Ficção policial: conheça as armas literárias do detetive Harry Bosch
Personagem do escritor Michael Connelly inspira a série de TV Bosch, da Amazon Prime Video
atualizado
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Foi preciso arrumar estantes para voltar a escrever sobre livros. Eles estavam por vários cantos da casa, numa desorganização de dar inveja à zaga da Arábia Saudita em dia de estreia. Também tive de tirar os olhos da pelota que cruza a tevê. Às armas, às armas, convocava Cristiano Ronaldo.
Restaurada a atenção nas letras impressas, reencontrei volumes esquecidos, autógrafos marcantes, orelhas dobradas. Folheei Tom Wolfe (1930-2018) e Philip Roth (1933-2018) em vida e morte. Pisquei para Hilda Hilst, homenageada deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Entre as obras à espera de leitura no criado-mudo, recorri aos enigmas do romance policial. Saí da tela para a página, numa espécie psicanalítica de continuidade do prazer. De fã extremado da série Bosch, na Amazon Prime Video, fui ao texto original do norte-americano Michael Connelly.
Best-seller? Fácil, extremamente fácil? E o que isso importa se o detetive é charmoso, se Los Angeles se desmancha, se o crime não compensa? A narrativa de Connelly convida o leitor a desenvolver seus superpoderes de observação. Harry Bosch é o investigador que detalha e deduz.
A ficção policial contemporânea fala várias línguas e tem diversas vertentes. Mas nada como reencontrá-la no conforto de Hollywood, onde se espraia sem medo de manter-se dentro de fórmulas garantidas. Porque nem toda literatura precisa experimentar ou almeja ultrapassar barreiras.Estou cada vez mais convencido: boas lições também podem vir de leituras confortáveis. Há um prazer estético acomodado no deleite do previsível, daquilo que simplesmente aplaca uma expectativa. Nem tudo gira em torno do traço de novidade.
É como aquela canção cantada a plenos pulmões quando se está sozinho, triste ou feliz. A música conhecida de cor e salteado. Fábio Jr. desavergonhado no momento certo, com sussurro reconhecível pela mais tenra memória. Por que a literatura precisa sempre vir do alto?
A estante é vasta o suficiente para comportar o ritmo da ação, parágrafo a parágrafo, e a quebra da linguagem, manejada para surpreender a sintaxe e a semântica. No caso de Connelly e outros semelhantes, nenhuma invenção freia o ímpeto humano da descoberta do assassino, do culpado.
Harry Bosch é para ser lido de modo seriado, sequencial, como quem forma uma parceria contínua para deslizar pelas highways californianas. Ainda assim, recomendo Echo Park (Ponto de Leitura, 472 páginas), obra redonda, fechada em sua integridade moral, que se confunde com a do angustiado protagonista.
As armas estão dadas, em tradução que mantém o correr de diálogos e frases. Difícil é não imaginar Bosch como o ator Titus Welliver. Tudo bem. Boletim de ocorrência multimidiática. A comparação entre tela (roteiro) e página (romance) acrescenta uma curiosa camada literária à experiência.
Da prateleira caseira, Rubem Fonseca, nosso homem na polícia, manda um abraço, vivíssimo e merecendo sempre atenção. Bola para frente, rebato. Sigamos com as leituras por aqui, semana a semana. Espero que possamos nos divertir e compreender juntos o que há nas (quatro) linhas e nas entrelinhas.