Carne Crua: Rubem Fonseca e as armas da decepção
Quando um dos escritores mais importantes para a sua formação já não escreve como antigamente, o que resta à obra e ao leitor?
atualizado
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Com Carne Crua, Rubem Fonseca (1925) chega ao quinto volume de contos pela Editora Nova Fronteira, onde está desde 2011. Nessa trajetória e voltando outras histórias no tempo, o escritor mineiro-carioca mais decepciona do que mantém viva a chama da paixão de seus fiéis seguidores, que preferem recorrer a textos antigos. Imagino, ainda, que a produção recente não seja capaz de despertar muita atenção em novos leitores, não necessariamente apenas jovens.
O diagnóstico duro pode ser suavizado por algumas dúvidas. Um escritor “melhora” com o passar do tempo? Evolui? O argentino Ricardo Piglia sempre defendeu a inexistência desse progresso. Depois de uma vida literária, o melhor livro do autor poderá ter sido a estreia, nada mais. “Nunca escreveu um livro como aquele”, dirão. E tudo bem. A decepção seria, portanto, natural. No caso de Fonseca, parece evidente que, no cerne da linguagem literária, “a força humana” – para lembrar o título de um de seus melhores contos –, perdeu pujança, vigor, tesão literário.
Ou a chave da incompreensão estaria do lado de cá. Terá sido o leitor a mudar? Envelheceu? Não se deixa mais levar por certos truques narrativos, agora vistos como banais; não encara a repetição como leitmotiv do projeto, mas falta de imaginação; não tem mais paciência alguma para vacilos de continuidade ou displicência na revisão. O leitor contemporâneo procura o velho autor em meio ao ineditismo da obra. A equação não fecha, infelizmente.
Carne Crua desfila temas de Rubem Fonseca. O banal atingido pelo fait-divers, quer dizer, o inesperado que transforma o comum. A violência como ato de vingança social, isto é, a justiça feita na marra. O corpo humano em suas entranhas, ou o intestino grosso interferindo nas nossas vidas. A língua portuguesa e o uso da linguagem na constituição do caráter e, por assim dizer, a nomeação das coisas como espelho de identidade.
Uma estratégia recorrente em parte das 26 histórias do livro é o que se poderia chamar de enciclopedismo: a explicação referencial sobre um fenômeno, uma personagem histórica, um lugar etc. Em tempos de Google (incorporado por Fonseca ao texto, façamos justiça), esse procedimento de enumeração soa anacrônico, por maior que seja a consciência do autor.
Mas, todavia, contudo, entretanto, Fonseca ainda proporciona momentos de deleite em meio à sensação de déjà-vu. Estão ali a virada inesperada, o humor desbocado, a mirada moralista de onde menos se espera. Estão lá o que Vera Lúcia Follain intitula, ironicamente, de “crimes do texto”: oscilação sem hierarquias entre alta cultura e cultura popular, remissão a textos literários próprios e alheios, generosidade para pensar diferentes tipos de leitores, entre outras armas literárias.
Aos 93 anos de idade, Rubem Fonseca poderia ou deveria ter parado de publicar, dizem alguns. Por mim, é melhor com lampejos de sua criatividade do que sem ele. Pelo menos seis contos de Carne Crua valem a insistência. Uma das principais marcas do autor (ex-delegado, vale lembrar), a violência aparece nos relatos de distintas formas, até na ausência da singela historinha que abre o livro (A Praça).
Em Nada de Novo, ela é mais, vá lá, crua e cruel: “Enfim, segurando o alicate com a mão esquerda e empunhando na direita um facão que achei na cozinha, decepei a língua, deu trabalho, mas também deu muito prazer”. Mas também repercute a ética improvável, porém real, de um assassino de aluguel, sujeito com jeito de gente comum sempre na companhia de um Glock .45. Não mata crianças, mulheres e anões.
Na ética dos relacionamentos marcados por padrões de beleza física e gramatical, a violência se transforma também em abandono ou morte (Feitiço Brasileiro e Oropa). Noel tem daquelas tiradas típicas: “Uma pessoa que não conhece Noel Rosa merece morrer”. Em outras histórias, Papai Noel é a vítima preferencial.
Já Penso e Falo é sobre sinceridade transformada em sincericídio, para entrar no senso comum. A personagem diz tudo o que pensa. Termina no hospício da própria linguagem-pensamento, emulando o narrador.
Nessa toada, o comentarista reflete e escreve: esse novo livro do Rubem Fonseca presta pouco dentro do conjunto da obra, mas é bom para manter vivo, na ordem confusa dos dias atuais, um autor incontornável – intérprete de desajustes desde os anos 1960.
E mais: quero defender, possuir e portar essa arma, com direito a jogos semânticos. A literatura é meu revólver sem acento, meu revolver pra dentro e pra fora. Nossa militância bacana. Minha Colt ideal.