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No livro Esboço, Rachel Cusk entrega o que não promete

Em sua sutil precariedade, o ótimo romance (editora Todavia) mostra em dez capítulos como inventamos nossas próprias histórias pessoais

atualizado

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Rune Hellestad/Corbis via Getty Images
rachel cusk UK- Bailey’s Women’s Prize For Fiction in London
1 de 1 rachel cusk UK- Bailey’s Women’s Prize For Fiction in London - Foto: Rune Hellestad/Corbis via Getty Images

Primeiro de uma trilogia, Esboço, de Rachel Cusk, é extraordinário. Cá entre nós, satisfaz quase tudo o que a publicidade do romance anuncia (no próprio livro): “Transformou a literatura contemporânea” (mexeu com); “uma das grandes conquistas literárias do nosso tempo” (entre outras); “um feito estelar” (um pouco mais terreno).

Exageros sempre à parte, a obra da escritora canadense radicada na Inglaterra tira o leitor de casa para fazê-lo refletir em Atenas, na companhia de uma narradora que é escritora. Uma narradora elíptica, cujo nome aparece para os leitores já na reta final. A autoria se disfarça no propósito de deixar o interlocutor pensar, discursar, filosofar.

São vários os méritos deste Esboço, composto dentro dessa forma literária aberta à comunicação individual. Estamos diante de estrutura complexa com aparência de simplicidade. Cusk nos dá a mão generosa que balança o berço da civilização com compreensão rara dos seres humanos ocidentais. Passamos todos a falar grego (em inglês, of course).

A cada um dos dez capítulos-conversas, a intriga nasce na voz de um ou mais personagens que interagem com a narradora – levada, discretamente, a segundo plano. As histórias giram em torno de relações familiares traumáticas e contratos matrimoniais feitos, desfeitos e refeitos. Muito menos engraçado do que no bem-sucedido filme Casamento Grego, podem ter certeza.

A ordem aqui é da categoria do trágico e está imersa na linguagem do cotidiano contemporâneo. Cusk mescla com maestria as artes de narrar e descrever. A narradora descreve. As personagens narram. E isso misturado urde uma teoria muito potente a partir da constatação dos jogos de poder no drama ficcional à vida real. O leitor senta e escuta a vida de cada um: os observadores atentos da cena (delineada nos espaços urbanos e no mar grego), os interlocutores do outro e os ensaístas de si.

Ao contrário de muita coisa de pretensioso requinte literário, a experiência da leitura ocorre aqui numa frequência de, vamos dizer, felicidade narrativa. A gente se identifica, especula, reconhece, contrapõe. É provável sair das 188 páginas com sensação de quero mais, quero ouvir mais para ser levado a perceber com mais nitidez o que está à volta e dentro de mim. A literatura age, incomoda, permanece depois de encerrada.

Outra sacada de Cusk é partir do mundinho dos escritores (e candidatos a) para chegar ao universo dos leitores. O romance traz, então, reflexões sobre o próprio ato da escritura, mas isso se dá como parte importante da vida de todos e não apenas do pequeno grupo que se dedica à literatura. Sendo a narradora uma escritora, em viagem à capital grega para ministrar oficina de escrita criativa, as personagens são levadas a contar histórias e pensar sobre elas:

“Quando nos conhecemos, eu disse a você que considero o amor – o amor entre homem e mulher – o grande regenerador de felicidade, mas ele é também o grande regenerador de interesse. Ele talvez seja o que você chamaria de enredo – ele sorriu – e portanto, disse ele, apesar de todas as qualidades da minha terceira mulher, eu descobri que uma vida sem intriga, no fim das contas, não era uma vida que eu pudesse viver.”

Como conto quem eu sou? Como narro a minha própria história? Que versão de mim entrego aos outros, próximos e distantes? Rascunho (“esboço”) que já existe paradoxalmente como obra de arte acabada, o livro proporciona ao leitor uma versão, visões e verdades da narradora e de cada personagem. Não poderia ser diferente: as histórias procuram desfechos sem encontrar, imitações inacabadas da vida.

Há muito não me desgrudava de uma leitura como nas horas travadas em contato com este Esboço, publicado originalmente em 2014 e abertura da trilogia composta ainda por Trânsito (2016) e Kudos (2018), a serem lançados aqui. Cravada na instabilidade da areia, a linda concha na capa diz e resume muito. Estejamos atentos para escutar com atenção os burburinhos de quem está próximo, antes que uma onda venha e leve tudo embora.

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