Médica brasiliense escreve diário para o pai que morreu há 12 anos
Após perder o pai, a mãe e o irmão, a anestesista Liliana Andrade se inscreveu no Médico Sem Fronteiras e passou a escrever cartas para o pai
atualizado
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O ano de 2004 revirou a vida de Liliana Andrade. A médica anestesista, então com 29 anos, perdeu o pai, o oficial da Marinha José de Ribamar, após uma luta de dois anos contra um câncer no esôfago. A morte do patriarca não trouxe apenas tristeza para a família, mas também uma realidade dolorosa.
Quando ainda estavam se recuperando, um ano após a perda, a médica enterrou a mãe Maria Auxiliadora também vítima de um tumor fulminante. Para aumentar ainda mais a dor, poucos meses depois, perdeu o irmão caçula Daniel de maneira inesperada. Em menos de dois anos, a família Andrade estava desfeita. Liliana passou a dividir o sobrenome apenas com a irmã do meio.
Em busca de um novo sentido para a vida, decidiu fazer mais pelo próximo como uma forma de manter viva a memória da família, que tanto a ensinou sobre generosidade e dedicação. Passou a assistir crianças no Hospital da Criança de Brasília José de Alencar e exercitar caridade nos mais distintos projetos sociais que lidera.
Quando passamos por problemas difíceis, temos duas opções: nos entregamos ou tentamos canalizar esta dor numa coisa positiva. Isso é o que fiz
Liliana Andrade
Mas em 2010 lançou-se em uma viagem nunca antes vivida. Inscreveu-se no Médicos Sem Fronteiras e embarcou em uma missão com destino a Port au Prince, no Haiti, para zelar pelas vítimas da guerra. “Desafio é a palavra com que defino meu trabalho com a instituição. É outra cultura, idioma, clima, comida, acomodações. Você sai da sua zona de conforto totalmente. Mas, sem dúvida, o maior desafio é o medo. Mas sempre penso que os meus temores devem ser menores do que a necessidade daquelas pessoas”, resume a médica.
Por conta das situações aterrorizantes que presenciou, passou a sonhar com sua família, onde conversava com eles sobre as experiências vividas. Com a saudade de contar sobre o seu dia a dia ao pai, resolveu escrever. Em um diário, destinado a ele, narra os desafios vividos, as suas orações, os pensamentos e as superações.
Os cadernos foram comprados na Livraria Cultura, que gostava de frequentar com o pai. Sempre começa a preenchê-los pela data e pelo local onde senta para escrever. “Mais do que conversar, costumo sonhar com ele quando estou em missão. Na verdade, sonho muito com os três (meus pais e meu irmão). Eu os sinto mais perto de mim, como se estivessem me protegendo”, conta ela.
Após vencer seus temores em meses de trabalho voluntário, colecionando experiências em Paoua, República Centro Africana (2010); Hangu, Paquistão (2010); Aweil, Sudão (2011); Peshawar, Paquistão (2011); Faixa de Gaza, Palestina (2012) e Khameer, Yemen (2013), passou a dedicar suas cartas a mais uma pessoa amada.
O destinatário era Diogo Ataide Leite Campos, seu marido desde 24 de setembro de 2015. Compartilhava suas emoções e o desafio de seguir em profunda doação ao próximo, até que, em uma carta, disse sim ao pedido de namoro com uma montagem de diversos OUI – sim em francês – recortados de revistas enquanto prestava relato de sua missão no centro do Médico Sem Fronteiras, em Paris.
Diogo se identifica com a prática de caridade de Liliana e diz ter nela seu grande anjo. Admira sua esposa e oferece coragem pra que ela siga a desbravar zonas de violência, como a Faixa de Gaza, na Palestina (2014), seu maior desafio, e Khost, no Afeganistão, em junho de 2016.
Hoje, aos 41 anos e nove missões no currículo, já preencheu nove cadernos — cada um sobre um dos locais por onde passou. Todos são de capa dura, menos o último. No aeroporto rumo ao Afeganistão comprou um modelo de couro, quase artesanal. Por isso, para ela, esse é o mais emblemático.
“Em minhas cartas ao meu pai, sempre comecei escrevendo a data e o exato lugar onde estava, fosse num aeroporto em Nairóbi, num centro cirúrgico na Faixa de Gaza ou numa maternidade no Afeganistão”, relembra ela, que ainda não pensa em publicá-las.
Religiosa e devota de São Bento, tendo se casado no mosteiro que leva o nome do santo, em Brasília, diz por muitas vezes ter sonhado com o pai e sentir sua presença, “como se estivéssemos fazendo uma missão juntos”. Emocionada, se enche de alegria ao lembrar.
Pai, tenho certeza, cedo ou tarde, nós também vamos nos reencontrar e irei te agradecer por ter me dado a maior lição que um pai pode dar a seus filhos – o Caminho do amor! Te amo além…
trecho do diário
Feliz dia dos pais.