Queila Regiane. Queilinha. Jane.
Todos se referem a ela com enorme carinho.
O irmão, as pessoas da escola perto de onde morava, as amigas.
A Jane era muito amada, muito amável e vivia para o marido. Uns vinte anos juntos, duas filhas, algumas mudanças e toda uma vida.
Ninguém sabia de nenhum problema do casal.
Ela era expansiva, falava muito, tinha facilidade em fazer amigos.
Ele veio de Goiás, da roça, e não falava muito.
Muito quieto, todos disseram.
Era até estranho para alguns. Muito quieto. Mas era o jeito dele, pensavam. Muito quieto.
Tão querida a Jane, que outras duas pessoas da família foram batizadas com o mesmo nome. Queila. Queila Jane, madrinha de muitos. As crianças a amavam.
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Trabalhou por último como faxineira, mas, depois da bariátrica que fez para “ficar bonita para o Iron” e com um mioma, desmaiava com frequência e foi mandada embora. Ironílson, o marido calado, também havia sido demitido por conta de uma hérnia de disco. Não conseguiu manter o emprego devido às dores. Jane segurou as pontas da família. Uma filha grande, já morando com o namorado. E a caçula, ainda adolescente.
Depois de um incidente com o marido, que brigou num bar e esfaqueou um rapaz, mudaram-se de Sobradinho para uma área mais afastada. Catingueiro, na Fercal. Longe de tudo. Umas casas esparsas, com pó que entra na garganta, calor, sol. Os vizinhos eram o irmão, a mãe e a filha mais velha.
Depois da bariátrica para ficar mais bonita, ela foi murchando. Ficou magra. Iron tinha ciúmes. Os dois estavam tocando um bar que funcionava em um dos cômodos da casa, o da frente. Uma casinha vermelha, repleta de plantas, perto de uma igreja evangélica. Chegou a frequentar uma ou duas vezes os cultos, mas não era convertida. Uma mulher muito generosa, dividia o pouco que tinha. “Tudo era ela mais os outros”, contou uma amiga.
Mas Jane não andava bem. Ia fazer uma cirurgia para tirar o útero e vivia desmaiando. Sangrava. Muitas idas ao hospital. A filha cuidava dela.
Iron tinha ciúmes. Ela estava magra. Tinha amigos. Ele desconfiava. Brigaram por conta de uma mensagem de texto que recebeu de um amigo, salvo em seu telefone como “amiguinho”. Jane não tinha maldade. Nem tempo nem saúde para trair.
Não era o que Ironílson achava.
Jane queria ser médica. Queria. Tinha um livro de anatomia e vivia olhando. Sonhava. Mas a vida não lhe dava essa possibilidade. A pobreza, a fraqueza, o sangue. Mal conseguia trabalhar, mas tinha medo de não ter como se sustentar.
– O que eu vou comer se sair de lá?
O Iron não podia trabalhar. O fardo era dela.
Mas até que o bar estava indo bem, frequentavam os bebedores e os abstêmios. Era um ponto de encontro e de referência, era a casa deles. Pelo menos ela não ficava mais desmaiando na empresa, longe da sua família.
Um dia seu irmão acordou com uma gritaria.
“A Jane está passando mal”, disse o namorado da filha. Ela sangrava.
Mas dessa vez sangrava pelo peito, pelo pescoço, pelas costas, em uma poça de seu próprio sangue. Ela provavelmente dormia e o covarde do Ironílson, aquele homem calado demais, pai de suas duas filhas, que não tinha feito cena até outro dia, a esfaqueou.
Enquanto ele levava a mais nova para a casa da sogra na intenção de fugir, ouviu Jane pedir ajuda. Ela ainda vivia, se arrastando e tentando continuar viva.
Voltou, esse criminoso, e a esfaqueou mais vezes.
Fugiu.
Deixou uma mochila no caminho para despistar a polícia, ele sabia que os militares viriam, mas foi pego quase na fronteira com Goiás.
Foi pego. Está preso.
Alega que matou porque ela tinha um amante. Insiste nisso.
Jane não tinha nem saúde para amante. Ela tinha cirurgia marcada na segunda-feira. Foi morta antes do fim de semana.
Dias antes, confessara à amiga que sua vida estava um inferno, mas sem dar detalhes. Ela não falava mal do marido.
Se algo acontecia entre eles, só ela saberia dizer. Se pensava em ir embora, só ela saberia dizer. Se houve briga aquela noite, só ela saberia dizer.
Ironílson: preso. Jane: morta. Assassinada com facadas pelo amor de sua vida.
Jamais saberemos o que aconteceu. Apenas que houve ciúme, covardia, um feminicídio e uma família destruída.
Clara Averbuck
É escritora e tem nove livros publicados. Teve obra adaptada para cinema e teatro e colaborou com diversos veículos como repórter e colunista. Atualmente, escreve para a Marie Claire e se prepara para lançar seu décimo título.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (01/11/2019), 13.779 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 27 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.