Responda com sinceridade: qual o livro da sua vida?
O colunista elenca três obras, todas de uma fase de formação como leitor, com destaque para o romance O Apanhador no Campo de Centeio
atualizado
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Participei da gênese da exposição Eu Leitor, em cartaz na Biblioteca Nacional. E tenho acompanhado com assiduidade e dedicação as conversas sobre O Livro da Minha Vida, travadas ao redor da mesa de um chapeleiro maluco, ideia encantadora do meu amigo Luiz Carreira em parceria com os irmãos Adriano e Fernando Guimarães. Assim, a pergunta surge de modo natural, logo de cara limpa: qual o livro da sua vida?
Qual o livro da minha vida? O malandro escapa pela tangente e responde com outra pergunta: pode ser mais de um? Os livros, no plural? Facilita a tarefa de seleção. Sem a obrigação do único, por que não uma pequena lista? Tipo top três. Se a ideia é viver outras vidas ao ler, por que fechar questão numa solitária narrativa? Afinal, somos diferentes em diversas fases da inevitável cronologia. Vamos mudando também no papel de leitores.
O livro que me trouxe para dentro de uma existência paralela foi A Náusea, de Jean-Paul Sartre. Me transformou num adolescente insuportável, para mim mesmo e para os outros. Inferno geral. Nunca mais voltei ao romance do francês, talvez por ter desistido de suas ideias há muito tempo. Tudo parado em algum ponto obscuro da história. Foi importantíssimo, mas passou.
O livro que me fez leitor pra valer foi toda a obra de Rubem Fonseca. De tardes secas sob Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, na pequena biblioteca da 108/308 Sul, às porradas na cara de O Cobrador, o escritor mineiro-carioca descortinou um admirável mundo novo: cruel, adulto, curioso, violento, sexual, brasileiro. A dívida é impagável, não há dúvida. E costuma levar o contribuinte a ficar enrolado com o SPC, para sempre.
Mas o volume que talvez seja o livro de fato da minha vida chama-se O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger. Nada extraordinário ou exclusivista, portanto. Lançado em 1951, O Apanhador encantou gerações de leitores norte-americanos e em todo o mundo. É uma ficção popular. Ganhou ares místicos depois da reclusão de seu autor. Ainda vende muito e sem parar.
Na história do jovem Holden Caulfield, a informalidade se transforma em grandeza literária, da primeira à última linha. Narrado em primeira pessoa, o romance está um ponto abaixo no tom que pode dificultar o contato, por exemplo, com a literatura de F. Scott Fitzgerald, para ficar num parente literário próximo.
Holden conta em 26 capítulos (e um fim de semana) a confusão de seus 17 anos depois de ser expulso da escola e ter de voltar a Nova York para encontrar os pais. Esse texto de rebelião confere ao leitor esperança renovada a partir de uma visão extremamente crítica de tudo e de todos, percepção muito bem calculada por seu autor. Holden acha tudo chato, falso, banal. Daí parece perguntar incessantemente: onde está a autenticidade das coisas? Há uma sábia vidência sussurrando uma resposta no ouvido do leitor, o itálico como traço de estilo fazendo a expressão ganhar repercussão acústica.
De vez em quando dá saudade e releio O Apanhador para reencontrar meu amigo Holden Caulfield e, assim, me sentir mais próximo da sinceridade. Não se deixe enganar, não banque o bobo, está tudo mais ou menos dominado. Ele diz o que precisa ser dito, sem tergiversar. Se o mundo não está preparado para isso, dane-se o mundo, ora bolas. Implica e complica.
No original ou na famosa tradução a seis mãos de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster, Salinger cria um narrador capaz de ver e descrever o que tinha acontecido e o que acontecerá com as pessoas-personagens que cruzam seu caminho e de dizer isso ao leitor entre a amargura e a esperança. Não deixa de ser uma história de bem-humorada paranoia.
No beisebol, o apanhador (catcher, no original) é o jogador que, agachado, deve segurar a bola lançada pelo arremessador. No campo de centeio, é metáfora para não deixar as crianças seguirem rumo ao fim da inocência. Antes do abismo, Salinger e Holden me fazem dar gargalhadas bem gargalhantes, se essa palavra existe, levam à tristeza das máscaras humanas e permitem sair da literatura para imaginar uma realidade menos encenada.
E você, leitora, leitor: qual o livro ou os livros da sua vida?