Quem está no alto da hierarquia do PCC e não segue preso leva uma vida de luxo. Com remunerações de cinco dígitos e polpudas comissões por serviços prestados ao narcotráfico, a elite da organização criminosa vive em mansões, acumula patrimônio e circula entre ricaços no Brasil e no exterior.
Já a realidade da maioria dos 100 mil “colaboradores”, dos quais 40 mil são “batizados” pela facção, é inversa. Os ganhos são modestos. Os riscos, altos. Até criminosos que ocupam algum posto de chefia moram literalmente nas ruas ou habitam muquifos infestados por baratas.
“O dividendo, o dinheiro do PCC, está na mão de poucos. Para a massa carcerária, só tem ônus. Eles saem da cadeia como soldado, em uma função rasa, e nunca vão atingir o topo”, diz o promotor Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo (MPSP), que investiga a facção há 18 anos.
Para o criminoso da base da pirâmide, os benefícios oferecidos pelo PCC se resumem a ajuda de custo para comprar cesta básica e passagens de ônibus, que vai pingando de cidade em cidade, caso a família precise visitá-lo na cadeia.
As chances de ascensão são remotas. Os chefões máximos, encarcerados no sistema federal, são praticamente os mesmos desde 2002 – quando Marcola tomou o PCC. É ele e mais cinco. Nas ruas, onde há maior rotatividade de cargos, a escalada na hierarquia dificilmente se concretiza. O comum é o colaborador ser preso ou assassinado.
O caso de Odair Lopes Mazzi Júnior, o Dezinho, ilustra bem o que ocorre dentro do PCC. O traficante demorou quase 20 anos para galgar a hierarquia do PCC, coordenar parte da expansão para a América Latina e usufruir do dinheiro do narcotráfico.
Entre os bens atribuídos a Dezinho, está uma mansão de 600 m², com cinco suítes e seis vagas de garagem, em Alphaville, na Grande São Paulo. O imóvel é avaliado em R$ 3,6 milhões. O traficante também estaria por trás de comércios em Moema, bairro de classe média alta da capital paulista.
ReproduçãoDezinho tem uma mansão de 600 m², com cinco suítes e seis vagas de garagem, em Alphaville, na Grande São Paulo Patrimônio de líderes
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Chefes do PCC vivem luxuosamente ou proporcionam uma vida de ostentação às suas famílias. Investigações já ligaram uma série de bens a lideranças
No caso da cúpula do PCC que está encarcerada, como Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, a vida de alto padrão é desfrutada pelos familiares. Em agosto de 2021, a esposa do número 1 da facção, Cynthia Giglioli Herbas Camacho, de 46 anos, deu entrada no centro cirúrgico do Albert Einstein, hospital de ponta em São Paulo, famoso por atender celebridades, como Pelé e Faustão. Foi fazer uma rinoplastia, cirurgia para remodelar o nariz.
ReproduçãoA mulher de Marcola, Cynthia Herbas Camacho, mora em Alphaville e é dona de uma rede de cabeleireiros Sem convênio médico, a mulher de Marcola pagou R$ 8 mil, redondos, de forma antecipada. A conta deu R$ 13.098,89. Como a dívida nunca foi quitada, o hospital enviou cobrança ao endereço que a própria Cynthia informou no contrato: um prédio à beira-mar em Santos, no litoral paulista. O calote foi parar na Justiça, em abril de 2023.
Uma casa de luxo em Alphaville, na Grande São Paulo, também é ligada à família de Marcola. O MPSP estima que o imóvel, alvo de operação policial em 2022, valha pelo menos R$ 10 milhões. No mesmo ano, um salão de beleza da esposa de Marcola teve R$ 479 mil bloqueados das suas contas, por suspeita de lavagem de dinheiro. A família nega ter bens de origem ilegal.
Há mais de 15 anos, durante depoimento à CPI do Tráfico de Armas, no entanto, Marcola foi questionado sobre como pagava seus advogados e admitiu ter enriquecido ilicitamente com roubos a bancos. “O senhor já viu meus crimes? Já viu os valores?”, disse ele. “Quinze milhões em um, 10 milhões em outro, quer dizer…”
Outras atividades do PCC
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Chefes do PCC mantêm negócios particulares para aumentar seus lucros e esquentar dinheiro do crime. Diferentes investigações já apontaram a presença da facção em diversos setores e serviços.
Em 30 de agosto de 2023, a Polícia Federal deflagrou a Operação Pactolo para reprimir o tráfico de cocaína, a partir do Porto de Santos, o negócio mais lucrativo do PCC. Os investigadores conseguiram na Justiça o bloqueio de 12 bens imóveis, como contas bancárias e apartamentos de luxo. Ao todo, o patrimônio foi avaliado em R$ 2,8 bilhões. Os nomes dos envolvidos não foram divulgados.
Divulgação/Polícia FederalA Polícia Federal deflagrou a Operação Pactolo no Porto de Santos, o negócio mais lucrativo do PCC A Baixada Santista é berço do traficante internacional André de Oliveira Macedo, o André do Rap, acusado de coordenar esquemas de envio de droga para a Europa. Ele foi capturado em uma mansão em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, em 2019.
André do Rap se apresentava como agente de artistas e jogadores de futebol. Para pegá-lo, investigadores rastrearam uma lancha, que custou R$ 6 milhões, registrada no nome de uma empresa fantasma, com sede em um casarão abandonado de Santos.
Divulgação/Polícia FederalA lancha do André do Rap que estava no nome de um laranja O traficante não ficou muito tempo atrás das grades. Ele voltou às ruas, beneficiado por um habeas corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), em outubro de 2020. A soltura foi revogada e, desde então, André do Rap é caçado pela polícia. Mesmo foragido, conseguiu reaver seus bens, que incluem uma mansão e um helicóptero.
Para ocultar bens, diretores do PCC registram suas propriedades em nome de laranjas. O promotor Lincoln Gakiya avalia que o maior obstáculo é conseguir provar na Justiça que o patrimônio pertence, de fato, ao criminoso – ainda que não seja condizente com a renda declarada na Receita Federal.
“Essa é a dificuldade no Brasil”, afirma o promotor, responsável por denunciar a célula de lavagem de dinheiro do PCC, em 2020. Nos Estados Unidos, onde máfias estruturadas atuam há mais tempo, cabe ao declarante demonstrar a origem lícita dos seus bens.
Direitos e deveres
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O soldado do PCC está submetido ao conjunto de regras da facção. Ele deve executar as “missões” comandadas por seus líderes e arcar com suas obrigações
Na outra ponta, os soldados do PCC acumulam obrigações. Até pouco tempo atrás, eram forçados a contribuir financeiramente para a máfia. Todos, incluindo os colaboradores não batizados, precisam se submeter às regras e devem estar 100% disponíveis para executar “missões” – que vão desde trabalhar nas “lojas” do tráfico a assumir culpa por crimes cometidos por outras pessoas.
Na sua fundação, em agosto de 1993, a organização instituiu o “Setor de Cebola”, a caixinha mensal, com preços a serem pagos de acordo com a situação prisional do colaborador. Esse valor chegou a ser de R$ 950 por mês.
A cada dois meses, o “Setor das Rifas” também era responsável por arrecadar dinheiro dos colaboradores do PCC, com sorteios de imóveis, carros e motos. Todo integrante era obrigado a comprar 20 números por premiação. Para cada soldado, o esquema custava R$ 3,6 mil por ano.
Divulgação/DepenSegundo o Ministério Público, a massa carcerária está insatisfeita com a atuação da atual cúpula do PCC Com os lucros bilionários da cocaína e a crescente insatisfação da massa carcerária, o PCC só teria deixado de cobrar a “cebola” e a “rifa” em 2020, de acordo com o Ministério Público paulista.
“É dito que [as lideranças] viraram as costas para o sistema prisional”, afirma Gakiya. “A força do PCC está no sistema prisional, mas a organização está abandonando a massa carcerária cada vez mais e olhando só para a rua. O criminoso fala que está esquecido. Eles têm reclamado, eu mesmo escuto isso.”
Plano de carreira
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O PCC divide os territórios controlados em áreas, cada uma com seus chefes. A hierarquia é rígida e tem cadeia de comando definida.
Em territórios controlados pelo PCC, cada colaborador tem posição bem definida. O primeiro na escala de chefia é o chamado “disciplina”, responsável por garantir que as regras do PCC sejam cumpridas em uma comunidade.
O cargo é importante em nível local. Cabe ao “disciplina” mandar um integrante da organização que é acusado de desvio de conduta para o “Tribunal do Crime”, ou “Tabuleiro”.
Com métodos cruéis, a justiça paralela do PCC espanca, mutila e mata desde quem desvia dinheiro a quem é pivô de conflitos banais. As punições incluem furar os olhos de suspeitos de roubar a organização, fraturar membros a pauladas e matar por empalamento.
Também há casos de pessoas obrigadas a assumir crimes que não cometeram e registros de vítimas que abrem a própria cova, onde são mortas e enterradas em seguida.
Na hierarquia do PCC, o “disciplina” presta contas ao “sintonia geral”, o responsável por um conjunto de bairros. Este, por sua vez, deve satisfação ao “sintonia final” – o líder de toda uma cidade ou região.
A elite dos “sintonias finais”, a chamada “Sintonia dos 14” ou “Sintonia dos 36”, tem salário entre R$ 10 mil e R$ 20 mil. Esses altos diretores, todos criminosos de confiança da cúpula, representam menos de 0,03% dos quadros do PCC.
O soldado raso não recebe remuneração fixa. Já um gerente de região, cargo considerado bem-sucedido dentro do PCC, chega ao salário de R$ 5 mil, com a responsabilidade de cuidar dos lotes de drogas e revender no mercado interno.
Na “casa bomba”, o local de trabalho usado para armazenar entorpecentes, as condições são precárias. Muitas vezes, os criminosos utilizam equipamentos improvisados, como baldes comuns e liquidificadores, para produzir e refinar cocaína – o que estraga vira crack. De lá, as remessas saem para as biqueiras.
Hoje, o PCC permite que um integrante “rasgue a camisa” – ou seja, peça demissão do grupo criminoso. A exigência é simples: o ex-membro não pode continuar no crime. Caso contrário, paga com a própria vida.
Se pedir para sair, o tratamento muda, e o ex-integrante também deixa de ser chamado de “irmão” ou de “companheiro”. No linguajar do PCC, vira “Zé Povinho”.
Renato César, o Renatinho, de 44 anos, decidiu entrar na vida do crime cedo. Filho de empregada doméstica, aproveitou que a mãe passava a maior parte do dia no trabalho e começou a conviver com bandidos de Sumaré, no interior paulista, onde nasceu.
Aos 14 anos, Renatinho já seguia os passos de um integrante do PCC na região. “O falecido Agnaldo que me ‘adotou’ na época”, afirma. “Ele me deu uma mochila e uma arma calibre 38, cano curto. Eu andava com ela na cintura, vendendo droga.”
Ele foi detido, pela primeira vez, por roubar um carro. Após várias passagens pela antiga Febem, onde ficavam os menores infratores, foi parar no Pavilhão 9 do Carandiru, na capital paulista, assim que atingiu a maioridade.
Segundo relata, Renatinho era companheiro de cela do serial killer Pedrinho Matador – que seria assassinado a tiros em março de 2023. Também dividia o espaço com Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, liderança histórica do PCC, de quem aceitou o convite para entrar oficialmente na facção.
“Batizado” em 1997, Renatinho teria chegado ao posto de “Sintonia Final da 011” – ou seja, chefe na capital paulista. O número usado para diferenciar as “sintonias” de cada cidade é o mesmo do DDD. Na época, o PCC era recém-nascido, e a força do grupo se concentrava nas cadeias paulistas. Em 2001, o criminoso teve um “despertar espiritual” e pediu demissão.
“Quando eu assumi o Senhor Jesus, estava com várias responsas [com a facção]. Nessa época, se converter era um ato repudiado e sentenciado à morte”, diz. “Fui para as ideias, o negócio ficou doido, quase morri.”
ReproduçãoA cúpula do PCC concordou com a saída de Renatinho da facção por “Fraqueza” O caso foi debatido por 12 horas no Tribunal do Crime até que os bandidos concordaram em dar aval para a saída. O motivo da exclusão de Renatinho ficou anotado no caderno da facção: “Fraqueza”.
Hoje, Renato César é pastor da Assembleia de Deus. Segundo afirma, ele ainda chegou a passar quatro anos na cadeia após deixar o PCC. No período, peregrinou por 12 presídios e batizou 322 presos. Desta vez, para a igreja evangélica.
“Tudo que eu passei foi propósito de Deus, entendi assim”, diz o pastor. Ao encerrar a conversa com o Metrópoles, fez questão de citar João capítulo 8 versículo 32: “E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará”.