Tentar proibir um livro de circular é cutucar desejos
O colunista suspeita que ao vocacionado censor falta leitura geral e irrestrita, o que o impede de ver muito além do próprio umbigo moral
atualizado
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(1) Apenas o prefeito da cidade do Rio de Janeiro não sabe disto: proibições são eficazes. Despertam o desejo, atiçam a curiosidade. Os dedos coçam. As vendas se multiplicam. No “não”, a Bienal do Livro fez a festa.
(2) Uma frase de Henry Miller para o senhor Marcelo Crivella: “Devemos ler para oferecer à nossa alma a oportunidade da luxúria”. Assim: senta, relaxa e goza o prazer da leitura literária. Comece por Sexus, Plexus, Nexus.
(3) Mas quantos volumes de ficção terá lido o imperfeito governante? Poucos, suponho. Se tivesse se dado ao prazer, haveria algum sentido de liberdade. Aguçado, caminhando sem destino entre os pilotis da vida, solto, feliz. Só que não.
(4) A vontade é fazer todos se submeterem a uma lógica particular, por meio de carga autoritária. Nada menos imaginário, nada menos literário. Com imposições unívocas, não se protege ninguém de si mesmo ou do mundo, com ou sem metáforas. Em tempos de hiperconexão, muito menos, bem menos.
(5) A censura não preserva a criança e a família, prefeito. Ela fere. Porque comporta pedagogia de violência, em que se quer demonstrar, no muque do poder, a possibilidade de exterminar o outro: sufocar, apagar, calar. Por que proibir quando é possível (e passível de, se me permitem o jogo interno com o artigo) apreciar os anseios de todos?
(6) Sobre o seio familiar ideal, intocado pela cultura, recordo a primeira frase de Anna Kariênina, do russo Tolstói, repetida ad nauseam: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Atira a primeira pedra moral quem conhece uma família feliz pra valer. Eu também não.
(7) O bom é saber que o censor sempre dá tiro no próprio pé, ainda que esteja mirando o eleitor ultraconservador, como supõem renomados analistas políticos. Até quando o eleitor surfará nessa onda, eis a questão. Pelas demonstrações públicas da semana passada, a força da arrebentação não poupa o suposto salva-vidas. Há risco de afogamento íntimo e coletivo.
(8) Quanto tempo dura esse estado de retrocesso nas conquistas do comportamento individual? Quem, em sã consciência, comanda uma apreensão de livros em pleno 2019? Onde se afirmou que a liberdade do liberalismo tem fronteiras? Quando vamos expandir e não reprimir a leitura? O que o Estado tem a dizer sobre um projeto perene de educação? Não faltam interrogações.
(9) É verdade, como disse o físico alemão Georg Christoph Lichtenberg (1742-1799), que, “quando o som do choque entre um livro e uma cabeça é oco, o livro nem sempre é o culpado”. O prefeito pode, assim, ser perdoado. Podemos mesmo agradecer a ele o fato de, por meio da discussão que começou nas HQs, ter colocado o objeto livro em evidência quando estamos no mundo que privilegia outros suportes, como este no qual você está agora, caro leitor, cara leitora.
(10) E que as esquerdas e os movimentos das minorias entendam, desta vez e por todas, que a recíproca é verdadeira. Nada de aventar a hipótese de proibir a livre circulação das ideias do campo contrário. A via será sempre democrática, de mão dupla. A liberdade também cabe a quem pensa diferente da gente. Marcelo Crivella e seus pares têm o direito garantido de comprar e ler seus volumes pastorais. Ou pastoris, como queiram.
(11) A literatura, vida posta em movimento e ruptura, é complexa, de múltipla compreensão. Não se submete com facilidade à crítica literária do Executivo e do Jurídico de plantão, não se contenta com julgamentos vulgares baseados na ortodoxia religiosa ou na letra esotérica da lei. E um livro (ficção ou não-ficção) posto em circulação pertence a todos, não se esgota em idiossincrasias de grupos ou pessoas.
(12) Só uma desordem possível agora: enumerar ideias e brincar com as palavras. Fora da tosca realidade de certas decisões e dentro da estrutura viva da linguagem, a vida anda bem mais elegante e interessante. Portanto, uma dica gratuita, livre e com mais dois pontos cruciais: aos livros e aos beijos-e-abraços.