O machismo está na essência de, ao menos, 28 assassinatos de mulheres ocorridos neste ano no Distrito Federal. A protagonista da história que vamos contar nas próximas linhas foi a vítima de número 23. Greisielle Feitoza de Carvalho tinha 31 anos quando foi assassinada por Douglas de Jesus, seu companheiro.
A última cena de sua vida se passou em um domingo à noite, numa rua mal iluminada em Ceilândia (DF). O local é frequentado por usuários, compradores e vendedores de droga. O autor do feminicídio vivia com a jovem há três anos e é pai de, pelo menos, três filhos, um deles com Greisielle. O assassino tem antecedentes criminais, inclusive pelo crime de ameaça e violência doméstica contra uma ex-companheira.
Douglas, ou ‘Droguinha’, como era conhecido, está foragido desde o dia 15 de setembro, quando esfaqueou a parceira até a morte.
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Dona Almerinda Feitoza, mãe da vítima, não conhece pessoalmente o assassino de sua filha. Nos últimos três anos – tempo em que o casal se relacionou – nem a filha, nem o parceiro visitaram a família – fosse para um Natal ou um aniversário. Antes do relacionamento com Douglas, conta dona Almerinda, Greisielle visitava os pais, as irmãs e a filha com certa frequência.
Não ficava muito tempo, é verdade. Segundo dona Almerinda, a necessidade da droga fazia com que Greisielle voltasse às ruas depois de três ou quatro dias. Mas nunca havia ficado um ano longe da família. Muito menos três.
“Talvez ele [o companheiro] não deixasse ela sair pra ver a gente, não é? Às vezes até a machucasse, não sei. Tudo é possível. Só vi Greisielle até ela começar a ficar com ele. Eles se conheceram aqui perto. Depois disso, só no cemitério”, diz a mãe, com olhos baixos. De fato, há indícios de que a filha viveu um relacionamento abusivo com o parceiro.
Ameaça e histórico de agressões
Segundo uma das testemunhas interrogadas pela polícia, a jovem tentou terminar o relacionamento com Douglas no dia de sua morte. Antes de se relacionar com Greisielle, ele foi casado com outra mulher, com quem teve dois filhos. Alguns anos depois, a parceira decidiu pedir separação. A reação de Douglas anunciava o que mais tarde ele faria com Greisi: a perseguiu e a ameaçou de morte.
A ex-mulher fez um boletim de ocorrência comunicando ao Sistema de Segurança o teor das ameaças. Na época, era 2013, uma medida protetiva de urgência foi expedida em favor dela.
Estudos nacionais e internacionais mostram que existe o risco de as desavenças entre casais evoluírem para crimes quando há fatores somados, como excesso de ciúme; ameaças de morte; dependência de drogas; uso excessivo de álcool; e desejo manifesto de uma das parte em romper com o relacionamento.
A primeira pesquisa com base em uma lista de ameaças de letalidade foi a Danger Assessment, de 1985. De lá pra cá, outras pesquisas foram desenvolvidas tendo como mote elementos que indicam a presença de comportamento perigoso. Mais recentemente esses trabalhos evoluíram para uma ferramenta de prevenção à violência: questionários de avaliação de risco são aplicados às mulheres que pedem ajuda em delegacias, hospitais ou unidades de Justiça.
No final do ano passado, o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) fecharam acordo com as Nações Unidas a fim de implementarem, nacionalmente, essa ferramenta e mapearem os fatores de perigo, caso a caso. O DF é uma das unidades da Federação que já está utilizando o Formulário Nacional de Avaliação de Risco.
Dotado de 25 perguntas, o questionário ajuda policiais e juízes na aplicação de medidas protetivas de urgência que sejam efetivas. Em um caso, por exemplo, a melhor atitude pode ser direcionar a mulher a uma casa-abrigo ou o autor da violência para um grupo psicossocial, ou para a prisão.
Para Adriana Ramos, juíza do 1º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro (TJRJ) e uma das magistradas envolvidas na elaboração da ferramenta, além de o questionário contribuir com o poder público para que seja possível a melhor gestão das ações de proteção e de combate à violência, ele também ajuda a mulher a abrir os olhos.
“Esse é um passo que faz a diferença, quando se busca ajuda. Nesse momento a mulher toma consciência do drama e do risco que está passando”, diz.
No formulário, a mulher dirá, por exemplo, se o agressor já a ameaçou de morte, perseguiu, vigiou ou controlou suas atitudes. Responderá, também, se o denunciado tem acesso a algum tipo de arma, é dependente de álcool, viciado em droga, ou apresenta doença psiquiátrica.
Quase invisível
Contar a história de Greisielle é como refazer os passos de alguém invisível. Ela não estudava desde a 7ª série, não trabalhava, não frequentava igrejas, não fazia acompanhamento médico e, há três anos, não tinha contato com nenhum parente.
A última vez que a moça esteve com o pai foi durante o parto de seu terceiro filho – único com Douglas. “Ela estava muito transtornada no hospital e, como deu entrada sozinha, chamaram a gente para acompanhar a alta. Não tive coragem de ir”, diz dona Almerinda, sobre a derradeira vez que teve notícias da filha viva.
Debilitada emocional e fisicamente, Greisielle, recém-parida, não voltou para a casa com o pai. A mãe acredita que ela tenha deixado o filho com a família de Douglas e voltado às ruas. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF), em três anos, apenas dois casos de feminicídio envolveram mulheres em situação de rua. Um deles foi o de Greisielle.
Para a especialista e pesquisadora na área de saúde mental e gênero, a psicóloga Iara Flor Ritchwin Ferreira, a droga é mais um sintoma da brutalidade social do que a causa do feminicídio. “Em geral, a mulher já está passando por uma situação de precariedade e de sofrimento psicológico”, diz.
“Ela busca no crack uma espécie de automedicação para aguentar uma vida de violência. Certamente a droga vulnerabiliza ainda mais essa mulher que está exposta a situações de maior risco. Mas quem mata mesmo é o abandono social e o machismo”, diz a doutora em psicologia clínica e cultura pela Universidade de Brasília (UnB) e Université Paris Diderot.
A Política de Assistência Social do DF não tem um programa específico para o acolhimento de pessoas viciadas e não faz internação compulsória (à força). Amigos, parentes e a própria pessoa podem procurar um Centro de Referência de Assistência Social (Cras) ou Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), existentes em várias cidades do DF, para orientar o usuário. Mas é preciso que o doente queira buscar ajuda.
“Não é raro que pessoas em situação de muita vulnerabilidade não reconheçam o grau de perigo ao qual estão expostas. Quem sofre com muitos problemas sociais, emocionais, físicos, tende a naturalizar a dor e a violência”
Ben-Hur Viza, juiz do Núcleo Judiciário da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Distrito Federal (CJM/DF)
Para o magistrado, as políticas públicas nessa área devem preparar os profissionais da rede de saúde para enxergar os indícios de violência, já que a maioria das mulheres nessas condições não irá encarar uma delegacia de polícia para fazer uma ocorrência.
“Pelejei, mas não consegui”
O contato de Greisielle com as drogas começou cedo, por volta dos 14 anos, nos arredores da escola onde estudava. Segundo a mãe, a vítima pulava o muro do colégio para se encontrar com o grupo de jovens que se reunia diariamente para conversar, rir e trocar experiências. Entre elas, consumir drogas.
A situação foi ficando mais séria depois que Greisielle se apaixonou por um dos rapazes, e engravidou. Ela foi mãe pela primeira vez aos 22 anos e fez questão de buscar a comprovação de paternidade. “Eu dizia pra ela largar aquilo de mão, por que ele não ia mudar. E foi dito e feito. Ela comprovou que ele era o pai da criança, mas o homem só colocou o nome na certidão. Nunca assumiu a filha, cuidou ou deu qualquer coisa para ela”, lembra dona Almerinda.
A mãe recorda que a filha ficou abalada com o fim do relacionamento. “Ali ela começou a se envolver mais fortemente com a droga. Parecia que alguma coisa nela tinha quebrado, não sei. Desgostou da vida. Depois disso, nunca mais foi a mesma. Foi quando passou a sumir de casa, hibernar, como se diz”, conta dona Almerinda, que acabou cuidando da neta como uma filha.
De acordo com Dona Almerinda, a família tentou interná-la algumas vezes em uma clínica de recuperação evangélica. Numa delas, a jovem ficou quase 90 dias em tratamento. “Mas quando recebia alta, voltava para o vício. Ela dizia que ia conseguir largar o vício, mas nunca cumpria a promessa. Às vezes, falava em voltar a estudar. A gente fazia festa, né? Eu saía com ela para comprar enxoval novo. Mas dava um tempo, ela fugia, levava tudo, quando voltava tinha só a roupa do corpo. Retornava suja, magra, doente”, diz, com olhar longe.
“Eu pelejei com Greisielle. Andei muito nas bocas de Samambaia atrás dela. Mas não teve jeito”
Dona Almerinda, mãe da vítima
Risco maior
Artigo Causa mortis em usuários de crack, publicado em 2006, em São Paulo, observou que quase 57% dos viciados acompanhados pelo estudo (131 pessoas) morreram assassinados. Na avaliação do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável pelo trabalho, a alta mortalidade está mais relacionada à violência e vulnerabilidade às doenças do que propriamente ao consumo da substância.
“A vida fica mais curta porque, com a droga, o usuário tem que se relacionar com situações envolvendo mercado ilegal, traficantes, exploradores sexuais, abandono e naturalização da violência”, explica.
O destino de uma pessoa depende de muitas variáveis, e quase sempre buscamos nos basear em algumas delas para tentar entender o motivo de uma história ter encontrado um final tão triste. Julgamentos sobre a vida de Greisielle nunca farão jus aos sentimentos dela, necessidades e dores. Se o consumo de crack impediu a jovem de ter uma vida plena, também deve ser a forma que ela encontrou para suportá-la.
Sob efeito do crack, Greisielle hibernava seu coração. E talvez não sentisse, por algumas horas, a sensação de abandono de ter sido abandonado por sua família biológica ainda no dia do nascimento. “Eu conhecia a mãe de Greisielle, ela não tinha condições de criar os filhos. Teve vários, doava assim que nasciam”, conta Almerinda.
Largada para trás pela família biológica e pelo primeiro amor, a moradora de rua repetiu a história com todos os filhos. Segundo dona Almerinda, Greisielle foi mãe de três, e os três estão sendo criados pelas avós.
Na família de dona Almerinda, além de Greisielle, Wesney – filho mais velho da família Feitoza –, foi assassinado aos 18 anos pelo ex-companheiro de sua então namorada. O sujeito foi preso; a mulher foi embora da cidade, mas o filho de dona Almerinda está morto pela mesma doença social que vitimizou a filha adotiva.
A primogênita de Greisielle não consegue deixar de lembrar da mãe estendida no caixão. “Ela diz que aquele foi o pior dia da vida dela. E que queria apagar ele da mente”, fala dona Almerinda. A matriarca espera que Douglas seja preso. “Se a polícia não pegá-lo, ele vai ficar viciado, né? Tá na moda homem matar mulher”, diz. Do jeito dela, dona Almerinda percebe o alto índice de assassinatos de mulheres na cidade.
No ano passado, 28 mulheres foram assassinadas por companheiros ou ex-parceiros, no DF. Em 2019, esse número chegou antes de dezembro.
Justiça e prevenção
O número de casos novos também aumentou na Justiça em todo o país. Desde 2016, quando a Lei do Feminicídio entrou em vigor, estão em tramitação 3,5 mil processos desse crime. Em 2016, foram 1.291 casos novos. No ano seguinte, foram registrados 1.596 ocorrências. E em 2018, 1.611. O caso de Greisielle se juntará a um estoque de 115 casos que tramitam no DF.
Um dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, a Convenção de Belém do Pará, responsabiliza o Estado as ocorrências de violência doméstica, tenham sido eles cometidos em ambiente privado ou público. No caso de Greisielle, o crime ocorreu em uma área dominada pelo crime organizado, em um bairro populoso da capital federal do Brasil, país que ocupa o 5ª lugar no ranking de mortes de mulheres.
A Lei nº 11.340/2006 foi uma resposta do governo brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), que condenou, em 2001, o Brasil por omissão, negligência e tolerância em relação a crimes contra os direitos humanos das mulheres. O caso da biofarmacêutica Maria da Penha, vítima de duas tentativas de homicídio pelo marido, tramitava lentamente na Justiça brasileira, sem sentença definitiva nem prisão do autor. A situação só mudaria após a condenação do Brasil pela corte estrangeira.
Entre as recomendações feitas pela OEA, o Brasil precisaria resolver o processo penal do responsável pela agressão contra Maria da Penha, como também adotar políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
Para a advogada Leila Barsted, membro do Comitê de Peritas do Mecanismo de Monitoramento da Convenção de Belém do Pará da OEA, o país precisa urgentemente avançar para garantir os direitos aos cidadãos. “É preciso incluir as mulheres em situação de vulnerabilidade social por meio de políticas públicas de saúde, de assistência social, de educação e de trabalho. O machismo mata, e as instituições governamentais não podem se omitir de fazer a sua parte, sob pena de o Estado ser considerado cúmplice nessas mortes”, diz a especialista.
Regina Bandeira
Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), passou pelas redações da Rádio Cultura, do Jornal de Brasília, Correio Braziliense, Portal iG. Foi coordenadora de jornalismo on-line na Secretaria de Comunicação (Secom) da Universidade de Brasília (UnB) e trabalha há 8 anos como repórter do portal de comunicação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), onde já escreveu mais de mil matérias, boa parte delas sobre as ações de combate à violência doméstica no país.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até segunda-feira (11/11/2019), 14.130 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 28 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.