De volta para o presente com Ben Lerner
Segundo romance do escritor norte-americano, 10:04 aponta saídas para o furacão ético e moral que tomou conta da sociedade contemporânea
atualizado
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O título do segundo romance do norte-americano Ben Lerner é uma referência direta a De volta para o futuro. 10:04 é a hora exata em que o relógio da torre de Hill Valley para, atingido por um raio. Além de apaixonado pelo filme de Robert Zemeckis, o narrador-protagonista do livro aguarda uma tempestade real e metafórica.
O tempo não dá trégua. Os acontecimentos vão se precipitando e o texto ficcional não está sob controle absoluto do autor, que é escritor e tem de escrever o livro que uma grande editora lhe encomendou. A novidade aqui não é a narrativa que fala da própria narrativa. O bom é não entediar o leitor com a mesma conversinha.
Lerner consegue escrever sobre o processo de criação entremeado às circunstâncias da existência real, por assim dizer. Uma paixão nunca consumada, um filho a ser concebido, um romance a ser escrito e que já está sendo elaborado enquanto lemos. Tudo por fazer ao mesmo tempo agora e antes.
Tanto neste 10:04 (Rocco) quanto em Estação Atocha (Rádio Londres), estreia do poeta Ben Lerner na prosa, a “originalidade” é esta: arte em vida, vida com arte, sem que a narrativa seja um diário de olho no umbigo do gênio de um autor cheio de questões supostamente muito importantes, mas que afinal são apenas egocentrismo.
Também poderia ser ainda mais do mesmo: escritores que vivem em Nova York, uma cidade saturada de ficção, dão aula de literatura, atravessam períodos de turbulência criativa e amorosa e têm muito a nos ensinar. Lerner ameniza os clichês ao baixar a bola com uma escrita bem-humorada, de leveza hipocondríaca.
Atravessamos uma fase de pouca imaginação e muita falação de si. Lerner não abandona o eu. Entretanto, está de olho no outro que se relaciona aos detalhes do eu. Divide o tempo e a autoria de um pequeno livro com Roberto, filho de migrantes latinos; é o único a se preocupar com o estagiário que quase tem uma overdose.
E mais: topa fazer a inseminação artificial que a melhor amiga lhe pede; lança um olhar compreensivo para a namorada que recupera o valor estético de obras destruídas; escolhe o poema para ser lido ao amigo intelectual no leito de morte. 10:04 é um romance sobre doação, texto generoso que se entrega por completo. Na moral.
A salvação possível, nos diz Lerner, vem da poesia na identidade de cada um de nós. Vejam como observa a namorada que escuta o que o narrador conta: “Alex expressava a intensidade de sua atenção não tocando na sua água. Tinha a capacidade de ficar tão quieta que aquilo era uma forma de elegância.”
À maneira de W.G. Sebald, Ben Lerner traz imagens para dentro do texto. Frames, quadros, fotos. São poucas mas cumprem a função de disparar a atenção para a tensão do instante. Ao modo ensaístico de Walter Benjamin, o autor mira o Angelus Novus de Paul Klee, de olho no pesadelo histórico para encarar presente e futuro.
Pode-se criticar a idealização humanitária nas ideias de Lerner, solidariedade que inexiste na prática. Essa perspectiva utópica, com algo do pensamento filosófico de Richard Rorty e seu “liberal ironista”, essa distância da realidade tem sido bastante prejudicial para a compreensão da vida cotidiana.
Na literatura em questão e tendo em vista o momento mundial que vivemos, não faz mal, contudo, imaginar contrapontos na tentativa de repensar radicalismos, quebrar unidades impenetráveis, viver com mais comunhão. O mundo pode ser melhor no futuro. Que Marty McFly venha nos salvar de nós mesmos. Na hora precisa.