Sobre dona Maria Lúcia: as memórias que guardo da minha avó
Venho sentindo consternação e o mais profundo afeto desde que a minha avó materna sofreu um AVC
atualizado
Compartilhar notícia
Sabem aquelas avós calorosas, que têm a casa cheia de florzinhas, cozinham bolos deliciosos e fazem as vontades dos netos? As minhas nunca foram assim. Viúvas há muitos anos, avarentas e com forte tendência a criar intrigas, elas deram (e ainda dão) muito trabalho. Pobres de meu pai e minha mãe, filhos únicos.
Para além de todos os conflitos familiares, porém, é consternação e o mais profundo afeto que venho sentindo desde que minha avó materna sofreu um AVC. Dona Maria Lúcia passa relativamente bem, embora esteja muito fraca, dependente, com dificuldade para andar e falar. Aquela mulher baixinha, forte, potente e ligeira parece, hoje, um passarinho machucado. E eu só consigo pensar em como sou grata por tudo o que vivemos, pelo tempo que não volta mais.
Era ela quem ficava comigo e com minha irmã na infância, enquanto meus pais trabalhavam. Rígida, costumava passar tarefas extras além do dever de casa, pois a gente tinha de “ser alguém na vida”. No papel de rascunho, rabiscava não sei quantas contas de multiplicação, com fatores de três, quatro dígitos. Suspeito que venha daí a minha imensa resistência à matemática.
Autonomista, houve uma época em que me dava remédio para abrir o apetite, sem consultar a minha mãe – afinal, eu era muito magra e ela sabia o que estava fazendo. Hoje, minha avó pesa menos de 40 quilos e ainda acha que as calorias faltam a mim, não a ela.
Minha vó fazia umas sopas bem gostosas (uma das poucas coisas que ela sabia fazer bem) e colocava uma barra de ferro dentro da panela, para prevenir anemia (ainda quero descobrir a evidência científica dessa prática). Carola, arrastava a gente para a igreja sempre que podia. Ainda esses dias, ao observar a mim e minha mãe dar boa-noite e virar para o lado, perguntou, com tom de reprovação: “Vocês não fazem nem o sinal da cruz antes de dormir?! Suas comunistas!”.
Foi minha avó que me ensinou a ler as horas no relógio de ponteiro. Ao ver como eu gostava de ler e escrever, passou a me chamar de “meu Mário Quintana”, obviamente um exagero, embora bonitíssimo.
Não era dada a rompantes de amor extremo, mas volta e meia nos puxava para perto, eu e minha irmã, abraçando e beijando, nos chamando de piccinina – pequenina, em dialeto italiano. Fazia isso mesmo depois de termos ganhado muitos centímetros a mais que ela.
Na última semana, enquanto eu ajudava a minha mãe a esvaziar armários e revirar gavetas, preparando a mudança de minha avó para Porto Alegre, essas e outras tantas memórias ficaram vivas. Deu saudade de vê-la forte, temperamental e implicante – embora minha mãe tenha certeza que essas duas últimas características não se perderam com o AVC. Deu saudade de mim mesma piccinina, dos dias frios, de ver os panos de prato quarando ao sol, de ouvir o sinal tocando no colégio.
A vida é assim mesmo, todos nós sabemos. O tempo passa, o cotidiano de antes se perde, vira história. Algumas coisas permanecem, é claro. Como a vontade da minha avó de aproveitar a minha presença para fazer a sobrancelha, mesmo se recuperando do AVC. E ainda me cobrar: “Arranca tudo!”. Até aqueles pelos esparsos e grossos, que nascem insistentemente no queixo e que eu acabei deixando passar agora, da última vez.
Não se preocupe, vó, volto em breve para fazer o serviço direito e te ouvir cantar a canção em dialeto que eu adoro:
Quel mazzolin di fiori che vien da la montagna,
quel mazzolin di fiori che vien da la montagna.
e guarda ben che non si bagna che lo voglio regalar
e guarda ben che non si bagna che lo voglio regalar