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Não, a episiotomia não é só um “piquezinho”

Uma pesquisa indicou: 53,5% das mulheres que tiveram parto normal passaram pelo procedimento que corta a região entre a vagina e o ânus

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1 de 1 gynecological equipment use for treatment gynecological disease - Foto: iStock

Não lembro exatamente quando ouvi falar, pela primeira vez, da episiotomia – corte feito na região entre a vagina e o ânus durante o parto normal.

Mas, com certeza, foi em uma conversa com minha mãe, na qual ela defendeu o que entendia, à época, ser o procedimento. “É só um piquezinho”, falou. Ao ver meu espanto, ela emendou: “Dizem que a relação sexual fica ainda melhor depois”.

O tempo passou, eu engravidei do meu primeiro filho e entrei para o mundo da humanização do parto. Os ativistas do movimento buscam valorizar a autonomia feminina na hora do nascimento, com base em evidências científicas e no respeito à fisiologia do corpo da mulher.

Entre os diversos temas defendidos por essas equipes, está a não realização da episiotomia, a menos que ela seja realmente necessária. Tive sorte: em dois partos, nada de “piquezinho” – mas não é a realidade da maioria das brasileiras.

Não há uma estimativa nacional sobre a realização do procedimento, mas a pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada em 20122 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Ministério da Saúde (MS), indicou: 53,5% das mulheres que tiveram parto normal passaram pela episiotomia.

“Já chegamos a quase 90% e vamos diminuindo conforme os médicos se convencem, muito vagarosamente, das evidências produzidas desde os anos 1980”, diz a obstetriz Ana Cristina Duarte, uma das maiores referências do país no campo da humanização.

A empresária Yohanna Cordeiro, 25 anos, passou pelo procedimento há seis anos, no nascimento da primeira filha. “Avisei ao meu médico que não queria ser cortada. Como eu estava anestesiada, não senti nada. Mas, na hora da sutura, questionei se houve laceração. E ele confirmou, havia feito um ‘piquezinho’”, lembra. Os pontos demoraram a cair, conta Yohanna, e ela sentiu ardor ao urinar durante diversos meses, além de ter parado as relações sexuais por um ano.

Com a nutricionista Fiama Borges, 25, nem o plano de parto proibindo a episiotomia impediu o procedimento. “Quando atingi 10 centímetros de dilatação, a médica plantonista iniciou uma discussão. Dizia que precisava fazer, pois meu bebê era grande – e ele não era”, lembra, sobre o nascimento do filho, hoje com 9 meses. “Na maternidade, nenhuma mulher está a fim de discutir nada, estamos vulneráveis, por isso, muitas, assim como eu, acabam cedendo à pressão”, opina.

Riscos
Ana Cristina explica que o uso indiscriminado desse procedimento aumenta a frequência de hemorragia e a dor no pós-parto. Também pode ser uma causa de incontinência urinária a longo prazo e de desconforto durante a atividade sexual nos meses seguintes ao nascimento do bebê. “Embora tudo isso possa acontecer nos grupos com episiotomia restrita, é muito mais comum nos com episiotomia de rotina”, esclarece ela, que coordena o Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama) e o Simpósio Internacional de Assistência ao Parto (Siaparto).

Desde 1996, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu que, no máximo, 10% dos partos normais podem ter episiotomia. Nas equipes humanizadas, o índice varia entre zero e 5%, segundo Ana Cristina.

Se é tão ruim e se a OMS faz ressalvas, por que o procedimento ainda é tão difundido no Brasil?

A obstetriz elenca duas principais razões para isso: a incredulidade de boa parte dos profissionais de saúde nas evidências científicas e a falta de atualização dos currículos nas faculdades. “É extremamente raro um médico sair da residência tendo visto por horas seguidas um parto natural sem intervenções. O centro obstétrico clássico brasileiro é projetado para que o nascimento de um bebê se pareça com uma cirurgia”, observa a especialista.

Outra causa é o machismo presente na assistência obstétrica. “O conceito de ‘preservar o playground do marido’ ainda é bastante difundindo. Já ouvi essa fala mais de uma vez”, lamenta.

No Brasil, a realização não autorizada do procedimento nunca acarretou em condenação do médico ou da equipe de saúde. Mas, Ana Cristina acredita que isso é uma questão de tempo. Nos Estados Unidos, em 2016, uma mulher do Alabama obteve indenização de US$ 16 milhões do hospital onde deu à luz por ter sido cortada contra a sua vontade.

Ana Cristina recomenda às mulheres que se municiem com informação. “A melhor forma de se proteger [contra procedimentos não desejados] é participar de grupos e fazer pesquisas sobre serviços de saúde com menores taxas de episiotomia”, recomenda. Também é importante questionar o médico sobre a frequência do “piquezinho” e buscar, se possível, equipes humanizadas ou adeptas do parto natural.

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