Os professores inesquecíveis e suas letras, palavras, frases
Vistos a certa distância, tendo o tempo transcorrido, os mediadores de palavras ganham contornos mais claros dentro da nebulosidade
atualizado
Compartilhar notícia
“Dayana, vamos viajar? Vamos viajar?!” Era assim que José Roberto da Silva começava ou emendava ou entoava suas aulas de literatura no longínquo ano de 1985, no colégio Leonardo da Vinci. A redação deste texto se faz atravessada pela notícia da morte de Jota, como era conhecido entre nós, meninos e meninas espantados com a novidade do primeiro ano do, então, Segundo Grau, com a novidade da literatura tomada por uma paixão irrefreável, perene, pulsante.
Dayana era colega de turma, e Jota (ou Zé, ou Zé Roberto, como leio agora na internet) a convidava a comer chocolates metafóricos, embalados pelos versos portugueses de Álvaro de Campos, apud Fernando Pessoa: “Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”. O professor de literatura morreu no dia 26 de julho, aos 73 anos de idade, devido a complicações derivadas de um AVC. Há um gosto amargo real na boca, feito de impulso e muita tristeza.
Em 23 de junho, tinha sido a partida da professora Maria Christina Diniz Leal (1935-2018) a deixar um sentimento estranho. Para onde vai toda a elegância da gramática de tardes sufocantes num ambiente sagrado qualquer da Universidade de Brasília? Existe lugar reservado para essas figuras que nos marcam entre o céu imaginário da ficção arqueado sobre o chão real da análise sintática? Onde estão Oswaldino Marques, Aglaêda Facó, Diana Bernardes? Cadê você, Ligia Cademartori?
O mundo anda chato demais. Correto demais. E vocês, entretanto, nos ensinaram a abrir livros para descobrir desatinos, delícias, delírios, 10 milhões de possibilidades de compreender a vida. Em manhãs de cigarros acesos (um no outro) e deitados ao piso da sala de aula em plena luz do dia, embarcamos na melancolia do mesmo Pessoa transfigurado nos famosos heterônimos. Em começos de noite quase etílica, fizemos a travessia do sertão ambíguo, chapado, deslumbrante.
Aprendemos a colocar vírgulas e crases nos lugares corretos, porque isso desatava um mundo novo de significados novos, ao alcance de todos. Comemos bolo inusitado com champanhe original ao som da mais nobre sinfonia numa jornada de Asa Norte. Cantamos juntos Roberto Carlos para impedir que o pedantismo de certa erudição tomasse conta de vez. Fomos estruturalistas e pós-modernos. Pensamos nas histórias, nos versos, nos discursos, nos trechos, nos fragmentos.
O livro e a literatura faziam seu percurso a partir da fala, da bibliografia, da menção (quem se importava com a nota?). Saíam da biblioteca, do sebo, da livraria, da própria estante. O medo constante era de que o volume não voltasse, ficasse ali emprestado para sempre. Em meio a essas idas e vindas, houve o delírio da biblioteca total e a ilusão de conhecer o suficiente. Houve a tentação de impor aos outros a nossa hóstia consagrada. Ainda bem que o presente não comporta tudo.
A experiência de viver, claro, nunca se compara com a de reviver. Vistos a certa distância, tendo o tempo transcorrido, os mediadores de palavras ganham contornos mais claros dentro da nebulosidade do esquecimento. A imagem que permanece é a do capoeirista Jota entrando de modo deliciosamente despojado na sala de aula da memória, cravando no quadro um círculo de giz, abrindo as portas deliciosas da Tabacaria.
Aquela viagem não terminou, Dayana e colegas do 1º F, seja lá onde vocês estiverem. Ela ofereceu a experiência de comer chocolates (de todos os tipos, tamanhos, procedências, cores, sabores) para sempre, mesmo que não sejamos nada, não possamos querer ser ou ter nada – à exceção de todos os sonhos do mundo: ao alcance da mão na poesia e na prosa. Seguimos em frente, em meio a tanta fumaça à esquerda e à direita, de olho no retrovisor da arte, esse lugar possível do improvável.