Literatura de Fernanda Young reflete timidez e erotismo
A morte da escritora e roteirista no último domingo leva o colunista ao romance de estreia, Vergonha dos Pés, publicado em 1996
atualizado
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Até a notícia de sua morte, no último domingo (25/08/2019), Fernanda Young era uma figura midiática: imagem, voz, texto em comédias na tela, corpo nu em revista masculina. Ainda não tinha ido a seus livros. Dois ou três volumes estavam na estante, um ou dois haviam sido recomendados por leitoras refinadas (entusiasmadas sobretudo pelo erotismo), mas eu simplesmente não chegara até eles. Sim, a gente compra livros para não ler ou para ler em algum momento futuro.
Assim, com cuidado, retirei Vergonha dos Pés da poeira da prateleira. Romance de 1996, a estreia de Fernanda Young aos 26 anos. Foi uma forma de começar do zero, em tentativa de redenção. Na primeira história da jovem escritora, Ana é uma estudante de Letras que quer ser escritora. “Acreditava que, com determinação, acabaria por escrever bem”, diz o narrador sobre a protagonista. O destino estava sendo traçado, ainda que de modo um tanto titubeante.
Anuncia-se o repertório de um projeto artístico. Sem querer estabelecer relações autobiográficas diretas entre autora e personagem, ainda assim, é grande a tentação de ver Fernanda em Ana, cuja cabeça “é invadida compulsivamente por diversos pensamentos. Foi premiada com uma enorme capacidade de inventar histórias e ela tem prazer em se embrenhar na intimidade dos personagens”. Vergonha dos Pés é, de fato, metanarrativo, quase obrigação na metade dos anos 1990.
O romance tem um livro descrito dentro do livro, isto é, trama ficcional dentro da verdade em que se constitui. E gosta de debater o papel e o lugar do escritor na sociedade contemporânea. A história de Lívia (e Jonas), que corre paralela (para o leitor) e na cabeça da personagem-escritora, abre essa possibilidade de escapar dentro do que já é devaneio. Fernanda Young faz esse espelhamento com destreza, sobrepondo tempos narrativos sem solavancos.
O livro também anuncia o despudor com que a escritora encarava o processo de contar histórias. No drama do relacionamento com Jaime, desmonta hierarquias temáticas e traz o sexo para o centro da cena. O maior mérito da obra que abre caminho a uma trajetória posterior de 23 anos parece ser este: dizer o que precisa ser dito, do modo intenso como surge à primeira vista. Os pés são pequenos, mas precisam caminhar. Eu tenho vergonha, mas quero trepar.
Há, portanto, já neste começo, a iconoclastia que seria traço de Fernanda Young, feminista em guerra contra estereótipos do próprio feminismo, artista consciente do jogo performático do intelectual na esfera pública. Diria que soou verdadeira com o transcorrer dos anos, sempre tatuou no seu espectador (antes, ou agora, leitor) a marca de uma honestidade. Para isso, apostou na informal compreensão do público, abandonou preocupações com papéis preestabelecidos ao comportamento ideal do escritor. Muito por isso, a academia nunca a mirou com bons olhos, assim como Ana nunca se adapta ao insuportável mundo de salas, teorias, interpretações. E prefere namorar. E implicar. E pensar sobre si e sobre dois.
“Gargalhadas. A paixão, quando se cristaliza e se fortifica, perde qualquer constrangimento. Assume-se. Deslancha em situações quase ridículas, onde somente as duas pessoas em questão compreendem de fato o que se passa. E nada passa.” Tudo acontece quando autora e leitor, por fim, se encontram. A notícia do desaparecimento de uma escritora ainda em pleno voo fez os olhos percorrer em dois dias uma angústia literária deliciosamente inadequada, prestes e pronta para amadurecer.