Trilogia propõe iniciação ao romance policial
Criação de Flávio Carneiro, a charmosa dupla de detetives André e Gordo convida os leitores aos encantos da ficção policial
atualizado
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Depois de reencontrar a dupla de detetives André e Gordo em coletânea de contos comentada aqui, resolvi voltar aos romances policiais do goiano-carioca Flávio Carneiro (1962). Na verdade, reler os dois primeiros títulos e ler o último, que tinha ficado como alvo na estante de casa por tempo demais. Foi uma boa aventura.
O Campeonato (2002), O Livro Roubado (2013) e Um Romance Perigoso (2017) formam trilogia que pode ser encarada como iniciação ao universo da literatura policial, com direito a mecanismos narrativos e clichês próprios ao gênero. Comer, beber, racionar, agir (com timidez), desvendar.
Apaixonados por Edgar Allan Poe, Dashiell Hammett e companhia, os amigos André e Gordo tornam-se detetives por acaso. André era leitor compulsivo e, por isso, desempregado. Gordo é dono de charmoso sebo. Não à toa, as histórias estão tramadas dentro de outras – clássicas e classudas.
Porque o que importa em primeiro lugar é sempre a leitura. Carneiro é especialista no assunto, ensaísta reconhecido nesse campo. Aqui, oferece ao leitor lições literárias em repetidas refeições às mesas de bares populares do Rio de Janeiro, regadas a muito chope gelado.
Em se tratando de policial na capital fluminense, não poderia faltar Rubem Fonseca, mestre na arte de narrar por essas ruas. O autor de Bufo & Spallanzani aparece como referência incontornável nas conversas dos dois leitores-protagonistas, estabelecendo uma linhagem.
Assim como Fonseca, Flávio Carneiro tem ótimo tino para os diálogos. E na fluência dos papos a continuidade constitui outro mérito das narrativas. Os fios nunca ficam soltos, entrelaçados inclusive de livro em livro. Há uma perspectiva biográfica em torno dos protagonistas que se esparrama nos três volumes.
Ainda colado em estratégia fonsequiana, o enciclopedismo dá as caras. A literatura se dispõe a ensinar. Sobre alquimia e alquimistas, por exemplo, em O livro roubado. Sobre a própria história do romance policial, com a presença de autores, personagens, motes e tramas.
Nesse mundo de reflexão e ação policial envolto por questões literárias, o leitor mais experiente pode perceber alguma, diria, ingenuidade didático-pedagógica. Estamos diante de romances com vontade de conquistar esteticamente novos adeptos para o fã-clube do policial.
André e Gordo não deixam a desejar: convidam, sem firulas, à especulação, tendo a paisagem do centro e da zona sul cariocas como cenários principais. Na esteira da busca pela resolução de enigmas, conquistamos terreno nestas páginas de iniciação ao sabor misterioso de Agatha Christie ou no estilo norte-americano de ação detetivesca à moda Raymond Chandler.
No melhor dos três livros, justamente o último – Um romance perigoso –, Flávio Carneiro cria serial killer de escritores de autoajuda, plot divertido e de alta potência irônica. Inventa investigação particular paralela à busca oficial da polícia, traçada por leitores apaixonados por vida e obra de Hammett e seu Sam Spade.
Com André (e suas mulheres) e Gordo (e sua fome insaciável), Carneiro entra no centro do mercado editorial para discutir autoria e gênero, livro e marketing, escritor e celebridade, literatura e entretenimento, biografia e realidade. Parece muito? Que nada: tudo bem tramadinho, sem excessos.
Na discreta elegância do autor (ilustre torcedor do Botafogo), a literatura policial brasileira se expande em despretensiosa leveza. Um corpo, um livro, uma palavra que remete ao próximo assassinato. É assim mesmo que a cena se faz. Sem tirar o olho da mira descritiva, atenta aos detalhes e com a possibilidade de outras sequências.