O amor doía no engenheiro militar de 27 anos, casado havia pouco mais de um ano. Ele estava no sertão goiano. Ela, no Rio de Janeiro. Hastimphilo de Moura integrava a Missão Cruls, expedição que, em fins do século 19, esquadrinhou o Planalto Central para demarcar o quadrilátero onde seria construída a nova capital do Brasil. Clarinda de Moura, 16 anos, ficara à beira-mar (moravam em Copacabana), apreensiva, dadas as notícias de que no desconhecido centro geográfico do país habitavam feras e índios, igualmente bravios.
As cartas mitigavam a saudade, mas demoravam mais de mês para alcançar o amor distante. E outro mês para trazer de volta notícias apaixonadas. Os febris papéis manuscritos se perderam no tempo. Ficaram os diários de Hastimphilo, então tenente do Exército, homem ao mesmo tempo disciplinado, rigoroso e afetuoso – mais que afetuoso, intensamente apaixonado pela mulher a quem chamava de “minha Lilinda”.
Conheceram-se no Rio de Janeiro quando ela ainda era uma garota de 13 anos, embora já tivesse 1,70 m e corpo de mulher. Casaram-se em 1891, um ano depois de a legislação brasileira subir de 12 para 14 anos a idade mínima para uma menina se casar. E de 14 para 16, para os meninos. Hastimphilo era um republicano e democrata e o sogro, o comendador José de Queiróz Quintal, um monarquista com acesso ao imperador dom Pedro II.
“Nós nunca discutimos o assunto. Eu o respeitava, ele me respeitava”, dizia Hastimphilo ao filho caçula, Aldmir de Moura, que em 1998 contou a história do pai ao Arquivo Público do DF.
A saudade adoecia os dois amantes (amante = quem ama). Nem bem havia chegado a Uberaba (MG), a caminho do sertão goiano, Hastimphilo recebeu telegrama de Clarinda: “Venha, estou doente” (Telegrama era o WhatsApp da época, em papel, com texto conciso e entrega rápida). Ao que ele respondeu, dirigindo-se à cunhada: “Estado Lilinda grave? O que é?”. E anotou no diário de campo que esperava pela resposta “no meio das maiores torturas”. E só fazia nove dias que ele havia deixado o Rio.
Dois dias depois de ter recebido as más notícias da amada, o amado anotou no diário: “A noite passada toda não dormi, tristíssimo tenho estado o dia todo e sob a pressão de tanta tristeza não sei como passarei a noite”.
Mesmo sob o domínio do amor distante, o engenheiro militar anotava quase que diariamente os acontecimentos frugais da Missão Cruls, anotações que resultaram no único relato conhecido sobre os bastidores da expedição. Suas funções eram secundárias, de ajudante, embora o relato indique uma aproximação afetiva dele com o chefe, astrônomo Luiz Cruls.
O diário de campo revela o cotidiano da aventura científica, as intrigas, as bebedeiras, os imprevistos, o clima, o modo de vida dos sertanejos goianos, as más noites dormidas em cama de couro, o chuvaréu incessante, a falta de comida suficiente para todos, dadas as distâncias entre as cidades e as dificuldades de acesso. Tudo com um fundo de desesperada saudade.
A doença de Lilinda talvez fosse mesmo mal de amor. Três dias depois de receber o telegrama da mulher amada, pedindo que ele voltasse ao Rio, Hastimphilo recebeu outra mensagem: “Estou boa”.
Vencidos sete dias de marcha a pé e em lombo de burro, dormindo em ranchos, ermos e fazendas, a expedição chegou às proximidades de Patos de Minas. No pouso denominado Pindaíba da Nova Jolino, Hastimphilo ficou encantado com uma coleção de diamantes brutos que um certo francês lhe ofereceu. O apaixonado comprou cinco pepitas “especialmente com o fim de reservar como presente de anos da minha idolatrada Lilinda”. A região era rica em minas de diamante.
Daí em diante, o engenheiro passaria a comprar pedras brutas de diamantes e pepitas de ouro para a amada. O filho Aldmir conta que a mãe tinha um cordão com um pingente de ouro maciço, em forma de concha, com uma pepita brilhando do lado de dentro e um diamante faiscando na borda. Tudo presente do Planalto Central.
Quando chegaram a Catalão (GO), em 14 de junho de 1892, Hastimphilo e seus companheiros assistiram a uma cerimônia incomum para os da cidade grande: um casamento coletivo, no qual os noivos foram colocados ao lado das noivas, em um semicírculo em cujo centro um vigário celebrava a união. No relato, não há mais detalhes, porém, é provável que os noivos fossem de famílias abastadas ou, pelo menos, remediadas, visto que naquele tempo e lugar os pobres não se casavam, amasiavam-se, concumbinavam-se, como observou Saint-Hilaire, o viajante francês que passou por Goiás no século 19.
No segundo mês de expedição, Hastimphilo estava com uma ansiedade “quase indômita”. Pediu ao astrônomo Luiz Cruls, a quem chamava de Chefe, para partir na frente da comitiva e chegar logo a Pirenópolis. Esperava receber correspondências de Clarinda. “Logo fomos ao correio, onde encontrei cinco cartas da minha Lilinda”. No dia seguinte, não fez outra coisa: “O dia de hoje passei quase todo escrevendo para minha Lilinda”.
Lilinda, Lilinda, Lilinda – o nome da amada percorre todo o diário, do primeiro ao último dia de anotações, de junho a outubro de 1892. O enamorado desbravador do sertão goiano parecia estender o cuidado com a amada a outras mulheres. Em 6 de agosto, ele registra, com indignação, uma fofoca: ouvira dizer que um dos integrantes da comissão não dormia com a esposa “porque tinha nojo dela e que este nojo era ainda muito maior quando ela estava em estado interessante”. A essa altura, ele já sabia que Clarinda estava grávida.
Quando chegaram a Corumbá de Goiás, mais desassossego: “Quanto mais afasto-me da minha Lilinda, mais saudoso fico; estou ansioso para voltar tanto mesmo que o mais tardar desejo estar com ela nos 1ºs dias de novembro, porque é na 2ª quinzena em diante que deve nascer meu filhinho”.
O engenheiro formado também em ciências físicas e mais tarde em artilharia gostava de contemplar a natureza. Abarracado em Formosa, ele se deixa inebriar pelo brilho dos cupinzeiros: “Vi numa casa de cupim uma miríade de pontos luminosos que bem se podiam comparar a um céu estrelado”. O militar se encantara com a luminescência das larvas de vagalumes que se escondem nas fendas do cupinzeiro para, com a luz do corpo, atrair e devorar insetos.
Quatro meses sem ver a amada: “Ultimamente tenho sofrido porque quero ir para junto dela e não posso. É um verdadeiro desespero”, anotou em 16 de outubro. Nem por isso deixava de atender às expectativas do Chefe, o astrônomo belga para quem havia trabalhado no Observatório Imperial do Rio de Janeiro. É de Hastimphilo o desenho, a lápis, do quadrilátero dentro do qual seria construída a nova capital.
O desespero vai num crescendo, o nome da amada surge em quase todas as anotações. Hastimphilo colhe flores para a amada, compra um periquito para a amada, não vai a festas com saudade da amada (“neste momento (9 ½ da noite) está aqui a música tocando; e eu, cheio de tristezas e saudades, não posso suportar mais essa demora aqui”). A Missão Cruls passou por Catalão, Pirenópolis, Corumbá, Cidade de Goiás, Luziânia, Planaltina, Formosa, Chapada dos Veadeiros. E pelas terras onde em meados do século 20 surgiria Brasília.
Leia trechos do diário de Hastimphilo durante a Missão Cruls
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Leia trechos das cartas enviadas durante a Missão Cruls
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Num fim de tarde em que todos seguiam para o jantar, o engenheiro teve uma forte vertigem. Percebendo o perigo, dois companheiros o seguram pelos braços e o levam para casa. “Confesso que não sei bem qual a minha moléstia, que me conserva até hoje abatido e em uso de quinino. Múltiplas são as coisas em cujo número está o sofrimento moral, porque as saudades da minha Lilinda são grandes…”
Quase às vésperas de voltar para o Rio de Janeiro, Timphinho apaixonado recebe um telegrama dando conta do nascimento da primeira filha, Altair (o casal teria sete filhos). Nos dias seguintes, o mal-estar se agrava e o tenente teme a morte prematura. Na carta à amada, um pedido inesperado:
“Se isso acontecer, minha Lilinda idolatrada, recebe este pedido que te vou fazer como o de um moribundo, que morrerá pensando em ti e em nossa querida filhinha que não tive ainda a felicidade de conhecer. Ficarás viúva e muito moça de modo que não faltará quem se queira unir a ti. Mas, eu te peço, não te cases outra vez, não dê padrasto a essa inocente criança, porque será provavelmente a sua infelicidade futura e (quem sabe?) a tua também.
Se conservares sempre vivo na imaginação o nosso amor se não esqueceres o teu Timphinho, se fores fiel aos juramentos dados, se compreendestes bem a vida, poderás te conservar viúva honesta e virtuosa a vida toda, e feliz, embora pobre. Que este pedido meu ecoe sempre no teu coração, que ele permaneça eternamente no teu espírito, tanto nos dias felizes como nos de infortúnio!
E se deles venhas esquecer-te, desde o dia que a outro te entregares, a tua paz e felicidade serão perenemente perturbadas pelas recordações destas palavras minhas, porque elas te farão lembrar, sem mesmo quereres, os poucos dias felizes que passamos, desde o momento em que te dediquei a minha vida, felicidade e futuro! Traz de cor estas minhas palavras!…”.
Era antevéspera do Natal de 1892, último registro que o amante fez de sua amada, mas o Planalto Central ainda acolheria o casal Timphinho e Lilinda.
Dois anos depois, a Missão Cruls voltou para detalhar os dados técnicos da demarcação do quadrilátero que havia sido esboçada na primeira expedição. Não demorou e o amoroso viajante mandou telegrama para a amada: “Quer vir para cá com nossa filhinha?”. Não precisou perguntar duas vezes. Em maio de 1895, Clarinda e a pequena Altair, de 1 ano e 4 meses, chegaram a Uberaba, fim da estrada de ferro Mogiana. Um ansioso Timphinho a esperava. Juntos, os três fizeram a viagem de volta até as profundezas de Goiás, 500 km em lombo de burro.
Desde então Clarinda de Moura passou a ser festejada como a primeira mulher a pisar o sertão goiano, o que é uma desconsideração com todas as outras que habitavam os confins de Goiás ou vieram visitá-lo. Empolgado, Luiz Cruls sugeriu que a primeira avenida da nova capital tivesse o nome de Lilinda, segundo conta o filho caçula, Aldmir.
Luiz Cruls mandou construir uma casinhola para o casal. Supõe-se que tenha sido no acampamento da expedição, às margens de um córrego dentro do hoje Parque Nacional de Brasília (desde então o córrego passou a se chamar Acampamento).
Sessenta e três anos depois, aos 85 anos, Clarinda contou à Revista Brasília, edição número 19, que todos a aconselharam a não vir para a terra de feras, índios e bandoleiros. “Mas o amor que dedicava ao marido e o senso de dever de esposa foram mais fortes”, escreveu o repórter. “D. Clarinda fala de sua aventura como um passeio agradável. Afirmou que sua vida lá foi fácil e sem preocupações. Seu marido determinou que um dos homens fosse seu criado e muitas e muitas vezes ela ficou só, com sua filha, enquanto os homens divididos em três turmas exploravam a região.”
Clarinda morreu aos 87 anos, dois anos depois dessa entrevista (publicada em junho de 1958). Hastimphilo havia morrido três anos antes, aos 91 anos.
A neta Maria Lúcia de Moura, 73 anos, carioca, diz que nunca viu amor tão grande.
Republicano, o amado de Clarinda não gostava de conspirações
O apaixonado Hastimphilo de Moura estava no começo da carreira militar quando veio para o Planalto Central. Maranhense de Itapicuru-Mirim, cursava a Escola Superior de Guerra no Rio de Janeiro quando eclodiu o movimento militar que instaurou a República. Assinou, com outros colegas, um compromisso no qual se declarava a seguir o líder republicano Benjamim Constant “até o terreno da resistência armada”.
Muito mais tarde, Hastimphilo diria ao filho Aldmir:
“Eu só conspirei uma vez na vida. Mas por uma coisa muito séria que era a mudança da Monarquia para a República. Mudança de regime, não de homens. Não é papel do Exército [mudar presidentes]”.
Quando da revolução de 1930, Hastimphilo já era general e ocupava um cargo estratégico, o de comandante da 2ª Região Militar de São Paulo. Legalista, amigo de Júlio Prestes (que havia vencido Getúlio Vargas nas eleições), o amado de Clarinda assumiu a Presidência de São Paulo por dois dias, logo após o golpe. Com a derrota da oligarquia cafeeira para as forças modernizantes lideradas por Getúlio Vargas, Hastimphilo de Moura foi transferido para a reserva, a seu pedido. Estava com 65 anos.
Seis anos depois, publicou Da Primeira à Segunda República, seu único livro. O diário de campo da Missão Cruls ficou esquecido por mais de 100 anos até que a família o encontrou e o doou ao Arquivo Público do Distrito Federal.
Hastimphilo de Moura morreu em 25 de junho de 1956, cinco meses depois de Juscelino assumir a Presidência da República com o compromisso de construir a nova capital.
Quatro homens enamorados
Há mais de 10 anos, quatro homens permanecem enamorados de duas pequenas brochuras com páginas manuscritas em português castiço. São os diários de Hastimphilo de Moura que dormem no acervo do Arquivo Público do Distrito Federal. Os apaixonados Elias Manoel da Silva, Wilson Vieira Júnior, Antônio César Caldas Pinheiro e Euler Frank Lacerda Barros são os responsáveis pela leitura paleográfica dos manuscritos – a transcrição atualizada e decifrada, quando necessária, do texto escrito há mais de um século. Os enamorados Euler e Antônio tiveram que abandonar, por força das circunstâncias, as namoradas de papel. Os outros dois continuam o namoro. Finda a paleografia, os dois diários serão editados pelo Arquivo Público em comemoração aos 60 anos de Brasília, ano que vem. Há outro diário de Hastimphilo, esse da segunda expedição ao Planalto Central. São, porém, de conteúdo técnico. Até porque o engenheiro já não sentia saudades. Clarinda veio ficar ao lado dele.