragédia em Mariana: a história do maior desastre ambiental do Brasil Escrito, de autoria da jornalista Cristina Serra, faz uma reconstituição minuciosa e primorosa da catástrofe. A obra conta o drama das comunidades assoladas pelos destroços e revela as falhas de engenharia e gerenciamento que levaram ao rompimento da barragem.

A jornalista fez um resumo dos danos causados na zona rural. “Das 195 fazendas atingidas, 25 foram totalmente destruídas. A lama arrastou tratores, ordenhadeiras, motores, bombas, tanques de leite e balanças, num total de 293 máquinas e equipamentos. Mais de 160 mil metros de cerca e 1.596 animais, a maioria gado, foram levados na enxurrada”, relata Cristina.

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Antes de trafegar com os vagões abarrotados de minério de ferro, a EFVM firmou-se, na primeira metade do século 20, no escoamento de madeira extraída das matas de Minas Gerais e do Espírito Santo. Em 1943, depois de estatizada, a ferrovia ganhou um ramal até Itabira.

A expansão da mineração na região central de Minas Gerais e no vale do Rio Doce a partir da década de 1960 preservou a importância econômica da ferrovia. Os professores Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Cristiana Losekann, da Universidade Federal do Espírito Santo, produziram o livro Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e ações sobre a destruição, lançado em 2016.

Na obra, os dois acadêmicos apresentam um histórico detalhado do avanço da atividade mineradora, ancorada no transporte sobre os trilhos da EFVM, e das consequências do rompimento da barragem do Fundão.

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“Na trajetória da exploração mineral, a Segunda Guerra Mundial promoveu novas funções econômicas para a bacia do Doce, especialmente com a intervenção do governo brasileiro ao assumir a EFVM por meio da Companhia Vale do Rio Doce, criada com o fito de explorar o minério de ferro de Itabira”, diz trecho da publicação.

Essa nova frente de exploração das riquezas naturais patrocinou a instalação, em 1943, de um ramal ferroviário até Itabira (MG). O governo Getúlio Vargas tinha interesse em extrair o minério de ferro até a cidade imortalizada nos versos de Carlos Drummond de Andrade no poema Confidência do Itabirano: “Itabira é apenas uma fotografia na parede/Mas como dói”.

Três anos depois da tragédia, o verde da vegetação ocupa as áreas cobertas de lama em 2015. Parte da reconstituição se deve aos trabalhos da Fundação Renova, instituição criada pela Samarco para executar medidas que atenuassem os danos acarretados pelo barro e reduzissem os prejuízos causados à imagem da empresa.

As consequências do desastre ainda afetam a população, principalmente nas áreas urbanas. Com cerca de 300 mil habitantes, Governador Valadares foi a maior das cidades atingidas pela enchente de lama contaminada por metais. A escassez de água provocou desordem e revolta nas ruas. O abastecimento, em parte, foi feito com caminhões-pipa.

Desde o fatídico episódio, a comunidade de Governador Valadares não confia no líquido das torneiras – seja para beber ou cozinhar. Muitas famílias compram água mineral. Outras recorrem a poços artesianos ou a nascentes da região. “Busco em uma mina a uns seis quilômetros de distância. Às vezes, tenho até vontade de mudar daqui por causa dessa situação”, conta o motorista Ivair.

Em Colatina (ES), a sujeira produzida pela mineradora Samarco complicou a vida do agricultor Gilberto Pereira Freitas, 41, e de sua companheira, Rosa Cordeiro, 48. O incômodo perdura três anos depois do rompimento da barragem do Fundão.

Sem confiança para utilizar a água disponibilizada pela prefeitura, duas vezes por semana o casal recorre a uma mina na periferia da cidade a fim de pegar cerca de 60 litros do líquido. “Usamos para beber e fazer comida”, explica Gilberto, enquanto enche os garrafões.

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Em Colatina (ES), a sujeira produzida pela mineradora Samarco complicou o acesso à água

Os danos provocados pela tragédia estimularam protestos da população atingida. Em três momentos, a regularidade do trem restou prejudicada. Ainda em novembro de 2015, no município de Resplendor (MG), os indígenas da reserva Krenak, que é cortada pelos trilhos, fecharam a ferrovia para se manifestarem contra o impacto da sujeira no Rio Doce. A vida e as tradições desse povo giram em torno do rio.

Nos municípios de Belo Oriente (MG), em março de 2016, e de Baixo Guandu (ES), em maio do mesmo ano, moradores bloquearam a linha férrea com o objetivo de cobrar da Samarco o pagamento de auxílio para vítimas da catástrofe e o restabelecimento da distribuição de água.

Já no final de 2018, as marcas de lama remanescentes nas margens do Rio Doce são quase invisíveis aos olhos dos viajantes de trem. A água barrenta do tempo de chuvas camufla a sujeira e os minérios deixados pela avalanche de rejeitos.

A presença da atividade econômica que motivou o estrago ambiental fica evidente na geografia vista da janela do vagão. Montanhas recortadas por máquinas escavadoras e leitos de rio tomados por resíduos das jazidas denunciam a agressividade da extração mineral em grande escala.

O desastre de Mariana matou quase toda a população de peixes do Rio Doce e afetou a vida dos ribeirinhos. Dentro do vagão, o pedreiro Roberto Carlos Siqueira, 51, se recorda de quando pescava para reforçar a renda da família. Depois da lama do Fundão, os cardumes praticamente desapareceram.

“Ninguém mais compra os peixes do Rio Doce, as pessoas pensam que estão contaminados”, reclama Roberto Carlos, que morou em uma ilha fluvial entre 1990 e 1994. Outra tragédia, desta vez pessoal, complicou ainda mais a sobrevivência do pescador. Ele também trabalhava como vaqueiro e pedreiro, isso até cair de um andaime e quebrar uma perna e os dois braços – após o acidente, foi obrigado a usar muletas.

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Roberto Carlos Siqueira perdeu renda depois da tragédia de Mariana

Ele mora em uma fazenda da família. Com frequência, pega o trem para ver um filho que reside em Ipatinga (MG), no Vale do Aço. As amplas acomodações facilitam os deslocamentos. “Enquanto Deus me der vida e saúde, vou usar essa ferrovia”, garante o ex-pescador. “A viagem é mais segura e mais barata do que se fosse de ônibus”, conclui.

O bilhete de Belo Horizonte a Cariacica, maior percurso, custa R$ 73,00 na classe econômica. Na Executiva, mais espaçosa, é cobrado o valor de R$ 105,00. De ônibus convencional, paga-se pelo menos R$ 119,00 – na categoria mais confortável, a mesma viagem sai por cerca de R$ 150,00.

Outra entusiasta das viagens de trem sofreu as consequências da enchente de sedimentos. Funcionária pública e moradora de Governador Valadares, Edna Aparecida de Souza, 56, precisou comprar galões de água para beber, fazer comida e lavar roupa. “Só resolvemos a situação depois que meu irmão mandou furar um poço artesiano”, assinala.

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Edna Aparecida de Souza é passageira assídua do transporte ferroviário

Há mais de 30 anos, Edna usa os serviços da estrada de ferro. Na maioria das vezes, para fazer percursos curtos. Mas, recentemente, esticou a jornada até Belo Horizonte. “Gostei demais da cidade, vou pegar o trem para ir lá outras vezes”, comenta.

Raísa Zan tem 27 anos e, desde os dois, conhece os vagões da Estrada de Ferro Vitória a Minas. Ela nasceu e vive em Resplendor (MG). Regularmente, visita a avó em Ipatinga. As duas cidades ficam na beira da ferrovia. “Este trem marcou todas as gerações daqui, desde meus avós. Faz parte da nossa cultura”, ressalta a jovem, enquanto olha para a geografia do vale do Rio Doce.

Formada em Relações Internacionais, Raísa morou, nos últimos anos, na Colômbia e nos Estados Unidos, onde se acostumou com o transporte ferroviário. “Eu ia muito de Peabody, no estado de Massachussets, para Boston”, relata.

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Raísa Zan guarda na memória momentos divertidos vividos nos vagões

Na memória de Raísa, porém, permanecem nítidas as lembranças dos passeios de infância sobre os trilhos mineiros. “Para falar a verdade, tenho saudade do tempo em que não tinha ar-condicionado. As janelas eram abertas e os moradores de Tumiritinga vendiam cocada e pé-de-moleque para os passageiros”, recorda-se, ao fazer alusão a mais um município de Minas Gerais cortado pela linha de ferro.

Dos tempos de criança, ela também se lembra do pó de minérios que entrava pelas laterais dos vagões. “Chegávamos em casa com o corpo coberto por uma camada brilhante, isso era uma grande brincadeira para a meninada”, menciona.

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A mudança que permitiu a refrigeração da viagem ocorreu em 2014, quando a Vale comprou 56 novos vagões para substituir os antigos. Fabricados na Romênia, os carros importados têm padrão semelhante ao dos trens que circulam na Europa. Os vidros fechados acabaram com o comércio informal de comida.

Hoje, os passageiros têm um vagão-restaurante e outro com lanchonete para comprar alimentos e bebidas sem álcool. O almoço simples – arroz, feijão, farofa e carne – é servido ao preço de R$ 16,00. Um carrinho com biscoitos, sucos e café circula pelos vagões.

Para Tania Marcia da Silva Dornelas, 56, os deslocamentos de trem sempre fizeram parte da programação da família. Depois de se casar, mudou-se para Pompéu (MG), cidade beneficiada por uma ferrovia conectada à Vitória-Minas. Como os pais dela tinham fazenda em Resplendor, as idas ao local eram frequentes.

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De acordo com Tania Marcia da Silva Dornelas, viajar sobre os trilhos era sinônimo de diversão para a garotada

Não foram raras as vezes em que turmas de sobrinhos de Tania passearam de trem. Chegou a viajar com 16 crianças. “As viagens eram as melhores para a meninada, pois podiam brincar. Os pais também ficavam tranquilos, por causa da segurança”, diz a passageira. Mais de uma vez, ela convidou vizinhos de Pompéu para conhecer as belezas naturais da propriedade rural.

No mesmo vagão, viaja Madalena Zeferino de Oliveira, 60, moradora de Juatuba (MG). A aposentada usa a ferrovia desde os 13 anos. Atenta, observa as mudanças no trem e na paisagem. No dia da entrevista concedida ao Metrópoles, acompanhava os pais, que moram em Conselheiro Pena, outra cidade do vale do Rio Doce.

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Madalena Zeferino de Oliveira utiliza o transporte há quase 50 anos

Apesar do tom nostálgico adotado para falar do passado, Madalena aprecia as novidades. “A vantagem das janelas fechadas é que não entra mais poeira dentro dos vagões. Às vezes, a gente ficava sujo com o carvão dos vagões de carga. Agora, é tudo mais limpinho”, pontua.

Manifestações saudosistas são comuns entre usuários e profissionais das ferrovias. O mecânico aposentado José Idemar Nunes, 68, vive desde a infância em uma casa colada à linha de trem, situada do outro lado da passarela usada pelos garotos Guilherme e Vinícius. “Sou do tempo da maria fumaça”, diz, referindo-se às locomotivas movidas a lenha, usadas até meados da década de 1950.

Ativas desde o início da ferrovia, essas máquinas foram substituídas por outras mais modernas, a diesel ou elétricas. “Com tanto tempo aqui, para mim, o barulho do trem é como canção de ninar”, acrescenta.

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José Idemar Nunes reside desde garoto perto dos trilhos

Com boa parte do tempo ocupada nos cuidados com a mulher, que se encontra doente, Idemar cruza quase todos os dias a ferrovia – pela passarela – para, do outro lado, tomar uma dose de cachaça em uma mercearia. Dos tempos de criança, ele guarda as lembranças do futebol jogado com os amigos perto da linha férrea.

Hoje, muros paralelos aos trilhos impedem esse tipo de diversão arriscada. A meninada tinha um hábito ainda mais perigoso: “A gente costumava jogar pedras no trem, só de brincadeira”, revela.

A melancolia aparece com mais força nas palavras de João Batista Lima Freitas, 66, ex-maquinista das locomotivas da Vale. Depois de trabalhar por 23 anos na empresa, ele se aposentou da profissão que escolheu muito cedo. “Desde menino, eu sonhava em conduzir esses trens”, confidencia.

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João Batista Lima Freitas trabalhou por mais de duas décadas como maquinista das locomotivas da Vale

Em entrevista concedida ao Metrópoles, João Batista deu algumas explicações básicas sobre a máquina de ferro. Contou, por exemplo, que os trilhos da estrada Vitória-Minas são de bitola estreita, adequada para linhas como a que serpenteia no caminho traçado pelo Rio Doce. A prosa aconteceu na praça que fica em frente à estação de Governador Valadares

“Bitola” é o padrão adotado pelas ferrovias para definir a largura entre os trilhos. No caso da EFVM, a distância é de um metro. Com essa característica, as curvas não podem ser tão fechadas e a velocidade máxima é inferior à das linhas de bitola mais larga. A Estrada de Ferro Carajás, entre o Pará e o Maranhão, por exemplo, usa outro padrão, com 1,6 metro de largura.

As memórias do ex-maquinista preservam um episódio angustiante vivido em Aymorés (MG). Certa noite, João Batista conduzia o trem a 47 km/h na travessia da cidade quando, de repente, um homem pulou na frente da locomotiva. Sem tempo para frear, atropelou o cidadão, que foi jogado a muitos metros de distância.

Sem saber o que tinha acontecido, seguiu viagem e, somente no outro dia, tomou conhecimento dos detalhes da ocorrência. Antes de se jogar nos trilhos, o homem tentou suicídio ao pular de um caminhão em movimento, mas, ao cair em cima de umas plantas, sobreviveu.

Em mais uma tentativa de tirar a vida, o sujeito saltou dentro de um rio. Embora não soubesse nadar, fracassou novamente em seu intuito, pois foi parar em um banco de areia.

Para surpresa do maquinista, o homem também havia falhado na noite anterior. Por mais incrível que pareça, depois do impacto do trem, ele se levantou e, em seguida, deixou o local caminhando. A descoberta foi um alívio para João Batista.

Casos alegres e tristes compõem o vasto repertório vivido por viajantes frequentes ou esporádicos, de todas as idades, levados pelos trilhos da EFVM nas montanhas de Minas e do Espírito Santo. O movimento cadenciado dos vagões embala sonhos de crianças, a exemplo de Guilherme – o menino que quer conduzir locomotivas, e adultos, como João Batista – o ex-maquinista que sente saudade do tempo em que comandava comboios de até três quilômetros de comprimento.

De suas poltronas, os passageiros contemplam cenários cinematográficos. Montanhas verdes, rios, cachoeiras, fazendas e faixas de reservas florestais. Os viajantes veem também matas devastadas – rastos deixados pelas máquinas de mineração. São imagens que testemunham a ocupação, desde o início do século passado, do corredor de exploração econômica aberto em torno da EFVM.

Tragado pela enchente de lama da Samarco, o Rio Doce segue seu curso e arrasta, há três anos, os despojos da terra escavada durante a mineração descontrolada. Nas suas margens, o povo padece em razão da falta de água limpa. Pela janela do trem, passa um pouco da história do Brasil.