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Cargueiros do Pó: a rota marítima do tráfico de cocaína do Brasil à Europa

Carlos Carone e Mirelle Pinheiro

Reportagem percorreu 2,2 mil km entre Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro para mostrar sofisticadas técnicas usadas por facções criminosas no lucrativo mercado do tráfico de cocaína via rotas marítimas, e revela como as quadrilhas recrutam mergulhadores dispostos a arriscar a vida em troca de pagamentos milionários.

Frio, turvo e revolto pelo vaivém dos navios cargueiros, o mar que banha as zonas portuárias de São Paulo e do Rio de Janeiro se tornou o “El Dorado” do tráfico internacional de cocaína. Rotas aquaviárias que ligam a costa brasileira aos portos europeus e africanos são usadas por grandes organizações criminosas transnacionais para despejar toneladas de pó no mercado internacional.

Em meio às exportações brasileiras que movimentam mais de 350 milhões de toneladas de mercadorias ao ano, o Metrópoles revela, nesta reportagem investigativa, como operam as engrenagens movidas por grupos criminosos que têm como base países no leste, oeste e sudeste europeu. As quadrilhas bancam operações milionárias para que toneladas de cocaína cruzem o Atlântico em segurança.

Rivais ferozes no mundo do crime, as duas maiores facções do país, a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e a carioca Comando Vermelho (CV), foram flagradas pela Polícia Federal em uma parceria inédita, e até surpreendente, viabilizando a logística que promove o envio da droga para fora do Brasil.

O chamado tráfico em rede é compartimentado e explora a expertise de cada um dos grupos criminosos, sempre em nome dos milhões de reais que caem no caixa das facções. Um tipo de profissional é vital para fazer esse mecanismo ousado não parar de girar: o mergulhador. É função dele fazer a chamada “contaminação” das cargas acondicionadas nos porões dos cargueiros de pó. São os mergulhadores que entram em cena no momento mais sensível da complexa operação delituosa. A cocaína que ganha os portos brasileiros é produzida na Bolívia e no Peru. Em caminhões, disfarçada no meio de toda a sorte de produtos, ela atravessa as fronteiras e cruza milhares de quilômetros até chegar às regiões litorâneas.

Após vencer essa etapa terrestre, o PCC e o Comando Vermelho acionam o seleto grupo de mergulhadores altamente qualificados. Para terem mais mobilidade e velocidade em águas profundas, esses especialistas usam um equipamento chamado scooter subaquático. O aparelho permite que se aproximem dos navios mais rapidamente do que a nado. O tempo de operação é uma das variáveis de risco: quanto mais veloz for o serviço, menos risco de serem flagrados e presos.

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O esquema é tão engendrado que o PCC, por exemplo, enviou até mesmo traficantes para serem treinados por guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias (Farc), na Colômbia. O objetivo é fazer com que eles adquiram técnicas de sobrevivência na selva e usem as matas fechadas para esconder os carregamentos de pó antes de serem entregues aos mergulhadores.

No bilionário mercado mundial do tráfico, os mergulhadores passaram a ser recrutados a peso de ouro.

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Crédito: Fábio Vieira

Estima-se que as transações envolvendo o narcotráfico mundial rendam cerca de 900 bilhões de dólares ao ano, o equivalente a 35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, ou 1,5% do PIB mundial. De acordo com as autoridades, parte desse montante é engordado pelo tráfico brasileiro que alimenta o mercado europeu da droga.

Um dos braços econômicos mais fortes do país, a exportação por rotas marítimas movimenta, anualmente, cerca de 200 bilhões de dólares e garante ao Brasil lugar de destaque entre os 25 maiores exportadores mundiais. Os dados são da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Em um jogo de gato e rato, as autoridades travam uma batalha com o narcotráfico a fim de manter as operações legais de exportação livres do transporte clandestino de cocaína.

Parceria inédita entre PCC e CV

Inimigas mortais e responsáveis por ordenar banhos de sangue em guerras travadas pelo controle de presídios país afora, as facções PCC e Comando Vermelho atuam juntas no chamado “tráfico em rede”, segundo investigações conduzidas pela Polícia Federal. A parceria é indireta, mas real.

Atualmente, o esquema que utiliza as rotas brasileiras em direção a outros continentes é minuciosamente planejado por organizações criminosas europeias, como a chamada Máfia dos Balcãs. São grupos fixados na região sudeste da Europa, que engloba países como Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Grécia, Macedônia do Norte, Montenegro e Sérvia.

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Essas organizações europeias contratam um “pool” formado por facções criminosas brasileiras especializadas em cada etapa do processo necessário para embarcar toneladas de cocaína em navios atracados nos portos do Rio de Janeiro e de São Paulo. É aí que entram o PCC e o CV, cada um contribuindo para o esquema com suas principais habilidades.

Compartimentação do crime

As apurações da PF mostram que o processo é compartimentado e cada facção atua em um determinado momento, desde a hora que a droga cruza as fronteiras brasileiras, passando pelo armazenamento, até o embarque final. “Cada grupo age em um nicho específico. É como se cada atribuição fosse terceirizada”, explica o chefe da Delegacia de Repressão às Drogas (DRE) da PF, delegado Bruno Humelino.

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Crédito: Breno Esaki

No caso do PCC, a expertise da facção é controlar as atividades de fronteira, promovendo a entrada dos carregamentos de cocaína no Brasil, quase sempre vindos da Bolívia e do Peru. As conexões com grandes produtores de coca espalhados pela América do Sul credenciam a facção paulista ao posto de maior transportador.

Já o Comando Vermelho se aproveita de características únicas que existem no Rio de Janeiro para ser o “guardião” dos carregamentos de cocaína. “A facção carioca é capaz de dar garantias sobre a segurança da droga, principalmente pelo motivo de existirem comunidades inteiras dominadas pelo CV. O armazenamento é um momento de fragilidade, e ter território totalmente controlado dá uma certa tranquilidade para esses grupos até que consigam embarcar a droga”, explica o agente da DRE, Dimitri C.

Mergulhadores do pó

Peça-chave no esquema criminoso que enxerta grandes quantidades de droga em navios cargueiros, mergulhadores profissionais são contratados a peso de ouro pelo narcotráfico. A habilidade deles é fundamental para acomodar a cocaína na chamada caixa de mar, compartimento utilizado para extrair água do oceano e resfriar os motores e demais sistemas de uma embarcação.

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A PF identificou que os mergulhadores são escolhidos a dedo pelo crime organizado. Geralmente, são homens acostumados a fazer mergulhos de risco e que topam usar o conhecimento em prol do crime, caso sejam muito bem pagos. A reportagem do Metrópoles apurou que os valores para viabilizar a operação costumam ser indexados a cada quilo de pó enxertado nos cascos dos navios.

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Em alguns casos, mergulhadores chegam a abocanhar até R$ 500 mil, pagos em cash e à vista, por apenas duas horas de mergulho. “O tempo é uma das variáveis de risco, portanto, essa ação precisa ser muito rápida. Bastam duas ou três operações dessas para um mergulhador à serviço do crime conseguir se aposentar”, explicou um dos policiais da DRE.

Logística do CV

Não é por acaso que o Comando Vermelho entrou de cabeça no esquema de tráfico internacional explorando as rotas marítimas que partem do Rio de Janeiro. Houve uma preparação da facção para conseguir atender a demanda e faturar alto com a venda de cocaína. Investigações apontam que o traficante Edgard Alves dos Santos, o Doca, é uma das lideranças da organização criminosa no Rio de Janeiro e chefia a comunidade Vila Cruzeiro, na Penha.

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Doca é hierarquicamente superior aos demais integrantes da organização criminosa, de modo que administra os recursos financeiros da facção. Ele participa ativamente de reuniões e autoriza a atuação dos demais envolvidos no esquema. Doca tem contato com fornecedores de cocaína brasileiros e estrangeiros, além de importadores. Investigações apontam que a liderança do criminoso é imprescindível na logística empregada para o transporte de entorpecentes, a remessa e recepção dos carregamentos de pó no destino final. Doca tem 74 mandados de prisão expedidos e permanece foragido.

Hierarquia do crime

Já o traficante Adson Jesuíno Cruz é conhecido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro como integrante de uma organização criminosa especializada em roubo de cargas. Adson recentemente migrou para o narcotráfico transnacional de drogas, visando maior lucratividade em suas atividades. Ele não integra necessariamente o CV, mas atua como se fosse uma empresa que terceiriza serviços para a facção. É o chamado “entreposto da droga”, que compreende o Complexo do Alemão e o Complexo da Penha. As duas comunidades cariocas são de sua responsabilidade. Nelas, Adson armazena os entorpecentes até serem remetidos aos portos. O traficante ainda é um dos principais organizadores da logística de exportação de drogas, seja em relação aos contêineres ou aos mergulhadores.

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Arregimentador

A atuação de Adson consiste em recrutar os “colaboradores” e articular a remuneração de serviços ilícitos, a negociação de valores a receber, e o fornecimento e armazenamento das substâncias entorpecentes (especificamente nas comunidades do Complexo do Alemão e Complexo da Penha) a serem remetidas do Brasil para a Europa.

Outro criminoso, identificado como Adriano Peçanha, também do Comando Vermelho, é o braço operacional de Adson fora da comunidade para a prática de tráfico de entorpecentes. Peçanha é o principal responsável pela logística de exportação de entorpecentes, trabalhando diretamente nas duas frentes de atuação utilizadas pela organização criminosa. Na modalidade Sea chest, Adriano trabalha como agenciador, contratante de mergulhadores e cuida da aquisição de equipamentos de mergulho. Por outro lado, no modal Rip-on, rip-off, Adriano realiza a interlocução com funcionários de empresas ligadas aos portos.

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Tal logística consiste em realizar o “escoamento” da droga, por meio de navios de carga pelos portos do Rio de Janeiro, para o continente Europeu. Com o objetivo de realizar tal empreitada, Adriano recruta funcionários de empresas atuantes em áreas portuárias, cujas atividades têm importância na construção do esquema criminoso. Essas pessoas fornecem informações sobre carga, horários e destinos dos navios que entram e saem dos portos, possibilitando a introdução das drogas nos contêineres e nas caixas submersas dos navios.

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Entreposto na África

As investigações conduzidas pela PF identificaram as principais rotas e características de navios preferidos pelos traficantes para cruzar o Atlântico. Constantemente, embarcações deixam o Brasil rumo à Europa e atracam em portos africanos, como em Maputo, Moçambique.

A parada se tornou uma forma de despistar as autoridades de países que costumavam servir como porta de entrada para a cocaína. Antes, os carregamentos desembarcavam diretamente em zonas portuárias na Antuérpia (Bélgica), em Las Palmas (Espanha) ou em portos de Portugal, Itália, Alemanha e Holanda.

Rota internacional:

A cocaína que chega aos portos brasileiros é distribuída principalmente para a Europa. Mas a Polícia Federal já descobriu que a África também se tornou um destino comum dos traficantes.

A África:

Como os portos europeus estão com uma vigilância cada vez mais forte, os traficantes estão usando a África como ponto de distribuição de drogas. Nigéria e Moçambique entraram na rota internacional do pó.

Ponto de chegada:

Os portos da Espanha e de Portugal são os principais destinos do pó que sai do Brasil. Mas outros países também recebem a droga brasileira, como os Países Baixo e a Bélgica.

Na Europa:

Quando a droga chega a um dos portos europeus, ela é distribuída de maneira terrestre pelo resto dos países do continente.

Pelas estradas:

A cocaína produzida no Peru e na Bolívia chega aos portos brasileiros por diferentes rotas terrestres.

A outra Rota:

Enquanto Peru e Colômbia escoam cocaína para o Brasil, a droga produzida na Colômbia tem como principal mercado os Estados Unidos.

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Com facilidade para transitar por vias terrestres já em solo europeu, a droga é distribuída com rapidez pelos países. “A Europa funciona como uma espécie de sistema nervoso, toda interligada por estradas que facilitam a pulverização dessa droga, principalmente pela pequena distância entre alguns países”, explicou um dos investigadores da DRE.

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Crédito: Fábio Vieira

Cães e drones

Com faro aguçado quando o assunto é sinalizar a presença de carregamentos de drogas escondidos em contêineres, cães farejadores usados pela Polícia Federal costumam participar das operações deflagradas pela DRE, principalmente na zona portuária do Rio de Janeiro. Treinados diariamente, os animais conseguem farejar a presença de entorpecentes mesmo quando os contêineres ainda estão completamente lacrados. “Abrimos uma pequena fresta entre as borrachas de vedação. Isso é suficiente para o cachorro sinalizar se há algo errado”, explicou o agente da PF Jorge Tufik.

A Receita Federal também conta com um canil a serviço das fiscalizações aduaneiras feitas diariamente pelo braço armado do órgão federal. Cada vez mais ardilosos, os traficantes chegam a esconder cocaína dentro de mangas, em meio a grãos de café ou, até mesmo, dentro de barrigas de animais.

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Enquanto o combate por terra é bem executado pelas equipes com cães, pelo ar, drones modernos equipados com câmeras térmicas são operados por policiais federais e auditores da Receita. Os equipamentos ajudam a monitorar as operações e a identificar pequenas embarcações suspeitas que se aproximam dos navios.

Cocaína em sabão em pó

Manhã de segunda-feira, 3 de junho, no Porto do Rio de Janeiro. Paramentados com fuzis e a bordo de uma lancha potente, policiais federais do Núcleo Especial de Polícia Marítima (Nepom) patrulham uma área que tem cerca de 6.740 metros de cais contínuo, dividido em três trechos: Cais da Gamboa, Cais de São Cristóvão e Cais do Caju.

A região se tornou ponto estratégico para facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho. O alvo é apenas um: furar o bloqueio das autoridades e conseguir embarcar a maior quantidade possível de cocaína em navios. Foi ali, em águas cariocas, que ocorreu a maior apreensão da história do estado fluminense e a segunda mais vultosa do país.

Artesanalmente, criminosos acondicionaram quase 5 toneladas de cocaína dentro de caixas de sabão em pó. A carga tinha como destino o porto de Maputo, em Moçambique. Se tivesse chegado à sua última parada, facilmente a droga teria seu valor multiplicado e valeria, pelo menos, R$ 1 bilhão.

A apreensão foi feita em outubro de 2021 por policiais federais da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) e auditores da Divisão de Repressão ao Contrabando e Descaminho (Direp), da Receita Federal no Rio.

Escaneamento a distância

De acordo com o delegado da Receita Federal no Porto do Rio, auditor-fiscal Pedro Antônio Pereira Thiago, o órgão conta com um sistema sofisticado que se vale de parâmetros tecnológicos para uma gestão de risco em cada operação de exportação.

“Quando há algum indício de provável tentativa de tráfico, a mercadoria é submetida a uma conferência física criteriosa, que possibilita identificar se houve contaminação por droga”, explica. “A Receita tem lanchas blindadas e uma equipe náutica que conduz e faz a vistoria perto dessas embarcações cujos destinos são de interesse do tráfico de drogas”, disse.

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Crédito: Policia Federal

Os auditores usam scanners para tirar uma espécie de raio-X que identifique qualquer tipo de substância suspeita em meio às cargas alocadas dentro dos contêineres. “Também contamos com equipamentos de monitoramento a distância que permitem identificar qualquer embarcação suspeita que se aproxime dos navios com o intuito de colocar a droga na caixa de mar”, contou o auditor.

As águas escuras que margeiam os municípios paulistas de Santos e Guarujá, antes dominadas por piratas que, até 2007, ardilosamente, invadiam navios atracados no Porto de Santos para furtar mercadorias, viraram cenário de uma trama de ação envolvendo perseguição, tiroteio e morte.

O local tornou-se, ainda, esconderijo de mergulhadores habilidosos a serviço da maior facção criminosa do Brasil, o PCC. É embaixo das ondas agitadas, a 10 metros de profundidade, que profissionais treinados arriscam a vida para embarcar, ilegalmente, massivas quantidades de cocaína em navios com destino à Europa, Ásia e África.

As técnicas, cada vez mais audaciosas, desafiam autoridades que tomam conta do maior porto da América Latina. Diferentemente do tráfico feito nos aeroportos, quando passageiros são aliciados para carregar poucos quilos de droga junto ao corpo ou em bagagens despachadas, o crime executado nos navios tem lucro exorbitante, e quadrilhas chegam a enviar toneladas do entorpecente em contêineres que são escondidos até mesmo nos cascos dos navios.

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De acordo com fontes da Polícia Federal, as organizações são movidas por altas perspectivas de rendimento. Na Bélgica, o preço do quilo da droga, em 2016, era estimado em 28 mil euros, cerca de R$ 150 mil na cotação atual. Neste ano, o valor saltou para 35 mil euros, ou R$ 187 mil.

Na Inglaterra, o quilo do entorpecente é repassado a traficantes locais por 50 mil euros, ou R$ 267 mil. Na China, a valorização é três vezes maior e chega aos 150 mil dólares, cerca de R$ 738 mil. Para Austrália e Nova Zelândia, a quantia sobe ainda mais e alcança 250 mil dólares o quilo, ou R$ 1,2 milhão. A supervalorização se dá pela complexidade da logística em cada região, apontam os investigadores.

Treinamento com as Farc

O mercado milionário do crime que começa na terra e atravessa os mares exige investimento em armas, tecnologia, informações privilegiadas, capital financeiro para corromper funcionários dos portos e tripulação, além de enviar traficantes para serem treinados por guerrilheiros das Farc, na Colômbia.

Um deles é André Luiz dos Santos, de 47 anos, o Keko. O criminoso aprendeu a sobreviver na área de mangue próximo ao Porto de Santos e é responsável por armazenar, na vegetação, a cocaína exportada para a Europa. Ele também é encarregado de levar os mergulhadores, durante a madrugada, até os navios. Conforme a Polícia Civil de São Paulo, o criminoso atua para o PCC e é extremamente preparado.

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Investigações comprovaram que ele chegou a montar uma academia improvisada no mangue e vive na companhia de um cão da raça pit-bull. Destemido, o criminoso grava vídeos desafiando a polícia e deixa armadilhas mortais pelo caminho. Em uma tentativa de abordagem, Keko quase derrubou um helicóptero da Polícia Militar com tiros de fuzil, em agosto de 2020.

O Ministério Público de SP define o traficante como “indivíduo de alta periculosidade”. Ele é foragido do sistema prisional, com cerca de 100 anos de penas a cumprir, e também é investigado por outras duas tentativas de homicídio contra policiais na Baixada Santista.

“Família Buscapó”

Outro personagem importante que atua no tráfico em Santos é Karine de Oliveira Campos, 44 anos, procurada pela Polícia Federal há 10 anos. Conhecida como Rainha do Pó, a mulher é suspeita de pagar R$ 3,5 milhões a um juiz em troca da soltura de um traficante.

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Investigações confirmaram que ela e o marido, Marcelo Mendes Ferreira, 40, lideram uma organização criminosa que exportou aproximadamente 6 toneladas de cocaína para países europeus. O lucro com a transação foi estimado em R$ 1 bilhão. O dinheiro era lavado em empresas fictícias, casas e fazendas luxuosas, além de carros e joias. A quadrilha atua em diversos portos do Brasil escondendo a droga em contêineres.

Ainda segundo apurações da PF, o casal tem ligação com o ex-major da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul Sérgio Roberto de Carvalho, conhecido na Europa como o “Escobar brasileiro”. O ex-militar é apontado como um dos principais traficantes de drogas do mundo e foi preso na Hungria em 21 de junho de 2022. Karine e Marcelo seguem foragidos e integram a lista de procurados da Interpol.

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Sem rastros

Com décadas de atuação e aperfeiçoamento, o crime organizado no Porto de Santos deixa cada vez menos rastros. Os policiais precisam montar um verdadeiro quebra-cabeças para desvendar novas técnicas e chegar aos autores. Contudo, entre as diversas maneiras de ocultação da droga nas embarcações, a mais usada é denominada de Rip-on, quando o criminoso seleciona um contêiner de carga lícita, desvia e coloca a droga. O entorpecente é acomodado em mochilas ou misturado junto da mercadoria.

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Crédito: Fábio Vieira

Em 2014, a PF notou um crescimento da prática e deflagrou duas operações históricas, a Hulk e a Oversea. À época, os investigadores identificaram dezenas de células criminosas comandadas pelo PCC. Os grupos se articularam com traficantes da Bolívia e da Colômbia, que forneciam cocaína para exportação. A ação resultou na apreensão de 3,7 toneladas da droga e prendeu 69 traficantes.

A investida policial acabou revelando o modus operandi de um dos maiores traficantes do país, o André do Rap. Ligado ao PCC, o narcotraficante tem patrimônio avaliado em R$ 500 milhões, segundo o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil de São Paulo (PCSP). As apurações mostraram que André do Rap já coordenava o tráfico utilizando a técnica de enviar drogas em contêineres.

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Após as operações, contudo, o Rip-on continuou se expandindo. Se antes uma apreensão de 200 kg era considerada grande, com o passar dos anos, os policiais passaram a localizar toneladas de cocaína nos mais diversos compartimentos dos navios cargueiros. Segundo agentes ouvidos pela reportagem, em 2018, enviar 200 kg de cocaína em uma embarcação de grande porte passou a ser considerado um teste para algumas quadrilhas. Era apenas para “testar o canal”, ou seja, avaliar se a rota era “segura”.

O sucesso da operação coordenada pelo crime organizado depende de informações privilegiadas obtidas com pessoas que têm conhecimento em áreas de porto, funcionários, ex-funcionários e prestadores de serviço que acessam rotas e cargas de navios, assim como as datas que chegam ou que saem. As embarcações que ficam ancoradas na região de fundeio – espaço destinado aos navios que aguardam autorização para atracar no porto – também são alvo fácil para os traficantes, uma vez que chegam a passar meses paradas no mesmo local.

A Polícia Federal aponta que a principal função das quadrilhas do Brasil é a logística. Investigadores detalharam à reportagem que quem determina como vai ser a operação é o destinatário da droga, na Europa, África ou Ásia. Eles recebem as opções de rotas enviadas pelas facções e informam como conseguem fazer a retirada.

Sea chest:

Sua colocação e retirada precisam ser feitas por mergulhadores, o que dificulta ainda mais para as equipes que atuam no combate a este tipo de ilícito.

Apenas em janeiro deste ano, autoridades localizaram 293 kg de drogas escondidas nos cascos de navios atracados no Porto de Santos. Em 2022, foram registradas cinco ocorrências de localização de drogas ocultas no Sea chest, totalizando 611 kg da droga. Em 2011, o número de apreensões relacionadas a essa modalidade foi de 313 kg.

* Sea chest é um compartimento situado abaixo do nível da água. Sua função é captar água para resfriamento das máquinas da embarcação.

Rip-off modality:

A droga é inserida em uma carga regular sem o conhecimento dos tripulantes do navio. O uso dessa técnica dificulta a gestão de risco e requer servidores especializados na análise de imagens e com conhecimento no controle da movimentação de contêineres de exportação.

Içamento:

Embarcações se aproximam de navios atracados no porto ou que estão em área de fundeio aguardando a atracação e içam bolsas com drogas para dentro do navio. Essa modalidade conta, na maioria das vezes, com auxílio de tripulantes ou de pessoas que estejam trabalhando no cargueiro.

Barrigada:

Estivadores ou outros funcionários prendem tabletes de cocaína junto ao corpo e escondem a droga na embarcação.

Exportação fictícia:

Uma empresa de fachada é criada para fazer a exportação de produtos diversos. No entanto, o principal objetivo é esconder substâncias ilícitas e fazê-las chegar, fora do alcance dos olhos das forças policiais, a outros continentes.






A delegada da Polícia Federal Fabiana Salgado Lopes explica que a partir de cada apreensão de drogas uma investigação é iniciada. A PF trabalha para desvendar a autoria dos crimes e descapitalizar as facções que, geralmente, lavam o dinheiro do tráfico por meio de empresas e bens de luxo.

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Crédito: Fábio Vieira

“Além de atuar nas investigações, temos o Núcleo de Polícia Marítima (Nepom), que atua no porto fazendo um trabalho preventivo de fiscalização e patrulhas”, explicou. “Devido a essa forte atuação do Estado, os traficantes passaram a arriscar a própria vida em um mergulho que pode ser mortal. Nos últimos anos, notamos um aumento no número de apreensões nas caixas de mar dos navios, pois é uma prática que deixa poucos vestigos”, acrescentou. “Porém, para fazer uma ação como essa, é necessário ter acesso à planta do navio e, principalmente, se certificar de que o operador de máquinas não vai ligar o aspirador, pois, caso isso aconteça, o mergulhador é literalmente sugado pelo equipamento”, completou.

A delegada conta, ainda, que as quadrilhas recrutam profissionais de mergulho no Brasil e no exterior. “Um caminhoneiro que desvia uma carga para fazer a contaminação pode ganhar até R$ 50 mil. Já um mergulhador, dependendo da missão, pode ganhar, por baixo, R$ 100 mil”, finalizou.

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Crédito: Fábio Vieira

Agulha no palheiro

O meio de transporte move o país, e o crime organizado pega carona. De acordo com a Receita Federal do Brasil, mais de 80% de tudo que entra e sai do país é por meio do modal marítimo. Só neste ano, a Polícia Federal apreendeu 10,5 toneladas de cocaína nos 16 portos brasileiros. Do total, 6 toneladas foram apenas em Santos (SP).

Com uma extensão de cais de 16 km e área útil total de 7,8 milhões de metros quadrados, o Porto de Santos é o principal porto brasileiro em valores de carga movimentada, responsável historicamente por, no mínimo, 25% do comércio exterior brasileiro. Devido à grande concentração de contêineres e funcionários que atuam nos terminais, combater o tráfico de drogas na região é como procurar agulha no palheiro.

“O comércio exterior vem crescendo a cada ano. O Porto de Santos sempre quebra recordes em movimentação de cargas. Estamos com giro de mais de 10 mil contêineres por dia, tanto na importação quanto na exportação. Ou seja, temos 10 mil contêineres novos circulando, fora os que ficam nos navios. É um desafio dentro desse fluxo enorme de cargas escolher as que apresentam riscos e selecionar”, explicou Richard Fernando Amoedo Neubarth, delegado da Alfândega da Receita Federal do Brasil do Porto de Santos.

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Crédito: Fábio Vieira

Visando coibir investidas de facções, a Receita Federal passou a empregar meios tecnológicos avançados para monitorar alvos que se encontram a uma distância maior do que 10 km, sem que eles percebam. A repressão é feita em diversas frentes.

“Temos acesso a mais de 5 mil câmeras, 16 scanners de raio-X, aos sistemas de informação de todos os 80 terminais, além de informações da própria Receita e de órgãos de segurança. Atuamos no início, analisando se a empresa tem condições de operar no porto e fiscalizamos, periodicamente, se ela cumpre as normas, também verificamos as cargas que chegam e saem do país”, explicou o auditor-fiscal Ivan da Silva Brasílico, chefe da Divisão de Vigilância e Repressão ao Contrabando e Descaminho (Direp) da Receita Federal.

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Em posse desse mar de informações, os auditores selecionam cargas potencialmente contaminadas com drogas e fazem uma varredura que conta, inclusive, com a ajuda de cães farejadores. Em 5 de julho deste ano, por exemplo, os auditores localizaram bolsas esportivas colocadas em meio a uma carga de bobinas de papel cartonado. Dentro das bolsas, foram localizados diversos tabletes de cocaína, totalizando 131 kg. O contêiner iria para a Europa, mas faria baldeação na África do Sul.

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Câmeras térmicas também auxiliam na vigilância do porto, principalmente à noite, período de maior ação de traficantes. Todas as imagens são gravadas e acessadas em tempo real pelos auditores.

Bobinas de papel

Em 23 de junho, a Receita Federal encontrou 561 kg de cocaína em um contêiner no Porto de Santos. A droga estava cuidadosamente escondida em um carregamento de bobinas de papel.

carregamento de lâminas de aço

Em 17 de maio, a Receita Federal apreendeu 1.100 kg de cocaína no Porto de Santos. A droga estava escondida em um carregamento de 24 toneladas de lâminas de aço.

dentro de cilindros de gás

Em 16 de fevereiro, a Receita Federal encontrou 565,5kg de cocaína dentro de cilindros de gás que deveriam estar vazios. A carga saíria do Porto de Santo com destino ao Porto da Antuérpia, na Bélgica.

refrigerados contendo carne de frango congelada

A Receita Federal encontrou 68 kg de cocaína em três contêineres refrigerados. As caixas continham carne de frango congelada e tinham como destino a África do Sul.

cocaína escondida no sea chest do navio

A Receita Federal encontrou 293 kg de cocaína no sea chest de um navio — compartimento situado abaixo do nível da água utilizado para captação de água para resfriamento das máquinas da embarcação. A apreensão da carga só foi possível com o auxílio de mergulhadores.

pelotas de minério de ferro

A Receita Federal encontrou um carregamento de drogas escondidas em pelotas de minério de ferro. A apreensão de 376,5 kg de cocaína sairia do Porto de Santos com destino à Europa.

CEO
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DIRETORA-EXECUTIVA
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EDITOR-CHEFE
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COORDENAÇÃO
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EDIÇÃO
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REPORTAGEM
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REVISÃO
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EDICÃO DE ARTE
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EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
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FOTOGRAFIA
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COORDENAÇÃO DE VÍDEO
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CAPTAÇÃO DE VÍDEO
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VÍDEO
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Gabriel Foster
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