Ninguém na rua, nem gente, nem carro, nem bicho. É domingo 2 de junho de 2019. Perto das 7h30, uma mulher vem andando a passos serenos, sozinha, como se a vida fosse toda dela. Nenhum outro movimento. Veste short jeans, tem as pernas bonitas; usa um casaco com capuz sobre a camiseta. Os cabelos vermelhos, em rabo de cavalo, lançados ao peito esquerdo, dão a impressão de uma echarpe. Está dentro de um condomínio na Vila Paranoá.

Nenhuma hesitação, como quem tem pleno domínio sobre o destino. Não demora 10 minutos, sai do condomínio. Carrega uma mochila, uma sacola reciclável, o celular. Segue pela rua ainda desabitada até sumir do alcance da câmera. Dez dias depois, em 12 de junho, o corpo de Genir Pereira de Sousa, 47 anos, é encontrado coberto de folhas secas, próximo a um antigo lixão, perto do Vale do Amanhecer.

Quase três meses depois, 85 dias, um homem atarracado, de músculos e tórax inflados em academia, cabelos pretos em coque, rosto com cicatrizes fundas de varíola, camisa branca de manga curta, mãos algemadas, está sentado diante de uma mesa numa sala fechada. Apoia os braços com os cotovelos. Olha rapidamente para a câmera, sabe que está sendo filmado.

Ouve-se a voz de um policial:

— Como é seu nome completo?

Com as duas mãos algemadas, o preso pega o copo de plástico que está ao lado, bebe um gole d’água e responde, como se falasse pra dentro:

— Marinésio dos Santos Olinto.

— Quantos anos?

O algemado faz as contas com os dedos e murmúrios, não se sabe se um gesto teatral ou real.

— 41.

O policial começa a perguntar sobre “a mulher de cabelo vermelho”. O homem de coque bebe outro gole d’água e responde com frases truncadas.

— Ela vinha andando. Parei. Comecei a trocar ideia no carro. Achei que era uma pessoa que a gente vê por aí e tudo.

Hesita e continua:

— Por causa da roupa.

(Genir usava short na manhã em que foi violentada e morta.)

Conta que estava na Blazer cinza, que subiu depois do milharal, que “teve tudo”.

— Depois fiquei transtornado e apertei o pescoço dela – passa as duas mãos algemadas no rosto e diz algo inaudível. Quando olhei, já tinha feito a merda.

O policial repete as perguntas, o preso repete as respostas, com uma ou outra variação. Numa delas, levanta os dois braços para o alto, até onde as algemas permitem, estica a cabeça para trás e diz:

— Não sei o que me deu.

O homem de gestos teatrais e olhar enviesado havia sido preso um dia antes pela morte de outra mulher, em circunstâncias assombrosamente semelhantes. Na mesma Blazer cinza, fingindo-se de motorista de transporte pirata, pegou a advogada Letícia Sousa Curado, 26 anos, num ponto de ônibus do Arapoanga, por volta das 7h30, levou o carro para o mato, quis estuprá-la, a moça reagiu e ele a matou esganada. Com a prisão de Marinésio, novas vítimas apareceram e ele foi denunciado pelo Ministério Público por um estupro, uma tentativa de estupro e dois abusos sexuais.

Genir tinha uma grande infelicidade, um grande medo e duas grandes desilusões.

A infelicidade: a morte do filho, Jean, 21 anos, dois anos atrás num acidente de moto.

O medo: de ser estuprada. Era uma aflição recorrente. Tanto que não gostava de acompanhar as notícias sobre violências sexuais.

As desilusões: não ter ainda encontrado, aos quase 50 anos, um companheiro de quem não tivesse que fugir. O primeiro marido batia nela, por isso a separação, havia mais de sete anos. O segundo, namorado que conheceu nas idas à casa dos pais, a agrediu um mês antes de ser assassinada. “Ela chegou aqui com pescoço todo roxo”, conta Francidalva Xavier, patroa e amiga de Genir, muito mais amiga que patroa. No começo do ano em que morreu, Genir largou tudo em Brasília e voltou para Eliseu Martins (PI). Queria ver se dava certo morar com o namorado. Quando soube que ele a traía, o abandonou. E foi agredida até que os vizinhos da casa onde ela estava, ouvindo os gritos, a socorreram. Poucos dias depois, estava de volta a Brasília.

Genir tinha pelo menos duas grandes alegrias constantes, os fazeres da faxina e os prazeres do forró.

— A coisa que eu mais gosto de fazer é faxina, dizia para Francidalva.

As duas, sempre que possível, tinham um ritual de limpeza: Genir tirava tudo do lugar, limpava, faxinava, e Fran punha tudo no lugar. Um modo de estarem juntas, conversando. Tinham também o ritual da balada – cantar e dançar até o dia amanhecer.

“Ela podia ficar na balada até as 4h. Às 7h, estava no trabalho”, conta Francidalva, empresária de 34 anos, dona de uma pizzaria na Avenida Paranoá, no Paranoá. “Não tinha quem não gostasse dela. Era impossível. Era alegre, estava sempre bem. Não é porque ela morreu que eu não acho o lado ruim dela, mas ela não tinha defeito, talvez por ser ingênua, verdadeira, carismática… era impossível não se apaixonar por ela”, diz Francidalva, com olhos de água.

Quando Genir não apareceu no trabalho no domingo à tarde, Francidalva não se preocupou. Sabia que a amiga estava cansada, podia ter decidido ficar em casa. Mesmo assim, mandou mensagem que nunca chegou. “Foi um dia muito movimentado, de reinauguração da pizzaria. Na segunda-feira, comecei a sentir que havia algo errado.” Foi atrás e, quando soube que Genir não havia ido fazer a limpeza numa casa do Setor de Mansões do Lago Norte, Francidalva sentiu o sangue gelar. “Ela nunca faltaria a um trabalho sem avisar. Ainda mais na casa de uma patroa pagava bem. Seriam duas faxinas por R$ 400. Ela estava contando com esse dinheiro.”

Quatro dos 10 filhos de dona Ilda e seu Luís moram em Brasília. Quatro mulheres, quatro trabalhadoras em serviço doméstico. Genir, a mais velha, foi a primeira a vir para a capital, há 20 anos. Tinha acabado de ter um filho de um namorado. Deixou o bebê com a mãe e veio atrás de serviço. O pequeno município onde nasceu e vivia, Eliseu Martins (PI), tem hoje população estimada de 5 mil habitantes e metade deles ganha menos de meio salário mínimo mensal.

Durante 12 anos trabalhou de doméstica na mesma casa – e se casou com o irmão da patroa. Genir atraía confiança e afeto. “Ela ouvia. Não dava muito palpite, ouvia”, diz a irmã mais nova, Lusileide. Do casamento, nasceram dois filhos, Jean e Jaiane. Separaram-se por conta das agressões do marido.

Três irmãs vieram no rastro da mais velha, Genilde (gêmea de Genir), Eva e Lusileide. Todos os anos, as quatro irmãs iam passar o Natal com os pais e os irmãos em Eliseu Martins, a 1.130 km de Brasília. Foi numa dessas idas que Jean, filho de Genir, morreu num acidente de moto. Desses acontecimentos que fogem à ordem natural da morte, como seria não fosse a roda imponderável da vida.

Genir seguiu trabalhando, e muito, como sempre. Aceitava faxinas em qualquer dia da semana, mesmo aos domingos e, a partir das 17h, limpava os banheiros da pizzaria da amiga e patroa. Eram tão ligadas que Genir tinha um quartinho na casa da chefe, onde dormia quando preciso para ganhar tempo e descansar um pouco mais. Foi Francidalva quem procurou a polícia para denunciar o desaparecimento de Genir.

Morava com o filho mais velho, Leonardo, 29 anos, padeiro, o que foi criado pela avó. Tinha um amigo e paquera, colega de trabalho, com quem dormiu, num hotel no Paranoá, a última noite de sua vida. Gostava de se cuidar – malhava em academia, fazia bronzeamento artificial, sobrancelha e cabelo sempre retocados. Estava perto dos 50, mas podia muito bem, se quisesse, diminuir 10 anos na idade.

Toda a família se reuniu em Eliseu Martins para o sepultamento de Genir – o corpo da mãe ficou ao lado do corpo do filho, em cova rasa, duas cruzes. “É uma gente muito, muito simples e muito, muito afetiva. Todos se abraçam e se beijam”, conta Francidalva, que viajou 1 mil km para se despedir da amiga.

Assim era Genir Pereira de Sousa até que o motorista de uma Blazer cinza parou o carro, abriu a janela e ofereceu transporte pirata. O predador havia capturado a presa.

Conceição Freitas

Conceição Freitas

Sou filha de quatro cidades: Manaus, Belém, Goiânia e Brasília. Repórter, cronista e dona de uma banquinha de afetos brasilienses. Guardo em mim amores eternos e 11 prêmios de jornalismo – o mais importante deles, Esso Nacional – por uma série de histórias de amor entre excluídos, portadores de necessidades especiais e errantes de todo tipo. Fui repórter de polícia, cidades, cultura, Brasil. Neta de negro e de índio, sou brasileira até o último fio de cabelo cacheado. Adoro descobrir o sentido que cada pessoa dá à vida. É do sentido delas que construo o meu.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (20/12/2019), 16.376 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 30 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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