Contos traçam painel da atual prosa brasileira
Projeto de três agências literárias, Coleção Identidade apresenta 30 escritores em formato exclusivamente eletrônico
atualizado
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A agência literária faz a mediação entre o escritor e a editora. Três agências literárias brasileiras se uniram para experimentar pular essa etapa. Na Coleção Identidade, disponível em formato eletrônico na Amazon, a curadoria é das agências Riff, MTS Agência de Autores e Villas-Boas & Moss Agência Literária.
Nesta ação direta ao consumidor, 30 contos podem ser comprados unitariamente ou em grupos de 10, divididos por agência, com preços acessíveis (R$ 1,99 e R$ 9,90, respectivamente). Selvageria, Histórias para Tempos de Crise e Pessoas Bacanas prometem “alguns dos mais relevantes autores brasileiros contemporâneos”.
O pronome indefinido está correto. A lista inclui escribas dos 27 aos 69 anos de idade. Os jovens e muito experientes são apresentados, ainda, com a promessa de despertar o gosto pela leitura e fazer o leitor “descobrir a riqueza da literatura brasileira contemporânea”.
No frigir dos ovos literários, entre o cru e o cozido, a coleção entrega prato montado no self-service. É preciso escolher para não cair no requentado, na sobra do dia anterior. Explicitada pela “ferramenta da autopublicação” e pelo caráter publicitário da empreitada, a falta do filtro do editor (da editora) gera altos e baixos. Deixando de lado uma revisão de texto às vezes pouco cuidadosa e a inclusão de nomes mais midiáticos do que literários, a experiência vale a pena.
Nesse portfólio sem papel, o leitor pode descobrir a deliciosa dupla de investigadores André e Gordo, criada por Flávio Carneiro, brilhando aqui no conto policial A Espera. Pode compartilhar os últimos dias da vida do escritor Franz Kafka em Ao lado de K., na excelente sacada narrativa de Miguel Sanches Neto.
O prazer da leitura está também em histórias que escapam da nossa geografia. Em Lâmina, Flávio Izhaki vai à Segunda Guerra para encontrar judeus poloneses em busca de salvação. Em A história de Joseph Koppel, Ronaldo Wrobel desloca-se à França ocupada para contar de um amor gerado e paralisado pelo nazismo.
A ideia é que, a partir daqui, o leitor parta à procura de outros textos do mesmo autor. Esse gostinho de quero-mais aparece em outros contos que escapam do cenário brasileiro. Pedra Cansada, de Giovana Madalosso, e O último Inverno, de Vanessa Barbara, são exemplos de fluência e reflexão na dose certa, no ar rarefeito de Machu Picchu ou no inverno suíço.
É sintomático que escritores mais velhos se estendam sobre memória, história e verdade, enquanto os jovens buscam temas mais urgentes. No divertido André Quer Transar, Julia Wähmann traz as redes sociais para a cena e a cama virtual. Com um excelente argumento, Julia Dantas expõe o medo da queda em A Cabeça de Greg Louganis, de inspiração esportiva e televisiva.
Além de continuar com os personagens-escritores que expõem a própria formação, a literatura brasileira contemporânea também se preocupa com relações familiares entre pessoas comuns. Um terço dos contos se dedica a olhar para casais separados, filhos, ex-mulheres, ex-maridos, padrastos, amantes… E a violência dentro da casa dilacerada. E na rua da amargura, do ressentimento, da vingança.
Aqui vale chamar atenção para o sempre interessante André de Leones (Pessoas Bacanas), que nos poupa de entregas emocionais frágeis, e para Adriana Lunardi (Condições do Tempo), arriscando a metalinguagem sem nunca ultrapassar a fronteira que nos faria chegar à chatice. Dois exemplos de peso. Contundentes.
No mesmo campo temático (família não há mais), o excepcional Cheiro, de Marcelo Moutinho, destila puro rancor, com desfecho ácido, sarcástico. O curto Cão Maior, de Alessandro Thomé, é a miséria humana. Fotografia, de Carlos Henrique Schroeder, diz de autoengano e a consequência da filiação. Tércia Montenegro, em O mundo Tão Pequeno, picota a psicologia infantil, em frases que não são só de efeito.
Entretanto, um dos melhores textos, Selvageria, que não à toa dá título a uma das três coletâneas, se dá dentro de uma família aparentemente bem ordenada. O narrador em primeira pessoa de Carlos Eduardo Pereira peca apenas quando descreve os signos da cidade. Esse excesso é recompensado por muito bom humor, uma ótima personagem calada (a babá gigante) e final sutil como cabe ao conto: soco no estômago.