Boca do Inferno completa 30 anos
Romance de estreia de Ana Miranda sobrevive ao tempo porque está assentado sobre um segredo literário básico: a comunhão com o leitor
atualizado
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Em agosto de 1989, a cearense Ana Miranda estreou na prosa ficcional com o romance Boca do Inferno. O livro saiu por uma editora ambiciosa (Companhia das Letras) e tinha a chancela do mestre Rubem Fonseca. Já passou da oitava reimpressão da quinta edição, foi traduzido mundo afora. É um longo tempo de sucesso.
Em 1990, um ano depois dessa arrancada, José Paulo Paes publicou, também em livro da Companhia (A Aventura Literária), os ensaios As Dimensões da Aventura e Por Uma Literatura Brasileira de Entretenimento (ou O Mordomo Não é o Único Culpado). O autor reivindicava teoricamente que a literatura brasileira estabelecesse mais comunicação com o leitor, fosse um pouquinho menos devota da experimentação.
A partir de uma matriz histórica brasileira, Boca do Inferno é aventura com entretenimento. Coloca em cena a cidade de Salvador, em fins do século 17. Estabelece um cenário riquíssimo para a miséria e o poder naqueles tempos de colônia. Reapresenta ao leitor brasileiro a vida e a obra do poeta barroco Gregório de Matos.
Ana Miranda, com destreza rara para uma estreia (ou com a destreza rara de estreia), soube armar uma história de interesse duplo, com requintes de ambiguidade. Céu e Inferno. A chave da longevidade está na ação que se estabelece por dentro de uma linguagem distante no tempo, mas acessível no presente da leitura.
O leitor se deixa viajar no tempo para aterrissar em território de contradições, no qual, bem acomodado, passa a não procurar a veracidade histórica. A verossimilhança romanesca assume o comando e conduz à verdade própria à literatura. A poesia entremeia-se no factual histórico para embelezar um texto já delicioso e requintado em sua falsa complexidade, em sua real simplicidade dada, por exemplo, pelos diálogos que nunca travam.
Além de retratos brasileiros mais amplos, a escritora volta a fazer essa reaproximação entre os fatos históricos e a vida literária, em suas dimensões biográficas. Augusto dos Anjos no romance A Última Quimera (1995). Gonçalves Dias em Dias & Dias (2002). Poetas e prosadores se transformam em proezas: heróis no papel, prontos a despertar a imaginação. No pano de fundo, cultura literária.
O título do livro aniversariante é o apelido (alcunha, diria o texto) de Gregório de Matos, também chamado de Boca de Brasa. Ana Miranda leva a nomeação para o terreno de certa informalidade democrática. Como esse alguém era conhecido? Não oficialmente, mas na boca do povo, na língua viva das ruas, nos becos sujos da cidade criminosa.
É esse movimento de tirar do centro do discurso que gera empatia. É esse desdobramento a favor de um enquadramento reconhecível não apenas no círculo (quase circo) de literatos que alcança maturidade interessante fora das redes de interessados: leitores reais, ainda que algumas vezes obrigados por currículos e vestibulares.
Não tenhamos medo dos gêneros (romance policial, sentimental, de aventuras, a ficção científica e a infanto-juvenil), não tenhamos necessariamente receio dos best-sellers. Eles podem estar certos, apontava o ensaísta e poeta José Paulo Paes. Em bases folclóricas, apresentam conexões pouco superficiais com arquétipos, com percepção moral. A presença do Padre Antônio Vieira na narrativa de Boca do Inferno não é, portanto, aleatória.
Um crime destrava a trama e sente-se já a delicadeza da mão de Ana Miranda ao expandir na página um vocabulário, digamos, antigo (barregã, pértiga, barrilote etc.). Que, de modo levemente estranho, convida à compreensão, acolhe mais do que expulsa o leitor, chama para uma comunhão de bens culturais, abre a chave do passado de todos nós.
Boca do Inferno está vivo, trintão, e merece ser lembrado como quem comemora conquista por espaço, guerra vencida contra elucubrações que apenas espantam o desejo de ler, reconhecer (com alguma barreira, sem dúvida, do contrário não há expansão) e aprender.
Em versos do protagonista:
“Todos somos ruins, todos perversos/ Só nos distingue o vício e a virtude,/ De quem uns são comensais, outros adversos.// Quem maior a tiver, do que eu pude ter,/ Esse só me censure, esse me note,/ Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.”