Era quarta-feira, 12 de junho. O casal Francisco de Assis Pereira da Silva e Marcelo Soares Brito tinha planos para a noite do Dia dos Namorados. Iam buscar o computador deixado na antiga residência, onde hoje as irmãs de criação de Marcelo moram. Depois seguiriam para o apartamento em Santa Maria, conquista recente que os tirou do aluguel. Os planos incluíam jantar romântico e troca de presentes. Marcelo ganharia um kit para cuidados com a barba. Francisco, um perfume, pois sempre fez questão de andar cheiroso.
Demoraram para se despedir dos parentes, já no pilotis do Bloco G da Quadra 1405 do Cruzeiro Novo. O amor sólido e tranquilo não tinha urgência. Entre conversas, risos e abraços, os dois ensaiavam a volta à casa, sem pressa. Havia sete anos que comemoravam juntos o Dia dos Namorados – cinco deles vivendo sob o mesmo teto.
No pilotis do prédio, enquanto faziam planos para o fim de semana com os sobrinhos, viram entrar o síndico e sua mulher. O senhor, militar da reserva da Aeronáutica, sempre amável, estranhamente esbravejava contra a companheira, uma senhora de quase 60 anos, cabelos pretos, óculos de grau e, em geral, calada. Chegou a bater o portão com raiva e acabou com o estado de alegria em que a família se encontrava. Eles observaram os vizinhos subirem a escada. O homem deixou Dona Francisca, a esposa, no apartamento e voltou armado. Nervoso e armado.
Quem costumava tratar com o síndico era Marcelo, que mantinha o condomínio das irmãs em seu nome. O casal estranhou quando Seu Queiroz dirigiu-se a Francisco, cujo contato com o militar resumia-se a alguns poucos telefonemas para solicitar serviço de Uber, onde trabalhava como motorista. Dona Francisca era artesã e expunha suas peças de crochê em feiras ao redor da cidade. Algumas vezes em que o marido não pôde levá-la, o vizinho fez o translado.
O militar xingou o motorista e o fez subir até o terceiro andar sob a mira da arma. Marcelo, espantado com a atitude do homem até então cordial, foi junto. Empunhando o revólver enquanto falava, o síndico ordenou que os três se sentassem no sofá da sala de sua casa.
Nos sete ou oito minutos seguintes, foi um show de horrores. Um Seu Queiroz enfurecido acusava a mulher e Francisco de terem um caso. A hipótese absurda e a sensação da morte iminente calaram o motorista. Ele pouco tentou se defender, limitando-se a repetir: “Não há o que confessar. Não vou assumir algo que nunca fiz”, falava com a voz baixa, quase resignada.
Seu Queiroz chegou a dizer que já estava sendo chamado de “chifrudo”. Diante da acusação, Francisca se manifestou, chocada: “Misericórdia, o sangue de Jesus tem poder”. Marcelo não se cansava de pedir calma.
A mulher balançava o pé pequeno encaixado em uma sandália rosa de tiras. Estava apreensiva, mas mostrava a tranquilidade de quem já conhecia o descontrole do marido. Talvez ela pensasse que, mais uma vez, o estrago ficaria marcado apenas em sua memória e sua pele.
Ao longo dos 32 anos de casada, ela foi condenada à sentença de viver subjugada a Juenil Queiroz, controlador e autoritário. Mas certamente não poderia imaginar que, daquela situação completamente inesperada envolvendo duas pessoas praticamente desconhecidas, sairia o pior dos desfechos.
Apesar de continuar obsessivamente com a acusação infundada, Juenil Queiroz não parecia estar totalmente absorvido pela raiva. Conversava em um tom bastante equilibrado e nenhum de seus movimentos indicava o fim que ocorreu minutos depois. Talvez todos naquela sala acreditassem em um lampejo de lucidez, qualquer coisa que tirasse de Seu Queiroz a ideia fixa à qual ele se agarrava como agarrado estava ao revólver calibre .38.
O enredo foi se desdobrando e Francisco percebeu que a situação acabaria em tragédia. Pediu a Marcelo: “Avisa meus pais qualquer coisa e diga que eu amo eles”. E começou a rezar Ave Maria em voz baixa.
O triste fim de Francisco e Francisca
Marcelo ouve, então, o disparo que dá fim à vida de Francisco. Não consegue olhar para a cena, mas, meses depois, ainda se recorda do barulho do sangue jorrando no chão. Desesperado, busca a porta do apartamento para se salvar. Escuta mais tiros. Dona Francisca grita.
Com a voz calma, Juenil Queiroz diz a um Marcelo completamente desesperado: “É assim que a gente resolve. Pode chamar a polícia agora. Acabei com a minha vida, mas terminei também com a de quem acabou com ela”.
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Marcelo sabia que não adiantaria tentar mais nada pelas vidas tiradas ali, naquela sala. A próxima vítima seria ele e por isso rumou em direção à porta do apartamento. Girou a chave e correu escada abaixo. Depois, saiu do prédio e escondeu-se em um ponto de táxi até a chegada de um amigo.
Quando Seu Queiroz desceu os três lances de escada, a viatura já estava lá embaixo. As irmãs de Marcelo, ao verem o síndico armado minutos antes da tragédia, chamaram a polícia e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). O motorista de Uber chegou a ser levado pela ambulância, mas não resistiu ao tiro na cabeça. Dona Francisca morreu na sala da casa que dividia com o homem que jurou amá-la e respeitá-la.
A sequência de tragédias acontecidas no Apartamento 305 do Bloco G foi registrada pelo celular de Marcelo, que conseguiu deixar o aparelho ligado sem Juenil Queiroz perceber. A câmera não estava voltada para o assassino, mas ainda assim capta algumas imagens e o som de toda a cena.
Por algumas horas depois do crime, o Bloco G da Quadra 1405 do Cruzeiro Novo ficou colorido pelas luzes de várias viaturas. A cena, conta um, parecia de filme. O encontro de camburões, ambulâncias e carros de polícia atraiu olhares dos curiosos. A notícia que correu o bairro naquela noite transformou o Dia dos Namorados de muita gente em enredo de terror.
Quatro meses depois, a vida ainda não voltou ao normal no prédio. Atualmente, além do apartamento onde viviam Juenil Bonfim de Queiroz e Francisca Naíde Queiroz, outros quatro imóveis estão à venda.
Família blindada
Uma das maiores dificuldades neste caso foi conseguir informações sobre a história prévia do casal. Não se sabe praticamente nada dos dois filhos de Francisca Naíde e Juenil Queiroz. Eles buscam o máximo de discrição e reclusão. Amigos e familiares respeitam a decisão e não querem falar. As poucas peças do quebra-cabeça que consegui montar me foram fornecidas sob a condição de anonimato.
O filho mora em Brasília e tratou de cuidar da limpeza do apartamento. Já foi visto com um corretor no prédio, ninguém sabe se para alugar ou vender o imóvel. A filha mora em Natal e abrigou a mãe por um mês no começo do ano, quando o casamento dos pais parecia estar por um fio. Nessa época, dois ou três oficiais de Justiça estiveram à procura de Queiroz. Francisca denunciou as agressões do marido e uma medida protetiva contra ele chegou a ser expedida na ocasião.
Depois de cerca de um mês junto à filha, Naíde voltou a viver com o marido em Brasília. “Voltou para morrer”, disse um.
Das pessoas com quem conversei, todas foram unânimes em falar o quão absurda era a acusação de traição. Não só pelo fato de Francisco ser gay e nunca ter se relacionado com mulheres mas também porque a vítima era extremamente devota à família e, disseram-me, incapaz de abandonar o marido. Acrescentaram ainda que ela vivia sob a tutela constante de Juenil Queiroz, com poucas brechas para traçar o próprio destino, muito menos para incluir outro homem em sua história.
“Ela não tinha um caso de jeito nenhum. Juenil que colocou isso na cabeça”, conta outro. Pouco conseguia esconder do algoz, com quem era casada há 32 anos, mas ele não sabia, por exemplo, que a mulher ajudava financeiramente o primogênito. Francisca teve o menino antes de conhecer Juenil. Os dois homens praticamente não mantinham contato.
A mulher cultivava poucas amizades e raramente recebia visitas de amigas. Só quando o marido estava fora, normalmente trabalhando. Apesar de os vizinhos nunca terem testemunhado desentendimentos nem ouvido gritos do apartamento, pessoas próximas disseram que a vida de Francisca com Juenil sempre foi de sofrimento. Brigas constantes, agressões físicas e verbais infligiram a ela por mais de três décadas. Não raro, carros da Aeronáutica eram vistos circulando em volta do prédio onde o casal vivia, enquanto Juenil estava de plantão. A dona de casa não tinha sossego.
As aparências enganam…
Fora de casa, Juenil e Francisca eram sempre vistos de mãos dadas. Ele a chamava de “Princesinha”. Fazia questão de ser educado com os vizinhos. Algumas pessoas comentaram que a simpatia de Seu Queiroz era até um pouco exagerada, soava artificial. Ele tinha necessidade de se sentir querido pelos outros. Diariamente enviava mensagens religiosas para um grupo selecionado. Foi até pastor de uma igreja evangélica. Dizem que perdeu o posto. Dizem.
O pai de Juenil havia morrido há pouco mais de um ano. Isso deixou o militar bastante abalado e aumentou a enorme preocupação que já tinha com a mãe. Ao matar a esposa, ele nem imaginava a dor que a matriarca carregaria no peito. Depois do crime cometido pelo filho, a vida dela não é mais a mesma. “Está péssima”, contam-me. “Foi completamente inesperado. Ninguém imaginava isso. Ele não passava essa ideia para a gente. Era um homem realmente exemplar.”
Mas o que leva um homem a desconfiar da esposa?
O Facebook de Queiroz ainda está no ar. Lá é possível encontrar uma série de fotos de Francisca e de seus trabalhos manuais. Em uma das postagens, Juenil escreveu na legenda: “Eis o nosso trabalho. ‘Prince e Papi artesanatos’”, em referência ao apelido carinhoso pelo qual chamava a esposa — pelo menos na frente dos outros.
A página é aberta. Há quase 500 comentários na última foto postada por ele. A maior parte de pessoas desconhecidas que entraram para se manifestar logo após o crime virar notícia. Em geral, as palavras condenam a atitude dele, mas, entre as críticas, existem elogios enaltecendo a ação do homem “em nome da honra”. Em diversos portais, a seção dos leitores também conta com postagens em apoio à atitude do militar.
“Um homem leva a hipótese da traição às últimas consequências por conta do machismo estrutural. A cultura do controle perpassa muitos relacionamentos e independe de idade”, explica Carolina Costa Ferreira, advogada e pesquisadora em Ciências Criminais.
“Muitas pessoas se submetem a décadas de relacionamentos abusivos por conta de dependência financeira e psicológica. Mas o ciclo de violência tende a aumentar e pode culminar em episódios de feminicídio, como neste caso”
Carolina Costa Ferreira, advogada e pesquisadora em Ciências Criminais
Durante muitos séculos, a Justiça brasileira cultivou a cultura da absolvição dos assassinos de mulheres em nome da “legítima defesa da honra”. Em 1976, o Brasil acompanhou o famoso caso de Doca Street, que matou Ângela Diniz, no Rio de Janeiro. No julgamento, o réu seduziu o júri com lágrimas e disparou a célebre frase: “Matei por amor”. Resultado: foi condenado a apenas 2 anos e poderia cumprir a pena em liberdade. Na porta do tribunal, uma multidão apoiava o assassino — assim como os comentários nas redes sociais de Juenil Queiroz.
Apesar do apoio de populares, a sentença causou grande comoção pública. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio acabou anulando o julgamento e mandando Raul Fernando Street, o Doca Street, a novo Júri. O réu foi, então, condenado a cumprir pena por homicídio. Mulheres foram para a frente do fórum com faixas “Quem ama não mata”, frase que virou hino do movimento feminista da época. “Com o amadurecimento da sociedade, especialmente com o fortalecimento dos movimentos sociais, a gente tem percebido uma rejeição a situações em que a defesa da honra é justificativa para crimes. O reconhecimento do feminicídio é um passo importante neste processo”, reforça Carolina.
A especialista destaca ainda que a Polícia Civil do DF adotou um protocolo sugerido pela ONU Mulheres: investigar todos os crimes violentos cujas vítimas são mulheres como feminicídio.
Presentes fechados
Marcelo não tirou a aliança que selava o compromisso com Francisco. “Tudo me dói muito ainda e vai doer por um bom tempo. Eu não tenho mais noites tranquilas. Minha vida mudou completamente. Estou trabalhando para não entrar em depressão profunda. Só Deus sabe o que tenho passado”, revela com a voz embargada e os olhos marejados.
O casal queria abrir um restaurante. Francisco fazia curso de gastronomia. “Tínhamos vários sonhos juntos e eles foram interrompidos”, diz Marcelo.
“Acredito na justiça de Deus, mas não sei se confio na dos homens. Não vou conseguir mais morar em Brasília se ele for solto”
Marcelo Soares Brito, viúvo de Francisco de Assis Pereira da Silva
Para a comemoração do Dia dos Namorados, Marcelo havia comprado um perfume para o amado. Como Francisco adorava a barba do companheiro, havia investido em um kit de cuidados para a região. O viúvo abriu o presente sozinho.
Marcelo pediu para a família passar, no corpo do amado, o perfume que ia dar para Francisco de Dia dos Namorados. O enterro aconteceu no Piauí e o marido ficou em Brasília. O viúvo continua morando no apartamento novo, cercado por sete anos de histórias e sem forças para seguir em frente.
Os corações de Francisco e Francisca pararam de bater no mesmo dia. O dele, repleto de amor e sonhos. O dela, machucado e maltratado. A dona de casa talvez tenha morrido chamando de amor um sentimento que a matou pouco a pouco ao longo de três décadas.
Disque-denúncia
Depois de um feminicídio, muitas pessoas põem a mão na consciência e pensam como deveriam ter intervido na vida daquele casal. A história de “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” já é um ditado superado. A denúncia de violência doméstica pode ser feita em delegacias e órgãos especializados. O Ligue 180, central de atendimento a vítimas, funciona 24 horas por dia de maneira gratuita e confidencial. Há também um e-mail de contato: ligue180@spm.gov.br.
Mesmo se a vítima não registrar ocorrência, vizinhos, amigos, parentes ou desconhecidos podem denunciar uma agressão. O autor da denúncia pode ser ainda o Ministério Público. Após mudanças recentes na legislação, a investigação não é interrompida mesmo que a vítima desista da ação.
Thaís Antonio
Jornalista formada pelo Centro Universitário Iesb. Trabalhou na Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), Secretaria de Comunicação do GDF e na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), onde atuou na Rádio Nacional e na TV Brasil. Conquistou o terceiro lugar no Prêmio Geneton Morais Neto de Jornalismo na categoria videojornalismo. Fez mais de 50 entrevistas e perfis de profissionais ligados à “arte de contar histórias” para o Projeto Lupa.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (25/10/2019), 12.637 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 27 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.