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Uma passagem por Buenos Aires e pela instigante literatura argentina

A cidade abriga a maior quantidade de livrarias por habitante, em todo o mundo

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El Ateneo Grand Splendid bookshop – Buenos Aires, Argentina
1 de 1 El Ateneo Grand Splendid bookshop – Buenos Aires, Argentina - Foto: iStock

Sim, estar em Buenos Aires é uma forma de se aproximar dos livros. Na condição de turista, deslumbrar-se com El Ateneo Grand Splendid ou esparramar-se pelo excesso exposto ao longo da Calle Corrientes. Em Palermo, acomodar-se entre as madeiras da Eterna Cadencia ou da Libros del Pasaje, que um dia já foi Boutique del Libro e recebia com frequência os bigodes reluzentes de Rodolfo Enrique Fogwill (1941–2010), autor do magistral Os Pichicegos (Casa da Palavra, 144 páginas).

O viajante volta à capital argentina para ainda e sempre reencontrar sua própria ficção. O cheiro de incenso nas ruas, a empanada com carne cortada a cuchillo, o zoológico fechado para a tristeza literária de três tigres, duas medialunas da promoção com café solo, os conezinhos de doce de leite derretidos na boca. Carlos, o porteiro que me chama de “Sérrio, amigo meu”, classifica como “déjà-vu” o que estou sentindo. Um proustiano peronista, fanático pelo Boca Juniors.

Na capa da Ñ, a revista de cultura (semanal, 40 páginas) do jornal Clarín, a foto do norte-americano John Cheever reflete os novos volumes em destaque nas prateleiras: contos, cartas, diários. Também acaba de sair por lá o volumoso 4321, romance de Paul Auster. O campo literário portenho incorpora ofertas do mercado mundial, mas também oferece pérolas locais aos interessados em ir além do folhear de páginas, algo posterior à fantasia erudita de Jorge Luis Borges.

Paremos um pouco entre os vivos. Já mencionado neste espaço, Alan Pauls está nas livrarias com um glossário sobre a sua vida de leitor: Trance. Quem leu os textos sobre a experiência de ir à praia, em A Vida Descalço (Cosac Naify, 96 páginas), sabe do que é capaz uma escritura alongada e cheia de gavetas, sem perder nunca a elegância complexa da frase. Esse “transe” hipnótico, parte da Colección Lectores da pequena editora Ampersand, pede tradução urgente.

Um dos verbetes está dedicado a Ricardo Piglia (1941–2017). Os três volumes de Los Diarios de Emilio Renzi se destacam nas livrarias, tanto as mais comerciais como as de viés alternativo. No Brasil, apenas o primeiro tomo está disponível. Na breve categorização, Pauls revela ter em Piglia um primeiro leitor sussurrado: “Sem opinar, quase sem tocar o que lê, simplesmente sublinhando, assinalando, repetindo coisas que ele escreveu, e que de repente, ao ouvi-las assim, parecem brilhar e se abrir”.

Na mais caótica e completa das livrarias, Norte, desvio rumo a outra leitura de deliciosa recordação. Finalmente encontro Zona Saer, ensaios de Beatriz Sarlo sobre o autor de Ninguém Nada Nunca, entre outros monumentos. E que prazer entrar no universo de Juan José Saer (1937–2005) pelas leituras de sua maior defensora. Ela mescla biografia e obra para nos dar a conhecer uma ficção escrita “a partir da poesia”. Nunca “esteve na moda” e se fez com “a repetição, a digressão, as antecipações”.

Saer, que esteve em Brasília em 2003, divide as preferências com Julio Cortázar e Manuel Puig na eleição para “maior escritor argentino da segunda metade do século 20” (depois de Borges, por supuesto). O melhor texto de entrada na obra, segundo Sarlo, seria Cicatrices, não lançado por aqui. Assim sendo, recomenda-se o póstumo O Grande (Companhia das Letras, 416 páginas). O fato de ter ficado inacabado confere charme ao romance, em torno do reencontro de um intelectual com amigos em sua pequena cidade natal.

Quem assistiu ao filme O Cidadão Ilustre, dirigido por Mariano Cohn e Gastón Duprat, há de fazer hipotéticas conexões do protagonista com a trajetória de Saer. A ida do escritor ainda jovem para a Europa (França, especificamente), o reconhecimento internacional (menor do que o do personagem da tela), sobretudo a recuperação da tinta local para ir muito além do pitoresco. A literatura e o cinema promovem passeios entre infância e maturidade, impostura e verdade, artesanato e arte, entre o caçador e a caça.

Buenos Aires significou pouco para Juan José Saer. Para o leitor de passagem, no entanto, a cidade com maior quantidade de livrarias por habitante, em todo o mundo (25 a cada 100 mil), permite esse e outros reencontros. Fogwill, Pauls, Piglia – e Cesar Aira, Martín Kohan, Sergio Chejfec, Matilde Sanchez, Washington Cucurto, Anna Kazumi Stahl. No café La Gruta, esquina de Arenales com Uriburu, o espresso duplo envolve o olhar através dos vidros que dão a ver o movimento na rua. E faz sobressair a sensação de encontrar um lar entre pessoas e livros.

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