atualizado
Em outros tempos, a cena de um baiano puxando um trio elétrico, poucos dias após o fim de fevereiro, remeteria ao Carnaval. A saudosa lembrança, contudo, nada tem a ver com a próxima aparição pública de Caetano Veloso.
Desta vez, a imagem será longe da já cantada Praça Castro Alves, das batidas do Olodum. Nada também de dendê.
O criador do Tropicalismo troca a capital baiana por Brasília. A Avenida 7 de Setembro pela Esplanada dos Ministérios. E o sorriso da multidão para a revolta no coração.
Caetano lidera, no próximo dia 9 de março, uma grande manifestação artística contra o chamado “combo da destruição”, um pacote de projetos de lei de interesse do governo federal que deve ser analisado pelo Senado Federal.
Os textos estão em estágio avançado na tramitação e flexibilizam, por exemplo, o rigor sobre a proteção da Amazônia, a liberação desenfreada do uso de agrotóxicos e, também, riscos para áreas destinadas exclusivamente para povos indígenas.
O novo bloco do baiano será formado por artistas, ativistas e inúmeros militantes que acompanham com preocupação a chamada “boiada” que pode ser irreversível se aprovada pelos congressistas.
Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, Caetano Veloso também revela quando começou a pensar “de forma racional” nas questões ambientais — no revolucionário ano de 1968. Para o autor de tantas belas canções sobre a natureza que nos rodeia e envolve, como Gema e Luz do Sol, o chamado “combo da destruição” representa “uma ameaça à vida”.
A preocupação com vida natural é algo que tem mexido com Caetano há tempos e vem se intensificando nos últimos anos. Em 2020, no início da pandemia de Covid-19, o artista lançou uma série de encontros musicais gravados uma temporada antes, em show gratuito no Circo Voador (RJ), para comemorar o Dia do Meio Ambiente (5 de junho). Não por acaso, o projeto trouxe como ação concreta o lançamento do app da 342Amazônia, plataforma ativista que tem Paula Lavigne, companheira do artista, como uma das principais idealizadoras.
Leia a entrevista completa:
Caetano, várias músicas suas tocam poeticamente em questões ambientais, como Gema, Luz do Sol, Um Índio. Consegue localizar, na sua carreira, quando teve esse despertar para temas relacionados ao meio ambiente?
A primeira vez que pensei na questão de forma racional foi quando li, em 1968, o livro de Claude Lévi-Strauss Tristes Trópicos. Lá tem uma reflexão sobre os mares estarem se enchendo de lixo produzido por humanos – e uma visão pessimista da enormidade da população humana no planeta.
Você e tantos artistas da sua geração viveram intensamente o período de resistência à ditadura militar. Vê no ativismo ambiental talvez uma espécie de luta primordial, pela nossa própria sobrevivência? De que maneira a classe artística, nesse mundo atual de comunicação tão fragmentada, pode ajudar a sistematizar e propagar essas preocupações?
O tema é de tal modo abrangente e inescapável que a adesão ao ativismo referente a ele pode servir até de fuga de questões políticas. Muitas vezes parece coisa sublime. Talvez exatamente por ser primordial. Os artistas, que lidam com o sublime, tendem a tomar a causa ambiental como uma causa sagrada e acima dos caminhos políticos, até mesmo aqueles que podem ser eficazes para o cuidado com o planeta.
Na sua avaliação, qual será o impacto do chamado “combo da destruição”, o pacote de projetos de lei defendidos pelo governo federal, para a população brasileira e, também, para as gerações futuras?
Esse combo é uma ameaça à vida. É uma emergência política, prática, pragmática. Temos de nos posicionar claramente contra ele.
Caetano, o passado recente mostra um Congresso Nacional insensível a pressões populares em votações de temas polêmicos. Como o ato convocado por artistas e movimentos sociais para o próximo dia 9 de março pretende lidar com essa resiliência dos políticos? Acha que dá para impedir o que a oposição ao governo trata como “combo da destruição”?
A política profissional está em um dos seus piores momentos na história. Essa teimosia cínica de grupos que ocupam o Congresso é aterradora. Devemos advertir a população quanto aos perigos que corremos e lutar para remodelar a cena política brasileira. A insensibilidade de parte do Congresso não é invencível nem inabalável. Devemos lutar.
A pandemia e a sensação de que o impeachment de Bolsonaro ficou praticamente impossível deu certa tranquilidade ao governo, as ruas ficaram vazias. Esse ato pode significar uma retomada na mobilização? O que espera deste ano em relação à resistência a Bolsonaro?
O futuro próximo é difícil de se interpretar. Teremos barreiras pela frente. Mas não devemos deixar de agir por falta de certeza nos conseguimentos.
A agressividade que o secretário especial de Cultura, Mario Frias, dedica aos artistas não alinhados ao governo ajudou a mobilizar essa reação da classe artística?
Quando pensei em fazer algo público a respeito dos PLs de agrotóxico, os afrouxamentos de restrição ao garimpo e todo o conjunto de ações do poder público que ameaçam o equilíbrio ecológico, não pensei nas coisas que o secretário especial de cultura diz. Li ou ouvi várias grosserias referentes à criação e divulgação da arte. Isso também é inaceitável. Mas a questão ambiental é muito mais importante.
A escalada dessa tensão resultou numa discussão recente entre a cantora Anitta e o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Na sua opinião, sobrou coragem para Anitta ou falta posicionamento de outros ídolos brasileiros?
O tweet do ex-ministro Salles é grosseiro e errado. Ele vem com a expressão “Lei Rouanet”, que já é um mito entre os ingênuos apoiadores do governo de plantão. Essa lei, criada no governo Collor (contra quem votei nos dois turnos), veio do esforço de Sergio Paulo Rouanet para tentar salvar um governo que tinha sido desastroso para a área cultural, tendo destruído a produção de cinema no Brasil. Pessoalmente, nunca dependi dessa lei. E sempre soube que ela deve ser bem interpretada e bem usada. Um governo honesto e elegante a melhoraria e faria jus ao nome de quem a criou. Ou a rejeitaria por encontrar formas de incentivo mais eficazes. Não sou afeito a contas e finanças, mas sei que a lei foi criada com bons propósitos. Admiro muito Anitta e em nada admiro as ideias, falas, atos e estilo do ex-ministro Salles.
É ano eleitoral. Acha que é possível o atual governo reabrir canais de diálogo com segmentos como o dos artistas? A saída de Frias poderia ajudar nisso?
Acho que, sendo ano eleitoral, o que temos de fazer é derrubar esse governo que, entre outras coisas, pôs Salles e Frias lá.
Em 1969, no momento mais duro da Ditadura Militar, você foi preso e obrigado a buscar o exílio. Vê paralelos entre aquele momento e o comportamento do atual governo?
Gil e eu fomos presos em dezembro de 1968, logo após o AI-5. Ficamos na cadeia até fevereiro de 1969. O atual governo nasceu de uma revisão absurda da história da ditadura militar. O sujeito que veio a se tornar presidente dedicou seu voto favorável ao impeachment de Dilma ao torturador Ustra. Seu vice disse, em entrevista televisiva pré-eleição, que Geisel foi único que errou. Entendi que ele detesta o projeto de abertura que, confirmando uma profecia de Glauber Rocha, Geisel pôs em prática. Não gosto nem de Delfim dizendo que votaria de novo pelo AI-5. Sou democrata, embora não mais um liberal democrata. Acho que o Brasil tem de tornar os atos do poder público igualitários e criativos e parar com o deslumbre pelas forças privadas. Precisa curar-se do delírio neoliberal. O governo que temos agora não tem paralelo com a ditadura, tem saudade dela, paixão pela deformação do poder público. É o avesso do que devemos ser.
Qual a sua expectativa para as eleições deste ano?
Parece provável que Bolsonaro perca. Mas não é certo. De todo modo, mesmo que ele saia, a sociedade brasileira precisa mostrar-se mais forte do que a neurose coletiva que alimenta o bolsonarismo.