David Foster Wallace merece toda memória
Uma década depois do suicídio do cultuado escritor norte-americano, obra literária e de não-ficção entra em xeque para sair ainda maior
atualizado
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Em 12 de setembro de 2008, David Foster Wallace encerrou a própria vida. Tinha 46 anos. Fiz uma descoberta tardia do escritor norte-americano, como chego aqui quase um mês depois da efeméride. Mergulhei na obra durante um ano, e nunca me recuperei do efeito. Perdi-me de vez no tempo cronológico desencontrado.
DFW é muito mais do que autor do famoso Isto é Água, discurso de paraninfo que repercute internet afora. Ele assina o magistral romance Graça Infinita, que chegou ao Brasil em dezembro de 2014, em tradução de Caetano Galindo. Na Netflix, apareceu em agosto de 2018 O Final da Turnê (ou Fim da Turnê, a critério do freguês).
O filme conta os últimos dias do lançamento nos Estados Unidos de Infinite Jest, em 1996, a partir das intermináveis conversas do escritor com um repórter da revista Rolling Stone. Pode ser bom primeiro ânimo para os textos “difíceis” de DFW. De quebra, a narrativa cinematográfica mostra como se configura um autor-personagem.
Mais de duas décadas após a obra-prima e nos dez anos da morte, Wallace vive momento de “vamos-destruir-a-genialidade-do-mito”. Levantam-se histórias sobre seu suposto inadequado comportamento masculino e, nessa marcha implacável sobre o morto, a literatura entra em questão: “Ele nem era tão bom assim”.
A obra responde, à altura das imperfeições humanas. Caetano Galindo entregou para a Companhia das Letras a tradução de outro calhamaço, o póstumo e inacabado O Rei Pálido. O país em crise trava a publicação e a empurra para não se sabe quando. Enquanto esperamos, é preciso ler ou reler David Foster Wallace.
Porque ele não nomeou uma condição humana. Para o crítico literário Tom Bissell, DFW criou uma – um “estado de apreensão (em ambos os sentidos) e compreensão” –, o que explicaria muito do culto ao autor e à obra adjetivada: wallaceana. Autoconsciência sustentada sobre mínimos detalhes.
Nada escapa ao escrutínio do olhar, principalmente no que se refere ao mundo tomado pelos meios de comunicação de massa, ao mundo capturado pela necessidade do entretenimento. Entrar pelas fissuras (duplo sentido) do texto de Wallace é transformar para sempre o modo individual de encarar o mundo real.
Onde está Wallace? Ele vive, em língua portuguesa, no monumento fragmentário das mais de mil páginas de Graça Infinita e suas famosas notas de rodapé, nos contos de Breves Entrevistas com Homens Hediondos (de título emblemático), nos ensaios inspiradores e nas reportagens que criaram uma linhagem jornalística.
Se essas são quase obviedades para quem foi abduzido pelo fenômeno, o novo leitor pode experimentar uma visão de mundo que tem a sinceridade como ponto de partida e a generosidade como método: o texto nunca está de portas fechadas, apesar de saber sempre que se faz sobre a estética da forma.
Metaficção recursiva venera a consciência narrativa, faz com que ela seja o assunto do texto. Minimalismo é ainda pior, mais vazio, porque é uma fraude: ele evita não só a autorreferência, mas qualquer personalidade narrativa em tudo, tenta fingir que não há consciência narrativa em seu texto
DFW em entrevista
Ele avança de mãos dadas com Thomas Pynchon e Don DeLillo, ainda vivos e quicando. Mais próximo da América Latina, conversa imaginariamente com o argentino Manuel Puig e sua reinvenção literária da cultura pop. A ideia é que não se pode escapar impunemente da experiência midiática do nosso tempo.
Para finalizar e resumir, uma autocitação com vários parênteses. Em DFW, do campo maior do entretenimento (relacionado à comunicação), passamos pela guerra à ironia (produto da televisão), para chegarmos ao tédio (constituinte do indivíduo na relação com o consumo) e à dor que se instala na identidade. É pouco?