A frota que hoje circula pelas vias do Distrito Federal é de 1,7 milhão de veículos. Essa quantidade de máquinas não polui apenas o ar com os gases emitidos pela queima de combustível. Outro inimigo do meio ambiente tem chegado ao solo e às reservas hídricas: o óleo lubrificante utilizado nos motores de automóveis, ônibus e motocicletas.
Embora o Distrito Federal tenha implementado um modelo de coleta e descarte do produto comercializado em postos de combustíveis, oficinas mecânicas e supermercados, o sistema não é 100% eficiente.
O último levantamento feito pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) aponta que, em 2015, foram comercializados 12.341m³ de óleo lubrificante no DF, o equivalente a 12,34 milhões de litros. A maior parte desse volume — 9,59 milhões de litros, 80% do total — foi descartada corretamente. Mas os 20% restantes não chegaram ao rerrefino, forma adequada de reciclagem.
Ninguém sabe dizer, com precisão, onde foram parar 2,74 milhões de litros usados na capital da República no ano analisado pela ANP. O que se sabe é que o material, altamente poluente, acabou espalhado no meio ambiente.
Do lava a jato ao Lago Paranoá
Especialistas no setor e órgãos de controle identificaram a origem do problema: oficinas mecânicas e estabelecimentos para lavagem de veículos. No primeiro caso, há locais que não promovem o descarte corretamente. No segundo, os lava a jato acabam liberando água contaminada com óleo e resquícios de materiais metálicos no sistema de drenagem pluvial.
Pelo encanamento subterrâneo, a poluição chega a um dos principais cartões-postais de Brasília: o Lago Paranoá. A situação foi confirmada em março deste ano pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Em perícia feita na água do reservatório, foram identificados vestígios de óleo lubrificante e outros poluentes, como resíduos decorrentes da limpeza de carros.
Na época, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (Prodema) recomendou ao Instituto Brasília Ambiental (Ibram) a elaboração de uma norma para regulamentar a atividade comercial de lavagem de automóveis. Segundo o promotor de Justiça Roberto Carlos Batista, é preciso implementar mudanças com urgência, principalmente em tempos de escassez hídrica no Distrito Federal.
Os efluentes gerados pela lavagem de automóveis contaminam os reservatórios hídricos. Além disso, há um grande desperdício de água no processo de limpeza”
Roberto Carlos Batista, promotor de Justiça
Ao Metrópoles, o Ibram disse ter acatado o pedido do Ministério Público. Segundo o instituto, um grupo de servidores se dedica ao tema atualmente. “Os trabalhos de desenvolvimento da minuta de instrução normativa para a regulamentação da atividade comercial de lavagem de veículos estão em fase final”, informou o órgão.
Fiscalização insuficiente
Entretanto, dificilmente a atualização de normas para o funcionamento dos lava a jato será suficiente para acabar com os danos ambientais. No Distrito Federal, faltam fiscalização e informação ao consumidor sobre o descarte do óleo usado nos carros e de suas embalagens.
No caso dos recipientes, o problema é que eles não podem ser misturados ao lixo comum, pois sempre contêm resquícios do óleo lubrificante. Ainda assim, são vendidos não só em oficinas, mas em supermercados. Ou seja, qualquer cliente pode levar o produto para casa sem saber a forma correta de se desfazer da embalagem. O plástico do vasilhame pode ser reciclado, contudo, sua coleta e limpeza precisam ser feitas por empresas especializadas.
Nessa realidade, a fiscalização também é complexa. Segundo a Resolução nº 362/2005 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), a tarefa cabe aos órgãos responsáveis pela gestão ambiental em cada unidade da Federação. Na capital, essa atribuição está a cargo da Agência de Fiscalização do DF (Agefis).
Porém, há um entrave de ordem estrutural. Responsável pela fiscalização de atividades urbanas variadas, a Agefis não tem efetivo suficiente para atender a demanda do Distrito Federal. Segundo o balanço de pessoal disponibilizado no site do órgão, a quantidade de servidores efetivos é de 749, dos quais cerca de 550 dedicam-se à atividade-fim.
Como o foco dos trabalhos recentes está voltado para a desocupação de terras públicas tomadas por invasores, outras áreas ficam descobertas. “Não temos concurso para as especialidades ‘atividades econômicas’ e ‘obras’ desde a década de 1990”, ressalta a presidente da agência, Bruna Pinheiro.
Mesmo com a falta de pessoal, a Agefis faz operações esporádicas em estabelecimentos comerciais para verificar o cumprimento da legislação. Segundo a agência, quando há irregularidades, os responsáveis são autuados e têm que pagar multa. A penalidade varia entre R$ 74 e R$ 185 mil, dependendo do local, da quantidade e do tipo de resíduo.
Questionada sobre o número de sanções aplicadas nos últimos anos, a agência disse não ter esse levantamento disponível. Contudo, anunciou a elaboração, nos próximos dias, de um cronograma de fiscalização voltado especificamente para o descarte de óleo lubrificante no DF. Os resultados serão divulgados à medida que as vistorias forem realizadas.
Flagrantes pelo DF
Quando as ações de fiscalização se voltarem ao problema do óleo, não faltará trabalho aos servidores. Ao longo da última semana, o Metrópoles visitou mecânicas no Setor de Oficinas Sul e no Núcleo Bandeirante e verificou que, mesmo a olho nu, é fácil identificar substâncias oleosas escorrendo em ralos nas lojas e pelas bocas de lobo na rua. Muitos desses estabelecimentos lavam os carros antes de devolvê-los aos clientes, e a água sai com manchas prateadas.
O produto que se espalha pela rede pluvial tem nome e sigla: Óleo Lubrificante Usado ou Contaminado (Oluc) — chamado popularmente de óleo queimado. O composto é altamente nocivo e leva dezenas de anos para se dissipar na natureza. Ele deixa o solo infértil, mata a vegetação e, quando atinge um lençol freático, transforma a água em veneno. Se jogado na rede de esgoto, pode comprometer o funcionamento das estações de tratamento.
A professora do Departamento de Química da Universidade de Brasília (UnB) Grace Ghesti ressalta que um litro de óleo é suficiente para contaminar 100 litros de água.
Existe uma característica química no óleo que não deixa ele se misturar à água. É criada uma camada por cima do líquido e os micro-organismos que vivem ali acabam morrendo. O gás carbônico não sai e isso interfere na alimentação desses seres”
Grace Ghesti, professora de química da UnB
A especialista alerta ainda que, em contato com pessoas e animais, o Oluc gruda na pele e pode intoxicar. “Além disso, ele esteriliza o solo.”
Óleo queimado, ar poluído
O Oluc não prejudica apenas solo e água. No Brasil, uma prática também contamina o ar. Comerciantes aproveitam o óleo usado como um tipo de combustível para alimentar aquecedores.
Segundo o Sindicato Nacional da Indústria do Rerrefino de Óleos Minerais (Sindirerrefino), representantes do setor já receberam denúncias sobre o reaproveitamento desse material.
O reuso é proibido por lei, uma vez que o resultado da combustão é altamente prejudicial à saúde. A fumaça se espalha por um raio de até 2km, e a fuligem é tóxica. O descarte na natureza é crime.
As leis e o conceito da logística reversa
A questão ambiental sobre a destinação do Oluc é tão complexa que uma série de normas internacionais foi editada para orientar o tratamento adequado do produto. As regras incluem o conceito da logística reversa, prevista na legislação brasileira. Nesse caso, a responsabilidade pelo descarte do óleo é passada aos fabricantes e importadores, não ao consumidor final.
No Brasil, as normas que regem o tema são a Lei nº 12.305/2010 e a Resolução nº 362/2005, em âmbito federal; e a Lei Distrital nº 5.418/2014, no caso do DF. A ideia é obrigar o Oluc a passar pelo rerrefino. Com o procedimento, até 80% do óleo pode ser reaproveitado. Dessa forma, ele servirá novamente como lubrificante de motores.
O problema central da logística reversa é o consumidor final — sejam os motoristas que compram óleo no supermercado ou os responsáveis por oficinas mecânicas e lavas a jato. Se eles não se preocuparem com o descarte correto, não há como fabricantes e importadores recolherem 100% do produto.
Segundo a legislação, a coleta precisa ser realizada por meio de caminhões equipados com tanques de aço inox e capacidade para transportar entre 30 mil e 40 mil litros. Os veículos têm bombas de sucção e uma mangueira acopladas. Esses equipamentos retiram o óleo armazenado em locais como oficinas mecânicas e o leva para os chamados centros de coleta. Dessas unidades, o Oluc é transportado para as indústrias de rerrefino.
Toneladas de plástico
O Brasil possui 22 centros de coleta distribuídos em 14 estados. O mais próximo do Distrito Federal fica em Aparecida de Goiânia (GO), a cerca de 220km da capital federal. É para lá que vai o óleo usado pelos brasilienses. De Goiás, o material é levado para a cidade de Lençóis Paulista (SP), onde fica uma das 15 indústrias nacionais destinadas ao rerrefino de Oluc.
Segundo a Lwart Lubrificantes — uma das empresas que têm tanto o licenciamento para coleta quanto centro próprio para recebimento do Oluc —, a unidade de Aparecida de Goiânia atende os estados de Goiás, Tocantins, parte de Minas Gerais e da Bahia, além do Distrito Federal.
A companhia informou também que possui quatro veículos no DF trabalhando constantemente. Outros três passam semanalmente pela capital e atendem a demanda em casos emergenciais.
No caso de embalagens usadas, o único ponto de coleta do DF fica em Ceilândia. Mantido pelo Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom), o Programa Jogue Limpo recolhe vasilhames em postos de combustíveis e concessionárias e recebe o descarte de qualquer pessoa ou oficina.
Nesses últimos dois casos, é preciso levar as embalagens até o ponto de coleta da iniciativa, no Setor P Sul. Responsáveis por mecânicas em Sobradinho, por exemplo, situada no outro extremo do DF, têm de se deslocar até Ceilândia caso queiram tratar o lixo de maneira adequada.
Mesmo com os gargalos, a importância do projeto pode ser aferida na balança ecológica. No primeiro semestre de 2017, foram recolhidos 660 mil recipientes de óleo lubrificante, num total de 36 mil toneladas de plástico.
Preocupação no DF
A coordenadora de Saneamento Ambiental da Secretaria de Meio Ambiente, Mirtes Boralli, explica que o Distrito Federal está bem inserido na política de logística reversa. Segundo a gestora, toda a Região Centro-Oeste encontra-se com os dados de reciclagem do produto dentro da meta. Os indicadores para o rerrefino do lubrificante são periodicamente estipulados por um grupo de trabalho formado entre servidores dos ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia.
A meta de 2016 era reciclar 36% do óleo vendido. Segundo relatório do Sindicato Nacional da Indústria do Rerrefino de Óleos Minerais (Sindirrefino), o Centro-Oeste atingiu o índice de 37%. Boa parte desse percentual pode ser creditada ao DF. “No Distrito Federal, 80% do óleo usado vai para o rerrefino. Ele é comprado pelas empresas de coleta, o que aumenta o interesse dos donos de oficina no retorno desse material”, diz Mirtes Boralli.
O papel do consumidor
No desafio que envolve indústria, comércio e Estado, um personagem tem papel crucial na luta contra a degradação do meio ambiente: o cidadão. Tanto o setor produtivo quanto os órgãos de controle concordam que a sociedade civil deve atuar na questão, especialmente por meio de denúncias.
Uma das recomendações é que o consumidor fique atento quando realizar a troca de óleo em veículos particulares. É possível verificar se o produto drenado está sendo coletado em recipientes adequados para o descarte e questionar como é feito o procedimento.
É comum as empresas que adotam boas práticas terem certificação de sustentabilidade. Esses selos indicam quem tem preocupação ambiental. O consumidor precisa ficar atento. Sem dúvida, a informação é a maior aliada da sociedade”
Moacir Arruda, presidente do Instituto Panamericano do Ambiente e Sustentabilidade e ex-presidente do Ibram
Em caso de irregularidades, a Agência de Fiscalização do DF pede que as pessoas notifiquem o órgão. A Agefis sugere o registro de imagens ou vídeos, preferencialmente com o número de placa do veículo ou telefone da empresa, para auxiliar na identificação dos responsáveis.
As denúncias podem ser feitas pelo telefone 162, no site da Ouvidoria Geral do GDF ou por e-mail, no endereço ouvidoria@agefis.df.gov.br. O sigilo é garantido.